Luta de Classes e Política de Saúde da População Negra
Diego Francisco, Militante do PCB/PE e do Coletivo Negro Minervino de Oliveira/PE
Sempre, o óbvio precisa ser Negritado. O Sistema Único de Saúde e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra não são dádivas de governantes ou parlamentares progressistas, mas fruto de lutas empreendidas por Mulheres e Homens Negras deste país. Sim, as mulheres e homens negros deste país são lutadores com diversas conquistas no embate entre classes.
Observar as disputas entre os(as) trabalhadores(as) e as classes dominantes nesse país, seja na dinâmica local da cidade do Recife seja no contexto mais amplo do Brasil, nos aponta o caminho para uma quadra histórica tão vil.
Data de épocas tão remotas quanto o momento da chegada das primeiras pessoas trazidas violentamente de África para o Brasil a luta de da População Negra (PN) por igualdade de condições de vida neste país. Distante do que fora anunciado durante muito tempo, o processo escravagista não foi harmônico nem docilizado, do contrário, fora marcado por embates e resistência.
Clóvis Moura (2013) define muito bem a estratégia da Quilombagem – movimento que antecipa em muito o abolicionismo e possuidor de papel fundamental para o término do regime escravista. Originado no final do século XVI, a Quilombagem tem por principal característica a permanente articulação entre grupos negros rebeldes e fugitivos, gênese da organização dos Quilombos, esses espaços de resistência causaram contínua preocupação aos senhores de escravos e ao Estado.
O mesmo autor também nos revela a existência de Quilombos no país desde 1573 e destaca os diversos existentes o Quilombos os de Ambrósio (1726-1759) em Minas Gerais e Palmares (1630-1710) onde atualmente se situa o estado de Alagoas. Este último se conformou enquanto uma República que foi combatida e destruída pelo Estado Colonial brasileiro e pelos senhores de Escravos (MOURA, 2019; 2020) .
Neste sentido, mesmo após o dilatado e pactuado processo de abolição, sendo o Brasil o último país das Américas a fazê-lo, às pessoas negras não foi permitido nenhum tipo de reparação ou oportunidade. Em verdade, os únicos indenizados por quase três séculos de escravidão foram os nefastos “senhores de escravos” que, além de toda riqueza acumulada do peverso período da escravidão, ainda foram recompensados financeiramente.
Durante o decorrer de todo o século XX, às mulheres negras e homens negros do país foi vedado o direito à educação, ao trabalho e a moradia, contudo, esta situação foi sempre contestada, por vezes reivindicando dentro da ordem estabelecida, por vezes realizando a transformaçaõ desta.
Ainda Clóvis Moura (2019) nos conta que estes trabalhadores e trabalhadoras possuíam totais condições de seguir realizando os mais diversos ofícios que laboravam no período escravagistas, agora remunerados como trabalhadores assalariados na dinâmica capitalista, contudo, a estratégia do Estado brasileiro foi a importação de mão-de-obra branca como forma de garantir o braqueamento da população e o extermínio do negro.
Este extermínio foi realizado através do bloqueio das pessoas negras ao mercado de trabalho, ao homem negro restou a informalidade ou os trabalhos mais árduos, às mulheres negras, a continuidade do trabalho interno nas casas de pessoas brancas, agora enquanto trabalhadoras domésticas. As crianças negras foram impedidas de ingressarem nas escolas, os mocambos formados nos centros das cidades foram destruídos, e, a PN foi obrigada a viver à margem, no que hoje conhecemos como favelas e periferia. Esta história nos é muito bem contada por Lélia Gonzalez (2020), Beatriz Nascimento (2006) e Clóvis Moura (2019) .
Aqui no Recife, por exemplo, o famigerado Agamenon Magalhães encampou uma perseguição e destruição às moradias negras no centro e aos terreiros de religiões de matrizes africanas, deixando essa última ação a cargo dos psiquiatras de plantão, dentre eles o famoso Ulysses Pernambucano (SILVA, 2006).
Toda esta violência foi sempre contra atacada por meio da organização da PN em Frentes Negras, Congressos, Clubes, Escolas de Samba, Maracatus, Afoxés, Jornais, entre diversas outras iniciativas que visavam a integração do Negro na República fundada, integração do negro no que em verdade era a a sociedade classista brasileira que se reformulava sem tranformar suas estruturas no período pós 1888.
A proposital não integração igualitária do Negro na sociedade, mesmo após tentativas dentro da própria ordem, nos mostra que o Poder Negro no brasil só pode ser exercido pela desestruturação desta sociedade construída, e esta transformação necessita de organização e Poder Popular. A exploração da força de trabalho das e dos trabalhadores negros no país é quem estrutura um quadro tão desigual e de acentuada concentração de terras e riquezas.
Embora nem sempre documentadas, a realidade e as lutas da PN no período pós-abolição nos são detalhadas nas histórias narradas por nossos familiares, em obras biográficas, como “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus (2014) ou romances como “Becos das Memórias” de Conceição Evaristo (2020), e nos evidenciam toda estratégia utilizada pela PN no país, para sobreviver frente a tanta exploração e disparidade.
Nos mais distintos contextos da conjuntura política brasileira, as organizações negras conviveram principalmente com o silenciamento e, por vezes, com a ilegalidade. Ganham destaque mesmo durante o período da Ditadura empresarial-militar (1964-1981), a tomada das ruas para a fundação do Movimento Negro Unificado (RIOS, 2012) e a luta das mulheres, mormente Negras, no processo de Reforma Sanitária brasileira e criação do SUS (COSTA, 2009).
No período de abertura do recente regime militar também são conquistadas pelos movimentos negros as marchas em alusão ao centenário da abolição e a participação em aparelhos do Estado como conselhos e na criação de órgãos estatais como a Fundaçao Palmares (RIOS, 2012).
Ao que se refere ao período posterior às eleições diretas e à CF/1988, a luta por condições dignas possui enorme relevância a Marcha Zumbi dos Palmares de 1995 (1995), quando a capital do país foi ocupada pelos Movimentos Negros que reividicavam melhores condições de Moradia, Trabalho, Escolaridade, Saúde, Lazer, etc. Neste evento um Grupo de Trabalho Interministerial é criado, e as demandas específicas da SPN são colocadas em pautas.
Frutos dessa iniciativa são vistos em 1996 quando é criado o Programa de Anemia Falciforme no país. No município do Recife foi formado um grupo de trabalho desde o ano de 2002 com o objetivo de estudar situações decorrentes da Anemia Falciforme. No ano de 2006, esse grupo é transformado no “Grupo de Trabalho da Saúde da População Negra” e instituída a “Política Municipal de Atenção Integral à Saúde da População Negra”. No cenário Nacional em 2004, o documento “Política nacional de saúde da População Negra: uma questão de equidade” é referendado pela assinatura de um termo de compromisso por parte da SEPPIR e do Ministério da Saúde, durante o I Seminário Nacional de Saúde da População Negra. Nos anos de 2005 e 2006 diversos seminários e reuniões técnicas culminaram na aprovação da “Política Nacional de Saúde Integral da População Negra” pelo Conselho Nacional de Saúde em 2006, contudo, apenas em 2009 ocorreu a instituição da política.
A PNSIPN é criada em 2006 em Recife e em 2009 no país, alertando para as piores condições de gestação, nascimento, envelhecimento e morte da PN em quase todos os motivos de adoecimento (morbidade) e morte (mortalidade) quando desagregamos os casos por raça/cor e identificamos a População Negra como a soma dos autodeclarados como pretos e pardos.
Sobretudo no período da pandemia da COVID-19, frente às singularidades da realidade brasileira, vemos como a PN é aquela que mais adoece, menos é diagnosticada, têm mais dificuldade para conseguir tratamento e vacinação e morre em maior quantidade. As estratégias utilizadas pelo Estado brasileiro tem um genocídio aparentemente executado por seu presidente mais em sua essência versa a respeita de uma política de extermínio, arquitetada pelas classes dominantes advindas do agronegócio, varejo, empreiteiras, mercado financeiro e afins, que, outrora utilizava-se da coerção das PMs e abandono do Estado e recentemente perceberam em um vírus uma estratégia eficiente dar continuidade ao genocídio.
Este quadro nos mostra a extrema necessidade de visibilizar as lutas e as conquistas históricas da PN neste país, suas conquistas como o Sistema Único de Saúde e a PNAISPN, e, de tomar como exemplo a única estratégia viável para a obtenção de melhores condições de vida e saúde: a tomada das ruas, o tensionamento extensivo do Estado e a criação do poder Negro que no Brasil só pode ser efetivado pela destituição das sociedade de classes e pela via do Poder Popular.
Referências
COSTA, A. M. Participação social na conquista das políticas de saúde para mulheres no Brasil. Ciênc. saúde coletiva 14 (4) 1073-1083, 2009 • Ago 2009
EVARISTO, C.. Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas. 2020.
GONZALEZ, L. Por um Feminismo Afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, 375p.
JESUS, C. M. de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 9. ed. São Paulo: Editora Ática, 2014. 199p.
MARCHA ZUMBI DOS PALMARES. Marcha Zumbi contra o Racismo, pela igualdade e a Vida. Brasília, Nov. 1995. Disponível em http://memorialdademocracia.com.br/card/marcha-zumbi-reune-30-mil-em-brasilia acesso em 16 Mar. 2019.
MOURA, C. S. A.. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2. ed. 2019
_______. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo, Editora Universidade de São Paulo. 2013. 434 p.
______ . Quilombos: resistência ao escravismo . São Paulo, Expressão Popular. 2020. 136p.
RIOS, F. M.. O protesto negro no Brasil contemporâneo (1978-2010). Lua Nova, São Paulo, n. 85, p. 41-79, 2012
SILVA. F. A. Frente Negra Pernambucana e sua proposta de educação negra na ótica de um de seus fundadores: José Vicente Rodrigues Lima – década de 1930. 2008 [tese] (Doutorado em Educação) Faculdade de Educação, Universidade do Ceará, Fortaleza.