Raça, classe e revolução

imagemLivro ‘Raça, classe e revolução’ discute luta antirracista nos Estados Unidos

Organizada por Jones Manoel e Gabriel Landi, obra se aprofunda na luta das comunidades afrodescendentes contra a segregação racial no país

OPERA MUNDI

Victor Farinelli
Santiago (Chile)

As revoltas sociais surgidas nos Estados Unidos desde o assassinato de George Floyd são um dos grandes acontecimentos políticos deste conturbado 2020, e já estão presentes em um livro lançado recentemente.

Trata-se de Raça, classe e revolução – A luta pelo poder popular nos Estados Unidos (Autonomia Literária, R$ 35 – em pré-venda), organizado por Jones Manoel e Gabriel Landi. Na verdade, o livro foi escrito antes das atrocidades cometidas pelos policiais estadunidenses em Minneapolis, e, portanto, não trata especificamente sobre o caso de Floyd, mas se aprofunda na questão da luta das comunidades afrodescendentes contra a segregação racial no país.

Opera Mundi entrevistou o historiador, educador popular e youtuber Jones Manoel, um dos mais destacados influencers progressistas do Brasil, que fala sobre este trabalho e sobre como o contexto social e político atual dos Estados Unidos confirma muitos dos elementos que os autores descrevem no livro.

Na entrevista, ele também comenta sobre a luta antirracista no Brasil, as diferenças com a realidade dos Estados Unidos e que elementos do seu livro se aplicam à questão racial brasileira.

Opera Mundi: Você escreveu a obra junto com Gabriel Landi. Quando tiveram a ideia de escrever sobre este tema e o que os inspirou?

Jones Manoel: A Coleção Quebrando as Correntes surgiu em maio de 2019, depois de uma atividade organizada pela Boitempo. Eu, Gabriel Landi e André Takahashi (que trabalha na Autonomia Literária) comentamos como não tinha quase nada no mercado editorial brasileiro sobre o marxismo africano e periférico de maneira mais geral. Essa ausência de material não só dificulta os combates políticos, como explica, em parte, a força do liberalismo em movimentos negros, feministas, LGBTs, ecológicos etc. Aí decidimos criar a Coleção e lançamos, cerca de 40 dias depois, o Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista. O livro, felizmente, foi um sucesso. Em breve, bate a marca de 10 mil cópias vendidas, o que é gigantesco para o mercado editorial brasileiro. Aliado a isso, ano passado, fizemos o lançamento do livro em 30 cidades com milhares de pessoas acompanhando. Agora chega o segundo volume da coleção, o Raça, classe e revolução – A luta pelo poder popular nos Estados Unidos e, ano que vem, ainda no segundo semestre, vem a terceira publicação.

OM: Inevitável relacionar o livro com o que vem acontecendo naquele país desde o assassinato de George Floyd. Como os acontecimentos atuais nos Estados Unidos estão presentes na obra? Que elementos a gente pode ver hoje nas ruas daquele país e que vocês abordam no livro?

JM: Os protestos contra o assassinato de George Floyd não foram surpresa para nós. Ao contrário da mitologia liberal e imperialista, assimilada até por parte da esquerda, é uma impostura falar dos Estados Unidos como uma democracia sem maiores considerações. Temos, na realidade, uma democracia burguesa que se configura como uma etnocracia, uma democracia para “o povo dos senhores”, como diria Domenico Losurdo. Um Estado formado na base do extermínio de 18 milhões de seres humanos dos povos originários, chamados de “Peles Vermelhas”, e que manteve a escravidão após sua independência (quando se chamam os Estados Unidos de a “democracia mais antiga da modernidade”, o pressuposto é que existe democracia com escravidão) e, não custa lembrar, a escravidão só acabou com uma Guerra Civil que matou quase 1 milhão de pessoas.

Após a escravidão, foi montado um regime de segregação racial, um dos apartheids mais longos do mundo, que durou oficialmente até 1965. Com o fim das chamadas leis Jim Crow, começa a era da nova segregação, baseada na “guerra às drogas”, encarceramento em massa e expansão do aparelho de justiça criminal. É importante não perder de vista que os Estados Unidos têm a marca da maior expansão penal-carcerária da história fora de qualquer situação de guerra ou Estado de Exceção. São mais de 2 milhões de presos, a imensa maioria negros e latinos.

É um país crivado de contradições com explosões periódicas. O nosso livro, o Raça, Classe e Revolução, ajuda não só a entender esse histórico de racismo estrutural, que foi a grande inspiração do regime nazista, como os desafios políticos para destruir esse regime de morte, prisão e exploração.

OM: Muitos outros casos de negros assassinados por policiais nos Estados Unidos também geraram revoltas sociais importantes. Alguns analistas fazem a comparação, dizendo que, desta vez, elas estão sendo mais longas, com maior apelo a nível nacional, e inclusive mundial, e por isso poderia gerar maiores consequências políticas. Você concorda com esta avaliação? O que diferencia a reação atual a de outros anos? Que consequências mais ou menos profundas que as anteriores você acha que podem ser produzidas?

Reprodução
Livro ‘Raça, classe e revolução’, organizado por Jones Manoel e Gabriel Landi
JM: É inegável que os protestos de 2020 tem maior amplitude nacional e duração. Isso se deve, também, há um clima maior de politização e radicalidade da juventude do país, reorganização da classe trabalhadora e crescimento de organizações revolucionárias, como o PSL dos Estados Unidos (Partido do Socialismo e Libertação, uma organização marxista-leninista). Ao mesmo tempo, porém, é impossível superar o racismo no capitalismo. A esquerda do país, mesmo com todo avanço, continua presa, em sua maioria, no paradigma do neoliberalismo progressista. Teremos mudanças institucionais, transformações de algumas políticas públicas, mas assim que a conjuntura política mudar, que acontecer um refluxo dos movimentos de massa, a ação, como sempre, será tentar destruir as poucas mudanças aplicadas. O combate ao racismo nos Estados Unidos, como ensinaram os Panteras Negras, passa por questionar as estruturas econômicas e políticas do país, colocar em questão a tomada do poder, a revolução. Para muitos, falar em revolução é algo utópico. Eu considero utópico de verdade falar em fim pacífico e institucional do racismo num país com mais de 300 anos de máxima exploração sobre os trabalhadores e trabalhadoras no geral e a população negra em particular.

A luta por mudanças nas políticas públicas, especialmente nas políticas de segurança, deve ser uma ponte para organizar os explorados e oprimidos visando a conquista do poder. É isso que as organizações e líderes políticos presentes em nosso livro ensinam. E seu ensinamento é profundamente atual.

OM: Ainda pegando carona na questão das consequências, mas especificamente com relação à eleição presidencial que ocorre este ano nos Estados Unidos. Como você acha que essa reação pode influir no processo eleitoral e talvez até no resultado das urnas?

JM: A influência, infelizmente, será pouca. O sistema político dos Estados Unidos é um dos mais fechados do mundo. Poucos regimes eleitorais são tão blindados a pressão das massas como o estadunidense. O debate entre Trump e Biden é, como sempre, a “escolha” entre duas faces da mesma moeda. Um protofascista como Trump ou um assassino educado como Biden. É claro que tem certa importância o fato de Biden não verbalizar o discurso reacionário de Trump. Esse fato pode ter algum impacto no crescimento nacional e mundial da extrema-direita. Mas é apenas isso. Ver diferenças programáticas profundas entre o candidato republicano e o democrata é, no melhor dos casos, uma grave ilusão.

OM: Que influência essa luta pelo poder popular nos Estados Unidos tem nos movimentos pela mesma causa no Brasil? Não só na reação atual pelo caso de George Floyd, mas em tudo o que vocês retratam no livro. O leitor encontrará que paralelos com a realidade brasileira?

JM: Sim, eu creio que o leitor/a brasileira do Raça, Classe e Revolução vai achar muitas lições importantes para pensar o Brasil. Lá como cá, o antirracismo de mercado – essa visão liberal de que é possível combater ou diminuir o racismo a partir de “representatividade” negra no mercado (como negros como CEO de grandes empresas) e no Estado burguês, a noção de “pretos no topo”, “capitalismo negro” – é inútil para qualquer luta de emancipação, transformação radical. Aliado a isso, é preciso compreender a ligação orgânica, inseparável, entre raça e classe, seja nos Estados Unidos ou no Brasil. Eles ainda têm uma burguesia negra e no livro é possível encontrar um rico debate que mostra que a burguesia negra não é uma aliada da luta antirracista. O trabalhador branco pobre é um aliado, a burguesia negra não. A luta antirracista, para ser séria e consequente, precisa ser anticapitalista. A luta anticapitalista não deve imaginar um proletariado mítico, branco, europeu que não existe no Brasil. Precisa compreender que a materialidade da classe trabalhadora no Brasil se expressa, também, a partir da sua raça. A cor da Revolução Brasileira é negra. E, sem a Revolução Brasileira, podemos remediar as dores, mas nunca destruir o problema.

OM: É correto fazer uma diferenciação da luta pelos direitos das comunidades afrodescendentes nos Estados Unidos com o que acontece no Brasil? Essa luta pelo poder popular no Brasil, considerando a questão racial, é diferente da que ocorre nos Estados Unidos, e em que aspecto?

JM: Há muitas diferenças, dado o Brasil ser um país dependente, subdesenvolvido e que, inclusive, é cada vez mais dominado pelo imperialismo estadunidense – com cumplicidade e parceria da burguesia interna. Já os Estados Unidos são um país imperialista, a superpotência-guia do capitalismo global. Só a partir dessa caracterização já temos várias diferenças e particularidades a serem trabalhadas. Contudo, diria que, no geral, os problemas da estratégia política, alianças, organização, comunicação e afins, são muito parecidos. Temos o mesmo problema de fundo geral: buscar um antirracismo revolucionário que compreenda que a centralidade da luta antirracista passa por organizar os explorados e oprimidos, pensar a revolução, a tomada do poder, transformações radicais na economia e cultura, ou achar que é possível e desejável cobrar apenas mais políticas públicas, representatividade, separar negros e brancos como se essa fosse a contradição central, pensar e operar a partir de uma lógica de “lugar de fala”. O primeiro caminho, difícil e longo, pode abrir possibilidades de vitória. O segundo, embora sirva para melhorar no imediato a vida de algumas poucas pessoas, não trará qualquer mudança na vida das maiorias desse país.