Racismo contra a democracia

Por Jeferson Garcia, membro da Coordenação Nacional do Coletivo Negro Minervino de Oliveira e militante do PCB- Maringá

um panfletismo reacionário-feudal atravessa toda a obra de Gobineau:
trata-se de um reacionário militante e sua teoria das raças é uma teoria da luta contra a democracia

Assim, a teoria das raças – em sua forma primeira e primordial – fora liquidada cientificamente já na época da Revolução Francesa. Porém, como as forças de classe que existiam por detrás dela não desapareceram com a revolução e a luta contra a democracia seguia seu curso e adotava formas constantemente novas, era natural que a teoria das raças ressurgisse sob novas formas. As mudanças sucessivas da teoria das raças são determinadas pelas lutas de classes […]

Gyorgy Lukács – A destruição da Razão

As expressões racistas em território nacional cresceram nos últimos anos com o desenvolvimento do autoritarismo e conservadorismo brasileiro, que carrega traços e simpatias com o pensamento fascista, sendo inclusive chamado diversas vezes de “neofascismo”, mais pela característica ideológica e menos pelas condições materiais que sustentam um Estado fascista. Todavia, há um elo de ligação ideológico das posições racistas de hoje e do racismo fascista de ontem, que é o seu objetivo fundamental, produto das necessidades do imperialismo: combater a democracia e fazer a defesa dos privilégios de classe.

Não há, neste texto, qualquer ilusão com o projeto da democracia. Pelo contrário, o horizonte aqui é a emancipação humana, o fim da propriedade privada dos meios de produção da vida como formas imprescindíveis para o fim do racismo, enquanto forma de dominação e opressão, com vistas a maior exploração do trabalho. Porém, é imprescindível compreender os caminhos e os interesses em disputa na luta de classes, para impor barreiras ao avanço do capitalismo e do autoritarismo. E nesses períodos distantes, um mesmo fio tece o ataque à democracia.

Dois períodos históricos – que possuem aspectos de ruptura, mas também de continuidade – carregam um elemento que ajuda a entender por que o racismo nasce contra a democracia. No final do século XVIII, com a Revolução Francesa, a ideia de igualdade é propagandeada, chegando aos interesses dos povos colonizados e até em algumas revoluções, como o caso da haitiana (1791-1804). A democracia abriu uma brecha para a ideia de que todos os homens são iguais e, se assim o são, os negros haitianos tinham direito à sua autodeterminação, como as demais colônias também deveriam possuir. A democracia, neste sentido e em alguns contextos específicos, criava entraves ao imperialismo-colonialista. Por isso, a formação de um pensamento racista foi (e ainda é, enquanto houver capitalismo) imprescindível para “deixar claro” que a igualdade era somente entre os homens – e nem todos são homens, alguns são negros. E, para esse pensamento, negros não são seres humanos. Hoje, esses privilégios continuam sendo constantemente defendidos, como a posse da terra – em mãos brancas e de famílias herdeiras da tradição colonialista –, as vagas em universidades, nos espaços políticos e trabalhos mais bem remunerados. Toda essa defesa se estruturou historicamente com autores como Gobineau e hoje reverberam nas falas de homens públicos, como o ex-presidente Jair Bolsonaro.

A teoria das raças – de Gobineau, Chamberlain, Rosenberg, Gumplowicz, dentre outros –, surge, segundo Lukács – em seu famoso A destruição da razão – dessa necessidade específica das lutas de classes e se desenvolve conforme essas lutas se acirram. Esta teoria racialista – fruto da árvore da decadência ideológica da burguesia – além de justificar as relações sociais colonialistas, é também uma defesa dos privilégios de classe feudais contra a igualdade de todos os homens posta pela democracia burguesa, que vai ser adaptada às necessidades da ordem do capital.

Como diz Lukács, o ponto de partida e tendência fundamental de Gobineau é a luta contra a democracia, contra a ideia ‘anticientifica’ e ‘antinatural’ da igualdade dos homens. Desse modo, o racismo nasce contra a democracia, contra a ideia de progresso universal da humanidade, contra o humanismo enquanto categoria genérica e, desse modo, contra a ideia de razão, a possibilidade do conhecimento objetivo da realidade, por meio de processos intelectivos e não simplesmente pela intuição – como apregoavam diversos pensadores irracionalistas que deram fundamento ao fascismo e que usaram deste princípio para o combate à democracia. O roubo, o saque e o domínio imperialista exigiam uma justificação que fugisse da realidade e se assentasse sobre as bases de um processo civilizatório.

Não à toa, ainda hoje, uma das formas de se combater os direitos sociais conquistados historicamente pela classe trabalhadora e as políticas sociais direcionadas a população negra, é por meio de defesas racistas e preconceituosas dos privilégios de classe, numa tentativa de desqualificar essas lutas a partir de preceitos e valores próprios do pensamento liberal, racista e irracionalista, como a liberdade, a meritocracia, a desigualdade natural e a missão dos eleitos, aqueles que possuem uma diferenciação não só fenotípica, mas também intuitiva. Um exemplo de desqualificação é o que foi realizado em relação à luta quilombola, apresentando-a como uma ação de preguiçosos, que não merecem as terras que possuem e que são constantemente roubadas. Assim, a ideologia calcada no senso comum, nas tradições e cultura popular, nos meios de comunicação e atuação política da direita, atua desumanizando essas pessoas (como fez o ex-presidente) e defendendo assim os interesses dos grandes proprietários de terra e grupos ligados ao latifúndio, tradicional ou moderno (agronegócio).

Todavia, o racismo não se expressa somente nessa forma de violência simbólica, destruindo a imagem, símbolos e valores de comunidades negras e indígenas. Ela defende os privilégios de classe quando, além disso, nega políticas que visam o combate ao racismo e as contradições mais gerais. Inclusive, algumas vezes, utiliza de uma pessoa negra para a quebra e redução de políticas de enfrentamento ao racismo brasileiro, como fez com a Fundação Palmares.

Assim, o conservadorismo atual vem paulatinamente combatendo políticas sociais, como bolsa família, política de cotas, a luta por demarcação das terras indígenas e quilombolas. Todos os elementos que a correlação de forças na democracia burguesa permite pequenos avanços, o que ilude grande parte do movimento negro com a esperança gota a gota no reformismo. É assim que o próprio pensamento conservador combate à democracia burguesa, que também é seu sustentáculo. Em períodos de crise do capital, de queda tendencial da taxa de lucro, a própria democracia é atacada e o elemento racial aparece como um dos meios para seu combate, como foi feito nas versões mais duras da história, como no combate à revolução haitiana, ao movimento negro brasileiro e estadunidense, ao combate ao abolicionismo, ou com a maior exploração da força de trabalho de negros e imigrantes, com o aumento da jornada de trabalho ou com a redução do valor dessa força de trabalho.

Os tempos em que se estabeleceram o fascismo e aquilo que chamamos no Brasil de “neofascismo” são distintos, vários elementos não são reproduzidos e inclusive o “neo” é mais uma sobrevivência dos elementos ideológicos do primeiro sem a sua estrutura política e econômica. Tanto o racismo quanto o fascismo/nazismo (e suas expressões ideológicas autoritárias) são resultados das lutas de classes que se apresentam ideologicamente a partir do biologicismo e da “ciência” na filosofia, sociologia e política. O ponto arquimediano, base teórico ideológica dessas concepções teórico-políticas, é o irracionalismo filosófico, que fundamentou a teoria das raças, a partir da negação da objetividade, da defesa da intuição de sujeitos que compreendem o mundo por meio que questões interiores, o combate a ciência e a razão, o combate a democracia burguesa, a, tentativa de volta ao passado como negação do progresso humano e a defesa do autoritarismo. Os sujeitos que são superiores, segundo o irracionalismo de ontem e hoje, se sentem superiores, sabem quem são. Essa compreensão aparece, inclusive, na relação entre brasileiros e trabalhadores imigrantes (haitianos, angolanos, etc.). Há, nesses princípios, uma defesa moral muito próxima das respostas intuitivas do século XIX, que não aparece hoje claramente como um elemento racial, mas cultural – um racismo sem raças – um elemento importado diretamente de Paris pelo racismo brasileiro, que é subordinado ao pensamento de fora. Todos esses são elementos de continuidade que tiveram nascedouro no pensamento irracionalista, analisado por Gyorgy Lukács, mas que ainda estão postos na ordem do dia, pois as forças de classe que existiam por detrás dela não desapareceram.

A crítica da ideologia racista pressupõe expor suas falsificações filosóficas, a distorções das questões fundamentais da história e o concomitante aniquilamento de toda conquista da humanidade. Muda-se o conteúdo, a forma, o método, o tom, de acordo com o adversário, como diz Lukács. Mas há uma linha de continuidade entre a base da teoria das raças, o reacionarismo do século XIX e as expressões conservadoras e reacionárias do atual conservadorismo brasileiro. O pensamento irracionalista, em sua gênese, tem como elementos centrais a depreciação da razão, a glorificação da intuição, a recusa do progresso sócio-histórico e a criação de mitos. Hoje, é possível afirmar que ele mudou de rosto mas não de natureza.

Não é à toa que no Brasil passamos momentos de tensão em 2022, devido ao clamor por um golpe militar, do qual hoje temos mais informações e provas, ligadas ao ex-presidente e às forças militantes – tendo como resultado o fatídico 08 de janeiro de 2023. A defesa da democracia, por nós, deve ser sempre realizada em relação ao combate às expressões reacionárias. Todavia, não devemos depositar nossas forças em apenas defendê-la.

É urgente entender que o racismo é um elemento de luta contra a democracia e para combatê-lo de maneira eficaz, é necessário um movimento negro popular, que lute para além dos espaços institucionais e para além da democracia burguesa. O racismo, como dizia Eduardo Galeano, produz amnésia. E ela faz com que esqueçamos que é a democracia que durante todo o século XX permitiu as cenas mais bárbaras do racismo em nome da liberdade. Por isso, o projeto antirracista precisa, portanto, ir para além da democracia, da subordinação política ao Estado, com um projeto de emancipação humana que chamamos de socialismo, pensado no conjunto de um movimento negro popular que se organize a partir da necessidade histórica da Revolução Brasileira.

Referências

Lukács, G. A Destruição da Razão. São Paulo: Instituto Lukács, 2020b.

LUKÁCS, György. Essenciais são os livros não escritos: últimas entrevistas. São Paulo: Boitempo, 2020.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América latina. Porto Alegre: L&PM. 2016.

MOURA, Clóvis. A sociologia posta em questão. Editora Ciências Humanas -São Paulo, 1978.

WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2012.