O genocídio como atividade essencial do Estado

imagemMILITARIZAÇÃO NA QUARENTENA

Notas sobre a segurança pública do Rio de Janeiro e o lugar social do negro no capitalismo dependente.

Tálison Vasques, militante do PCB e do Coletivo Negro Minervino de Oliveira.

“A cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a medina, a reserva, é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade acocorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negro, é uma cidade de árabes […]” – Frantz Fanon [1]

Segundo a Rede de Observatórios da Segurança, durante os meses de abril e maio de 2020, o Estado do Rio de Janeiro aumentou em 27,9% o volume das operações policiais de repressão ao tráfico de drogas e produziu 53% a mais em mortes do que no mesmo período do ano anterior [2].

Essas são informações que podem parecer corriqueiras para quem conhece o estado de normalidade da política de guerra às drogas no estado do Rio de Janeiro – que essencialmente produz confrontos e mortes – porém, são dados que saltam aos olhos quando sabemos que vivemos uma das piores pandemias da história da humanidade, frente a qual o Estado do Rio, em resposta imediata, foi um dos primeiros do país a decretar a quarentena e estimular o isolamento social, alegando a intenção de preservar, assim, a vida de milhares de cidadãos fluminenses. A pandemia, que no mundo todo reduziu o ritmo da produção capitalista às “atividades essenciais”, não foi capaz de quebrar a normalidade fúnebre da política de segurança de Wilson Witzel, que mesmo quando diz defender a vida promove a morte.

O curioso e terrível “paradoxo de Witzel” nos impõe debruçar-nos mais uma vez sobre as raízes da violência do Estado brasileiro, a buscar o que se encontra sob a pele da ideologia de política de guerra às drogas, e a reexaminar o racismo e genocídio da população negra e pobre no Brasil, já que, afinal, esses mortos têm cor e classe social muito específicas. Mas, acima de tudo, a contraditória política de Witzel nos obriga a lançar a luz da economia política marxista sobre o histórico recente das políticas de segurança do Estado, a fim de contribuir na identificação do lugar do assassinato em massa de pessoas negras na dinâmica geral do capitalismo brasileiro atual e entender por que o genocídio é uma atividade essencial do Estado, mesmo em um período em que os olhos do mundo estão todos voltados para uma crise sanitária sem precedentes no nosso tempo.

CICLO DOS GRANDES EVENTOS, GUERRA ÀS DROGAS E O PÂNICO MORAL DA SEGURANÇA PÚBLICA

O genocídio e encarceramento da juventude negra são dois dos temas mais recorrentes do debate público da esquerda mundial nos últimos anos. Travestida de Guerra às Drogas e imbuída no que o sociólogo e pesquisador da questão racial jamaicano Stuart Hall chamou de pânico moral na segurança pública, governos ocidentais, tanto de países de centro quanto de países da periferia do capitalismo, tem lidado com as massas negras nativas ou migrantes com políticas cada vez mais radicais e abrangentes de encarceramento e assassinato, produzindo um efeito cíclico onde quanto mais a violência empurra essas populações para a marginalidade, mais intensa se torna a repressão do Estado.

O Brasil se tornou nos últimos anos o centro desse debate, por alguns motivos, dentre os quais podemos citar: A) temos a maior população afrodescendente fora do continente africano, [3] oriunda do emprego do tráfico transatlântico de escravizados no período acumulação primitiva do capitalismo mundial e em parte da sua fase industrializada, culminando aqui em mais de 300 anos de escravidão seguidos de uma abolição mal concluída, onde os abolidos do trabalho escravo foram também abolidos dos meios de produção da sua própria sobrevivência, não incluídos no mundo do trabalho tipicamente capitalista – este ocupado por imigrantes brancos – e alijados de qualquer possibilidade de fuga da marginalidade e ascensão social; B) vivemos uma das mais intensas e prolongadas experiências de guerra às drogas do mundo, que persiste desde a passagem do modelo sanitário na política de drogas do Estado para o modelo bélico em 1964, quando a Lei de Segurança Nacional do Regime Militar passou a tratar os traficantes como inimigos do Estado [4]; C) temos a terceira maior população carcerária do planeta, com 773.151 presos – dos quais 33% sem condenação [5] – além de uma das maiores taxas de homicídios do planeta (31,59 assassinatos por 100 mil habitantes). A grande maioria dessas mortes (5.804 em 2019) é produzida pela atuação policial. Detalhe: 75% do total de todas as pessoas assassinadas no Brasil em 2017 eram negras [6].

No Rio de Janeiro essa lógica se reproduz de forma exemplar. Laboratório das políticas de segurança pública a nível nacional, o Estado apresentou um aumento exponencial no número de presos e mortos durante período dos megaeventos (2007 – 2016), ciclo do capital impulsionado pela realização dos Jogos Pan-americanos, da Copa do Mundo FIFA e dos Jogos Olímpicos Rio 2016, que traria grandes transformações a cidade do Rio, a partir, principalmente, do largo estímulo ao comércio, turismo e especulação imobiliária. Neste período, a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas comunidades das Zonas Sul e Norte, além de no Centro e em Jacarepaguá, serviram para apoiar não só a criação de espaços “seguros” para os turistas e consumidores desses eventos, mas também para dar novo impulso à atividade imobiliária da cidade, que mudava de cara com as grandes obras de infraestrutura urbana e revitalização, de inspiração claramente higienista, baseadas sobretudo na militarização do espaço urbano e em uma larga política de remoções.

Para apoiar essa política de militarização e higienismo, a mídia burguesa cumpriu um papel fundamental na criação de um pânico moral, categoria usada por Stuart Hall para descrever o papel dos aparelhos de hegemonia burguesa na manipulação da opinião pública no sentido da criação de uma impressão moral negativa acerca de grupos sociais marginalizados ou de seus elementos culturais e estéticos, a partir da sua associação com problemas de ordem política e econômica do país, como o desemprego e a segurança pública [7].

Em qualquer dia da primeira metade da década de 2010 era possível ver, tanto na televisão quanto nos principais jornais brasileiros, imagens de traficantes ostentando armas de guerra, das cracolândias, dos arrastões nas vias expressas e dos “menorzinhos do coreto” praticando furtos nas calçadas e nas praias cariocas, tudo seguido das atualizações sobre os preparativos para os grandes eventos esportivos, o que sempre deixava a sutil impressão de que algo precisava ser feito. Em 2015, um conjunto de empresários descontentes com a perda de lucros por problemas com roubos a pedestres na Lagoa Rodrigo de Freitas, contratou, junto ao sindicato patronal da Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro (FECOMERCIO-RJ), os serviços de policiais militares em dias de folga – com o aval da secretaria de segurança do Estado – para a retirada de moradores de rua e o patrulhamento da região [8]. Estava consolidada aí a ideia central do projeto Segurança Presente, que se espalhou pela cidade buscando limpá-la das “classes perigosas” do século XXI e responder ao pânico moral dos empresários do comércio.

Mas este pânico moral da segurança pública do Rio não surgia solto na atmosfera racial da cidade e nem era apropriado somente de forma espontânea como no caso dos comerciantes da Zona Sul. Era, na verdade, especialmente direcionado às comunidades que abrigavam a população mais negra e mais pobre, criando assim um inimigo que tem rosto bem definido no imaginário popular. Especialmente, um inimigo do qual não se poderia se livrar facilmente, uma vez que sempre havia outro para ocupar seu lugar no universo do crime, e que, mesmo sem uma política oficial do Estado de segregação e genocídio, deveria ser preso ou “abatido” pelas forças policiais. Como resposta a essa necessidade de uma política centralizada de eliminação e repressão dos indesejáveis, a política das UPPs e a “revitalização” da região central da capital caíram como luvas para a opinião pública moldada pelo alarmismo de programas como o RJTV 1ª Edição e pelo Balanço Geral.

Além de expulsar para as áreas mais remotas da Zona Oeste e da Baixada Fluminense os grupos criminosos que mais perigo ofereciam ao andamento dos grandes eventos, as UPPs ainda ocupavam grandes áreas que até então eram conhecidas por produzir bandidos às centenas. As imagens do plantão jornalístico da Rede Globo no dia 28 de novembro de 2010 – quando o Exército de Lula emprestado a Sérgio Cabral se juntou ao BOPE, invadiu o Complexo do Alemão e expulsou centenas de traficantes do Comando Vermelho, que fugiram pela mata – foram um grande salário moral pago ao conservadorismo que crescia, não só entre os empresários do comércio, mas também nos setores médios e de trabalhadores da cidade.

O aparato de controle social dos pobres estava finalmente atualizado, não só com uma nova política oficial e com novos instrumentos, mas também sob novo consenso público que o justificava. A guerra às drogas adquiria nova roupagem, cujo resultado logo se verificaria na contagem de corpos: somente entre 2010 e 2015, período de implantação de 39 das 42 UPPs no Rio até então, a PM do Rio de Janeiro registrou 3.250 autos de resistência (resistência à prisão seguida de morte) [9].

No período imediatamente posterior, eventos políticos e econômicos em nível nacional trariam algumas mudanças nas políticas de segurança do Rio que, além de não alterar seu caráter violento, influenciaram seu método e principalmente a intensidade de suas ações, motivo pelo qual foram fundamentais no caminho que percorremos até aqui. O início da recessão, em 2015, o golpe parlamentar sobre a presidente Dilma Rousseff em 2016 e o aprofundamento das políticas de ajuste fiscal, das privatizações e do desmonte da CLT – resposta à necessidade de retomada das taxas de lucro globais a patamares pré-crise de 2008 – intensificaram ainda mais as já profundas contradições do capitalismo brasileiro. Só em 2016 eclodiram 2.093 greves em território nacional, sendo 81% dessas de caráter defensivo, ou seja, contra a perda de direitos e condições de trabalho previamente adquiridos [10]. O acirramento da crise, porém, não foi sentido da mesma forma por todos.

Já em 2018, 64,6% dos desempregados eram pretos ou pardos. Enquanto a taxa de desemprego entre os brancos atingia 9,2% – abaixo da média geral que era de 11,6% – a desocupação entre os pretos e pardos era de 14,5% e 13,3% respectivamente [11]. Aqui, antes de prosseguirmos na análise das políticas de segurança pública, precede uma reflexão mais profunda sobre a tendência a maior desocupação das populações negras e pardas e sua relação com a natureza do capitalismo brasileiro.

O EXCEDENTE DE MÃO DE OBRA

O Brasil, enquanto país que nunca alcançou o patamar de estado de bem-estar social por conta da sua condição capitalista dependente, nunca reparou historicamente a questão negra, ao contrário, os descendentes dos escravizados brasileiros foram inseridos sempre de forma marginalizada nos diversos ciclos do capital desenvolvidos por aqui. Isso fez com que a população negra, além de marginalizada no espaço urbano – segregada nas favelas e periferias – também participasse de forma precária dos ciclos de escolarização promovidos pelo Estado, o que resultou em uma baixa taxa de especialização para o trabalho em comparação com a população branca. Essa condição, junto a outros fatores historicamente determinados de ordem econômica, política e da subjetividade, constituem o que o filósofo marxista Silvio de Almeida chama de Racismo Estrutural [12]. Ou seja, a condição estrutural em que o Estado brasileiro, funcionando na sua normalidade – sob governos conservadores ou progressistas, em momentos de crescimento econômico ou de crise, com ou sem liberdades e garantias democráticas instituídas – tende a reproduzir, na própria natureza do seu universalismo jurídico, a desigualdade racial.

Porém, outra abordagem da estruturalidade do racismo no Brasil nos chama atenção. De acordo com a Teoria Marxista da Dependência, apropriada aqui a partir do escrito clássico “Dialética da Dependência” de Ruy Mauro Marini, por conta da sua posição periférica no cosmos da divisão internacional do trabalho, da transferência de valor para as economias centrais no mercado mundial e da conseqüente superexploração da força de trabalho para a recomposição interna desse valor perdido, o capitalismo brasileiro se constitui como um capitalismo tipicamente subdesenvolvido, isto é, que mesmo a partir dos mais diversos esforços de industrialização e desenvolvimento, se insere sempre de forma subalterna na divisão internacional do trabalho e nunca tem o valor que produz realizado na sua própria economia. Mas, sobretudo, o capitalismo brasileiro produz e reproduz, a partir principalmente da superexploração da força de trabalho, desigualdades sociais não identificadas em nenhuma experiência central do capitalismo [13]. Entre essas desigualdades, o economista e professor adjunto da Universidade Federal de Goiás Pedro Henrique Evangelista Duarte destaca em seu recente trabalho “Superpopulação relativa, dependência e marginalidade: ensaio sobre o excedente de mão de obra no Brasil” a produção de um vasto excedente de mão de obra como característica fundamental da nossa formação histórica e social [14].

Este excedente de mão de obra pode ser entendido, dentro da própria dimensão dependente do nosso capitalismo, a partir da categoria marxiana de superpopulação relativa [15], que é, grosso modo, o conjunto populacional produzido constantemente pelo desenvolvimento do capital – especialmente pela sua tendência ao incremento do capital constante (máquinas e matérias primas) em detrimento do capital variável (força de trabalho humana) – e que por diversos motivos não está empregado em atividades tipicamente capitalistas, se tornando assim um excedente da mercadoria força de trabalho. No Brasil essa tendência se torna mais intensa e estrutural a partir da não realização, nos limites do nosso mercado, do valor produzido internamente, que interrompe a formação de cadeias suplementares de produção, tornando a industrialização desigual, orientada pelas necessidades das economias centrais e com pouca capacidade de assimilação da força de trabalho excedente em novos ciclos de desenvolvimento.

A IDENTIDADE, O DOMICÍLIO, A REPRESSÃO E O DESCARTE DA MÃO DE OBRA MARGINAL

No contexto da formação social do Brasil e da abolição – considerado o ato final de passagem de um modo de produção escravista tardio para o capitalismo dependente – o intelectual marxista Clóvis Moura percebe que a mão de obra escravizada negra foi finalmente substituída pelo trabalho assalariado tipicamente capitalista dos imigrantes brancos. Essa substituição sem gradações numa economia essencialmente agroexportadora, já dependente e modelada pelo imperialismo, transformou as massas trabalhadoras negras numa franja marginal [16], categoria cunhada por Moura para definir uma larga camada social sem função definida no capital e que transita entre as superpopulações relativas estagnadas e o completo pauperismo. Essa superpopulação superava amplamente o contingente necessário para um exército industrial de reserva em um capitalismo atrofiado pela dependência. Sobretudo, uma gigantesca massa de desvalidos que tinha em si uma capacidade sem precedentes de baixar os salários dos trabalhadores assalariados brancos, processo fundamental para restituição à burguesia interna do valor perdido no mercado mundial.

Considerando essa composição na formação social clássica do mundo do trabalho no capitalismo dependente brasileiro, não é difícil deduzir quem, 132 anos após a abolição, permanece enquanto franja marginal na dinâmica das cidades contemporâneas.

As camadas negras, mais pobres, com baixa escolaridade – que descendem mais diretamente dos abolidos do trabalho escravo sem indenização e que no Rio de Janeiro ocuparam historicamente as encostas, favelas, cortiços e alagados, além de regiões periféricas das Zonas Oeste e Norte da capital, da Baixada Fluminense – formam essa superpopulação relativa estagnada e / ou o pauperismo.

A despeito da sua subutilização no chamado mercado de trabalho formal, essas pessoas se inserem de forma irregular em atividades marginais do capitalismo, especialmente nos ciclos de circulação mais elementar da moeda entre os próprios trabalhadores. São os camelôs, as babás, manicures, domésticas, traficantes do varejo de drogas, catadores, pedreiros e serventes autônomos, prostitutas, biscateiros, etc., ou seja, uma grande massa indistinta de gente que vive destituída da categoria econômica de salário e que a ideologia neoliberal vigente insiste em chamar de “microempreendedores individuais”, mas que, contraditoriamente, formam a base da classe trabalhadora brasileira. Essas pessoas, enquanto escrevo este texto, somam 41,3% de toda a força de trabalho no Brasil [17].

Em um contexto de crise sistêmica do capital, a urgência da retomada do crescimento das taxas de lucro tensionava os operadores do estado burguês, com um dilema que se estabelecia entre radicalizar o neoliberalismo e manter a relação entre consenso e coerção equilibrados. Esse dilema não resolvido pelo presidencialismo de coalizão petista não só aprofundou a crise na reprodução do capital, como tornou irreversível a crise terminal do estado democrático de direito (para as classes que algum dia tiveram acesso a ele).

O golpe parlamentar de 2016 resolveu este dilema com a radicalização do modelo neoliberal, suportada num poderoso controle das massas baseado em pânicos morais (a corrupção, o antipetismo, a ideologia de gênero, as drogas, a violência urbana, etc.) e na escalada da repressão violenta preventiva das classes sociais mais pobres, de mão de obra sobressalente, a fim de discipliná-las.

No nível das identidades, essas populações são absolutamente distinguíveis dentro da massa massa populacional brasileira. Além de serem, em maioria, formadas por pretos e pardos, dentre essas populações vive a maioria das travestis e transsexuais (o grupo mais excluído do mundo brasileiro do trabalho), das mães solos e mulheres negras (que têm os piores níveis de salário e emprego). E também nesse grupo que incide mais fortemente o problema das drogas e onde estão estabelecidos os principais grupos de varejo delas.

Todas essas pessoas, como já dito, vivem segregadas nas comunidades carentes de cidades cindidas [18], ou seja, num espaço urbano facilmente identificável e que concentra os principais alvos do pânico moral disseminado pelos aparelhos de hegemonia da classe dominante. Não é a toa que, apesar dos principais atacadistas das drogas viverem em condomínios nas áreas nobres da cidade, as grandes operações de repressão ao tráfico ocorrem nas comunidades onde elas são vendidas a varejo. A questão da guerra às drogas se mostra assim um elemento absolutamente ideológico. Um falseamento da realidade que oculta e/ou justifica o assassinato de dezenas de milhares de pessoas por ano, num processo histórico voltado para o controle das massas mais violentadas e, por isso, mais perigosas a hegemonia liberal burguesa, e que serve colateralmente ao descarte de um excedente da mão de obra indesejável ao mercado.

WITZEL, A MORTE DAS UPPS E A ENCARNAÇÃO DA POLÍTICA DE CONFRONTO

Compreender a ascensão de Wilson Witzel e seu exercício do poder é tarefa para um trabalho específico, dada a complexidade que envolve a ascensão de políticos da extrema direita e seu modo de operação do estado, de forma que vou me limitar a apenas apresentá-lo e debater brevemente, no escopo das políticas de segurança, como ele encarnou o atual cenário do estado policial do Rio.

Juiz federal desde 2001, pouca gente levou a sério quando Witzel lançou sua candidatura a governador do Rio pelo PSC em 2018, especialmente porque concorria com nomes mais conhecidos da política do estado como o ex-prefeito da capital, Eduardo Paes, e o ex-senador Romário. Mas tudo mudaria quando, ao notar o maior fenômeno eleitoral dos últimos anos, Witzel se atrela ao então candidato à presidência da república Jair Bolsonaro e é arrastado a uma vitória arrasadora. A dobradinha Witzel – Bolsonaro arrancou impressionantes 70% dos votos em várias regiões do estado. O discurso de ambos dava respostas ao que havia se transformado no pânico moral construído pelos aparelhos de mídia burgueses durante toda a década: um monstruoso complexo ideológico de extrema direita que agora se voltava contra esses mesmos monopólios de mídia, inclusive assombrando setores liberais da classe média e de uma certa burguesia “esclarecida”, que muito havia se beneficiado da ideologia de guerra às drogas e do sufocamento das camadas mais pobres da população.

Em entrevista concedida ao Estado de São Paulo em novembro de 2018, o recém eleito governador deu a declaração que, a meu ver, sintetiza e ilustra o paradigma da segurança pública do Rio em tempos de avalanche neoliberal. Ao ser questionado pelo jornal se a execução sumária de suspeitos armados era a conduta correta de um agente de segurança pública do Estado, Witzel disparou: “O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro…” [19].

Por mais absurda que seja, a frase de Witzel não foi um blefe. Durante o seu primeiro ano de mandato a polícia do Rio de Janeiro bateu recordes de produtividade, com 1.810 pessoas executadas, o número mais alto desde o início dos registros em 1998 [20]. Embora o confronto e o assassinato de suspeitos tenha tido sua expressão máxima sob o comando de Witzel, não se pode dizer que esse novo protocolo de ação das forças policiais tenha sido criado por ele.

Em 2018, o Rio de Janeiro ainda sob o governo de Luiz Fernando Pezão (MDB) sofre uma Intervenção Federal, de caráter militar, na segurança pública que sepulta de vez o modelo moribundo das UPPs e estabelece uma política de incursões diárias da PM e do Exército nas principais comunidades do estado. O resultado dessa política, como não poderia deixar de ser, é um aumento vertiginoso no número de confrontos, apoiado em um financiamento megalomaníaco do governo federal. Foram ao todo 711 operações totalizando 1.444 mortos pelas forças de segurança, entre fevereiro e novembro daquele ano [21]. Mas o que fica indelével desse período não são necessariamente os números produzidos, mas sim o sentido que a política de segurança tomava.

Os serviços de inteligência do Estado foram sistematicamente desmontados nos anos imediatamente anteriores à intervenção, com seu financiamento chegando a R$ 21.641,15 em 2015. Em comparação, no mesmo ano, o Estado do Tocantins, que tem 9% da população do estado do Rio de Janeiro, investiu R$ 54,5 mil nos órgãos de inteligência [22]. Nos anos posteriores o investimento foi ainda mais baixo. Em 2016 não foi encontrada discriminação de verbas para a área, mas em 2017, ano anterior a intervenção, ela não passou de 2,5 mil reais.

Os efeitos deste subfinanciamento das políticas de inteligência são, necessariamente, um decréscimo nas operações não violentas de repressão ao tráfico, como aquelas operadas junto às polícias rodoviárias, com o objetivo de apreender grandes quantidades de droga antes que elas cheguem ao varejo nas comunidades. A política de segurança do Rio sofre então uma importante transição de um modelo já muito letal, mas que conjugava os confrontos clássicos com ações pontuais – e midiáticas – de investigação e inteligência, para um modelo igualmente midiático totalmente voltado para o confronto, em que o objetivo é puramente abater o inimigo, independente do impacto social e das vidas que serão postas em risco nos locais de confronto.

Essa transição também veio acompanhada da atualização do pânico moral e do reforço da imagem do inimigo interno. O discurso do “bandido bom é bandido morto” dava a linha da opinião pública geral. Uma extensa matéria intitulada “Crise, falência de UPPs, banalização de fuzis, violência na folia: veja os motivos que levaram à intervenção federal no RJ”, publicada no Portal G1 no dia 17 de fevereiro de 2018 [23], sintetizava a verdadeira campanha operada pela Rede Globo durante o carnaval daquele ano para justificar a já planejada Intervenção Federal no Rio. As reportagens diárias com flagrantes de roubo e furto, traficantes fortemente armados e uso de drogas ao céu aberto construíram na opinião pública a impressão de que o Rio de Janeiro era um estado fora de controle e que era sim necessária uma intervenção federal de caráter militar para o restabelecimento da lei e da ordem. As GLOs (Operações de Garantia da Lei e da Ordem) são aplicadas às centenas em todo o Estado, executando o modelo desenvolvido na ocupação neocolonial do Haiti.

A participação das forças armadas na segurança pública do Rio de Janeiro não foi apenas um fenômeno passageiro da política de segurança no Estado, mas mudou qualitativamente seu modelo e sua forma de gestão, as adequando às necessidades atuais em relação às massas. Não cabia mais apenas escondê-las como fizeram as UPPs na esteira dos Grandes Eventos, agora era preciso, antes de tudo, discipliná-las.

A intervenção, que começou já destinada a terminar no dia 31 de dezembro daquele ano, deixou uma importante questão que seria respondida pelas urnas burguesas: quem seria capaz de aprofundar o programa neoliberal no estado, encarnando ao mesmo tempo a política de repressão preventiva às massas populares? O discurso de Witzel – que cruzava o fanatismo neoliberal com autoritarismo e boas doses de eugenia – pareceu competente a esses objetivos.

A PANDEMIA E AS DIFERENTES QUARENTENAS EM CIDADES CINDIDAS

No clássico do pensamento terceiro-mundista “Os condenados da Terra”, o psiquiatra, filósofo e revolucionário francês da Martinica Frantz Fanon se debruçou sobre a condição colonial sob a visão dos colonizados, pensando suas formas de consciência e subjetividade, e, a partir delas, suas possibilidades de emancipação. A despeito de a violência ter um papel central na obra fanoniana – um capítulo inteiro é dedicado ao tema, onde ele é entendido como potencial instrumento de manutenção ou de superação do jugo colonial – o que mais nos interessa aqui é a ideia de mundo cindido, compartimentado, que Fanon traz à luz ao perceber que o próprio espaço urbano do mundo colonial é dividido em dois: o mundo do colono e o mundo do colonizado. Uma cidade aqui se torna duas, e a “linha divisória” entre elas, a “fronteira”, é indicada pelos quartéis e delegacias de polícia.

A cidade do colono, segundo ele, “é uma cidade sólida”, com ruas bem iluminadas e limpas, onde não se vê o lixo, o esgoto ou sequer os pés dos senhores, “sempre cobertos por calçados fortes”. Uma cidade, sobretudo, de brancos e estrangeiros. Enquanto que a cidade do colonizado é tudo o que a cidade do colono não é. “Um lugar mal afamado, povoado por homens mal afamados”, onde “se morre não importa onde, não importa do quê”. Uma cidade “sem intervalos”, onde os homens vivem “uns sobre os outros” e “as casas estão umas sobre as outras”. Como Fanon conclui, “uma cidade de negros e árabes”[24].

Sem intenção aqui de cair em anacronismos e reduzir as contradições do nosso capitalismo dependente ao sistema neocolonial que subjugou povos africanos nos séculos XIX e XX, a ideia de cidade cindida é afeita à análise aqui desenvolvida, uma vez que, como demonstramos antes, também existem aqui os setores da cidade voltados para o depósito do excedente de mão de obra. Locais com características e limites bem próximos aos citados por Fanon. A caracterização do ambiente dos marginalizados é importante para nós porque, como todo processo fundamental da nossa história, a pandemia de COVID-19 não é vivida por todas as pessoas da mesma forma. E neste caso, a divisão classista e racializada do espaço urbano é determinante.

É sabido que a COVID-19 entrou no país atingindo essencialmente as classes mais abastadas. Apesar de a primeira morte do estado do Rio ter sido a de uma empregada doméstica de Miguel Pereira (nome não divulgado nas fontes jornalísticas a pedido da família) que foi contaminada no Leblon pela patroa que tinha acabado de voltar da Itália, a doença por várias semanas circulou majoritariamente entre as classes ricas de Niterói, da Zona Sul e da Barra da Tijuca. Tal realidade levou o governo do Estado do Rio de Janeiro a decretar quarentena obrigatória nas cidades da Região Metropolitana, realizando bloqueios nas entradas e saídas da capital e interrupção de todos os serviços não essenciais ao combate da pandemia no Estado.

É claro, numa realidade em que quase metade da população economicamente ativa vive na informalidade, sem poupança ou qualquer tipo de acesso a estrutura previdenciária, muitas vezes ganhando num dia apenas o suficiente para comer no outro, essas medidas de distanciamento social e quarentena vinham carregadas de uma sinistra contradição. Em âmbito federal o presidente Jair Bolsonaro (agora adversário de Witzel) operava sua política de desmobilização sistemática das medidas de isolamento social, não só no discurso ou nas atitudes anti-higiênicas, mas também na operação das políticas do Estado com o subfinanciamento do combate à pandemia e, principalmente, o abandono à própria sorte das famílias mais pobres, com o atraso na liberação do auxílio emergencial. Esse conjunto de políticas, somadas à ausência total de ações comunitárias voltadas a conscientização e combate à pandemia nos bairros e cidades mais pobres, fizeram a maior parte da população ignorar completamente o estado de emergência sanitária estadual em um dos maiores atos de desobediência civil da nossa história desde a revolta da vacina no início do século XX.

Ficava claro o caráter de classe da pandemia e sua concretização no plano territorial. Nos meses de abril e maio o epicentro da epidemia na região metropolitana transita das áreas abastadas da Zona Sul e da Barra da Tijuca para dentro das grandes comunidades como a Rocinha, e para regiões super-populosas da Zona Oeste e da Baixada Fluminense. Hoje Nova Iguaçu e Duque de Caxias despontam como os próximos grandes epicentros da doença. Na contramão do discurso sobre salvar vidas com o isolamento social, a implementação da política de saúde demonstra que na quarentena de Witzel se reproduz a lógica das cidades compartimentadas.

Enquanto no Leblon (bairro da Zona Sul da capital com boa oferta de hospitais) o primeiro hospital de campanha do Estado foi inaugurado no dia 25 de abril – 5 dias antes da data prevista para de inauguração dos hospitais de campanha prometidos pelo governo – cidades como Nova Iguaçu e São Gonçalo, locais de grande concentração de mão de obra sobressalente, amargavam o quinto adiamento da abertura das suas unidades de emergência para a pandemia, somando um mês de atraso e muitas vidas perdidas [25].

Hoje, na primeira semana de junho, enquanto o número de contaminados decresce radicalmente nas áreas abastadas e cresce vertiginosamente nas comunidades pobres, uma contradição comum é ver a qualquer hora do dia na televisão, gente bem alimentada, que passou a quarentena de forma confortável e não corre mais riscos de infecção, discutindo quando os pobres vão voltar a trabalhar.

MILITARIZAÇÃO DA QUARENTENA E O PAPEL DAS ESQUERDAS CONTRA O GENOCÍDIO

Em fevereiro de 2020, quando a crise sanitária causada pelo coronavírus ainda não tinha a América Latina como seu epicentro, o jornalista e militante uruguaio Raul Zibechi publicou no jornal mexicano La Jornada um artigo intitulado “Coronavírus: a militarização das crises”, onde, sem uso de muitas fontes, diz que “É necessário voltar aos períodos do nazismo e do estalinismo, há quase um século, para encontrar exemplos de controle de população tão extenso e intenso como os que acontecem na China, nesses dias, com a desculpa do coronavírus” [26].

Citando diversos mecanismos tecnológicos de controle usados para monitorar a circulação do vírus e o nível de isolamento da população, Zibechi conclui que Wuhan viveu durante os últimos meses sob um campo de concentração a céu aberto, no maior panóptico de vigilância da história. A despeito da terrível – e infelizmente corriqueira – equiparação entre o nazismo e o período de Stalin na antiga URSS, e nos esquivando de qualquer debate mais profundo sobre a experiência chinesa de contenção à COVID-19 (considerada exemplar pela OMS), uma questão me intrigou: por que, numa realidade em que as polícias brasileiras usam drones e avançados sistemas de câmeras de monitoramento para acompanhar o cotidiano das populações mais pobres na crise do capital, um intelectual de esquerda latino-americano precisa ir ao outro lado do mundo encontrar exemplos de gestão autoritária das crises?

O desenrolar da crise sanitária no Rio de Janeiro tornou ainda mais clara a importância de identificar corretamente em que locais do planeta as contradições do capitalismo se dão de forma mais radical e onde o controle social promovido a partir da vigilância e da violência do Estado previne a eclosão dos conflitos de classe.

A morte em massa das populações negras pela negligência no combate ao vírus se somou à tradicional política de assassinato em massa do Estado, que perdura durante a quarentena fluminense. Em abril, segundo mês da quarentena no Rio, o número de operações policiais de combate ao tráfico de drogas nas comunidades aumentaram 27,9% em comparação com o mesmo mês do ano anterior, quando ainda não havia nem pandemia, nem quarentena. A letalidade policial cresceu 57,9% em abril e 16,7% nos 19 primeiros dias de maio em comparação aos respectivos períodos do ano passado [27]. Entre as pessoas mortas está João Pedro, 14 anos, que depois de ter a casa fuzilada pela polícia e ser baleado, foi sequestrado pelas forças de segurança e só teve seu corpo 17 horas depois em um IML a 40 km de distância de São Gonçalo, onde morava. E também João Victor, 18 anos, morto pela polícia enquanto entregava cestas básicas em uma ação comunitária de combate à fome, na Cidade de Deus.

Estes números e rostos, que me motivaram a escrever este texto – tamanho o absurdo que se revelou a verdadeira face da quarentena aqui – precisam servir de estímulo aos partidos, movimentos sociais e à esquerda como um todo no sentido de reconhecer a centralidade que o genocídio da população negra tem para a manutenção da ordem social burguesa no Brasil. É preciso não mais tratar nossas pautas como meras bandeiras movimentistas ou eleitorais, mas como parte fundamental da luta pela construção da revolução brasileira.

Usar nossos aparelhos de contra-hegemonia nesse momento – quando inclusive pessoas brancas e classes médias se tornam alvo do fascismo – para destruir os pânicos morais, denunciar a cisão das cidades e a farsa da política de guerra às drogas é fundamental para colocar abaixo os limites impostos pela dependência e pelo subdesenvolvimento. Somente organizando o povo historicamente marginal nos processos principais do capitalismo construiremos o bloco histórico fundamental de luta contra o fascismo. Esse fascismo que hoje nos assola a todos enquanto sociedade foi tecido fio a fio em cada operação policial, prisão arbitrária ou assassinato promovido pelo estado em seu período de normalidade. Isso não pode ser esquecido e deve ser superado.

Para isso é necessário encerrar as décadas de divórcio entre a esquerda, sua intelectualidade e os interesses concretos do povo. Essa tarefa, num contexto de circulação global de ideias e conhecimentos, envolve não só uma renovação do marxismo brasileiro, mas de toda teoria crítica ocidental que se encontra ainda desconectada da sua razão de existir e absorvida pela farsa do fim da história iniciada a partir da vitória da democracia liberal burguesa sobre as experiências socialistas no final do século XX. Só com uma teoria da história na qual a democracia liberal não seja a forma final da experiência humana podemos enxergar suas contradições, explorar suas fragilidades e construir a nossa vitória.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[10] DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. Balanço das greves de 2016, São Paulo, n. 84, ago. 2017. Disponível em: https://www.dieese.org.br/balancodasgreves/2016/estPesq84balancogreves2016.html. Acesso em: 04 jun. 2020.

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[18] (FANON, 1968, p. 29).

[19] PENNAFORT, Roberta. “A polícia vai mirar na cabecinha e… fogo” diz novo governador do Rio, Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo, 01 nov. 2018.Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,a-policia-vai-mirar-na-cabecinha-e-fogo-diz-novo-governador-do-rio,70002578109. Acesso em: 05 jun. 2020.

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[24] (FANON, 1968, p. 28-29).

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[27] (REDE OBSERVATÓRIOS DA SEGURANÇA, 2020).