A “nova normalidade” é mais miséria e exploração
Giovanni Frizzo*
“Não vejo a hora disso tudo acabar e voltar ao normal!”. Já pensaste ou disseste essa frase nos últimos meses? Ou melhor: quantas vezes já disseste isso hoje? São tempos terríveis em que uma gripezinha já ceifou a vida de mais de 50 mil pessoas e infectou mais de um milhão (segundo estimativas mais sérias que as governamentais, os números chegam a três vezes mais do que isso). Estamos vivendo uma espécie de laboratório da precarização que tem sido tratado pela hipocrisia burguesa como ajustes na vida e que eles têm chamado de uma “nova normalidade”.
Desde o início da pandemia, a vida da classe trabalhadora tem sido uma batalha constante contra patrões e governos: tentando se manter em isolamento mesmo quando o poder público faz de tudo para botar a população que trabalha em risco de contaminação e, ao mesmo tempo, enfrentando a política do “lucro acima da vida” que aumentou as demissões, a diminuição salarial, a perda de direitos e a miséria. Sem contar o desafio de tentar manter a sanidade mental em meio à tantos ataques e restrições que o contexto político e sanitário nos coloca.
Na dinâmica da luta de classes, a burguesia não perde tempo e impõe seu projeto de dominação sobre o povo trabalhador de forma dramática e cruel. A pandemia do CoronaVírus assolou o mundo em meio à uma das mais profundas crises do capitalismo. Assim, os grandes ricos que determinam a nossa vida através do deus mercado têm agido para potencializar seus lucros durante e após esse contexto.
Para se ter uma ideia de como as grandes corporações capitalistas estão agindo, observemos essa denúncia da Federação Sindical Mundial que retrata a sanha exploradora para lucrar com a morte e adoecimento da grande maioria da população mundial que vive do seu trabalho.
“Até hoje, existem centenas de grupos científicos trabalhando para desenvolver uma vacina e medicamentos antivirais por meio de “parcerias” entre estados e grupos empresariais. Ou seja, através de uma forma de pesquisa pública, que beneficiará as indústrias farmacêuticas que venderão a vacina e os medicamentos (como é o caso da “colaboração” entre os grupos “Johnson & Johnson” e “Sanofi” com o Departamento dos EUA da Saúde). Ao mesmo tempo, os imperialistas, os mesmos imperialistas que banham o sangue das pessoas em todo o mundo para servir seus próprios interesses, organizam maratonas solidárias para arrecadar fundos para a nova vacina” [1]
Ou seja, através do investimento de recursos públicos e de doações individuais de pessoas que acreditam estar fazendo o bem, a indústria farmacêutica mundial receberá uma fonte gigantesca de lucratividade através da vacina produzida em pesquisas públicas no Brasil e no mundo. Sem contar a compra milionária feita com recurso público pelo governo Bolsonaro de Cloroquina, uma substância que sequer é recomendada pela Organização Mundial de Saúde para o tratamento de pessoas diagnosticadas com Covid-19 (em alguns países inclusive está proibida a utilização desta substância com este fim). Portanto, não tem nada de “novo” neste “normal”.
Ainda, a normalidade dos esquemas de corrupção empresarial e governos seguem a todo o vapor durante a pandemia. A cada dia o noticiário informa das denúncias e investigações sobre o escoamento de recursos públicos – que deveriam ser utilizados para políticas de saúde e enfrentamento à Covid-19 – para a conta de empresas, organizações sociais e demais setores privados que recebem dinheiro público (inclusive sem processos de licitação) e não entregam o que foi contratado. Aqui também não temos nada de novo neste “normal”.
No mundo do trabalho, as supostas novidades são as formas precarizadas de relações trabalhistas que aprofundam as perdas remuneratórias e as garantias de direitos: cortes de salários, suspensão de contratos, demissões, jornada flexível, home-office, informalidade, trabalho por aplicativos e empreendedorismo, são expressões das precárias formas ajustadas de superexploração do trabalho neste período e que se manterão como regra para o pós-pandemia.
Até mesmo no setor de serviços vemos que a “nova normalidade” será prejudicando a qualidade do atendimento. Praticamente se tornará regra os atendimentos remotos de saúde, aqueles em que se utiliza programas de computador para consultas médicas, estes em que não há sequer relação pessoal para tratamentos e somente o prontuário define a droga legalizada que será administrada 2 ou 3 vezes ao dia (a indústria farmacêutica agradece outra vez), sem contar os trabalhadores e trabalhadoras da saúde que, ficando sem jornada de trabalho definida, trabalharão por produtividade: tantas consultas em tanto tempo, tantos remédios para tantos usuários, tantos atendimentos em tantos dias. E isso definirá sua remuneração ao final do mês.
Na educação, a ordem mágica é a Educação à Distância. Não importa a formação dos professores e professoras, as condições colocadas, a falta de acesso à internet de estudantes, conteúdos descontextualizados por plataformas enlatadas de informações, a rotina interminável de atendimento individual à estudantes e o abandono daqueles que não acessam internet. Sobre isto, no final do mês de abril o IBGE divulgou que uma em cada quatro pessoas com mais de 10 anos de idade não tem acesso à internet. Ou seja, 25% das pessoas já estão descartadas do acesso à educação se ofertadas nesta modalidade.
A utilização das forças armadas para operar diversos serviços por parte do governo federal também demonstra a precariedade do atendimento. Desde obras de infraestrutura até a substituição de servidores do INSS agora são realizadas por militares que sequer tiveram formação e treinamento para tais serviços.
É preciso, cada vez mais, compreendermos que o desmonte do serviço público significa a destruição de direitos sociais do povo trabalhador. Cada privatização realizada pelos governos subordinados aos grandes ricos, representa perda de direitos e condições de vida da imensa maioria da população. E mesmo neste contexto em que a realidade é pedagógica ao demonstrar que somente a saúde pública e o Sistema Único de Saúde (SUS) são capazes de salvar vidas, Bolsonaro, Rodrigo Maia (presidente da Câmara dos Deputados), Alcolumbre (presidente do Senado), governadores e prefeitos só falam em recuperar a economia através da iniciativa privada. A vida do povo trabalhador nunca é prioridade para quem está à serviço do mercado capitalista.
Essa nova normalidade não tem nada de tão novo assim. É mais do mesmo com requintes de crueldade. E nada mais ilustrativo que as próprias palavras dos cruéis, o presidente diz: “pessoas vão morrer, e daí?”; o ministro da economia – Paulo Guedes – diz: “já colocamos uma granada no bolso do inimigo” (os inimigos do governo Bolsonaro são 11 milhões de servidores públicos federais que terão salários congelados até 2022); a ministra da mulher, da família e dos direitos humanos – Damares Alves – diz: “o seu ministério [ministério da saúde], ministro, tá lotado de feminista que têm uma pauta única que é a liberação de aborto” (ao invés de preocupar-se com o enfrentamento à Covid-19, a patética frase só demonstra o viés atrasado e de imposição religiosa do governo).
Há outro setor da burguesia que repete como vitrola quebrada a suposta “nova normalidade”, um setor que aparentemente não está tão satisfeito assim com o governo. Especialmente capitaneado pelas grandes corporações midiáticas, este setor quer inverter a consciência dos trabalhadores e trabalhadoras para o reforço da ideologia burguesa. Para eles, o “novo normal” é sem radicalização (sempre tentando equiparar a esquerda revolucionária com ditaduras fascistas); é cheio de criatividade empreendedora em que o desempregado e a desempregada, sem outra alternativa, se submetem á produzir qualquer coisa de qualquer jeito para tentar uma fonte de renda que os permitam, talvez, se alimentar mais de uma vez ao dia.
Ao final, devemos nos perguntar: o que é que tem de tão novo assim nessa “nova normalidade”? No máximo, talvez, nos acostumaremos a usar máscaras ao sair à ruas. De resto, a nova normalidade é mais miséria e exploração.
Sabendo disso, talvez devamos pensar não mais em voltar ao normal, mas construir um novo mundo em que a vida esteja acima do lucro… ou melhor, talvez um mundo em que sequer haja lucro e que a vida seja plena, humana e solidária. Tal como as experiências socialistas insistem em demonstrar para os capitalistas que há, sim, possibilidades de emancipação humana.
*Professor da UFPel e militante do PCB de Pelotas-RS
[1] Disponível em: http://unidadeclassista.org.br/geral/declaracao-da-fsm-sobre-o-jogo-de-negocios-relacionados-a-vacina-covid-19/