A nova biografia de Gramsci

imagemNo momento em que governos autoritários e seus sustentáculos civis reacionários reemergem na história, a biografia intelectual de um militante político que se dedicou inteiramente à luta contra todo tipo de dominação, especialmente contra o fascismo, torna-se incontornável.

BLOG DA BOITEMPO

Por Luciana Aliaga

Em terras brasileiras, como se sabe, Antonio Gramsci aportou como o “herói” da luta cultural antifascista, como o teórico das superestruturas. No intricado processo de recepção e apropriação de suas ideias a partir das primeiras traduções, em fins da década de 1960, operou-se, portanto, uma grave cisão entre o filósofo e o político, entre pensamento e ação, entre o homem histórico e o mito desencarnado.

O pensamento gramsciano, com efeito, não apenas no Brasil, mas na América Latina de modo mais abrangente, foi submetido aos mais diversos usos, resultando em leituras parciais e fragmentárias. De lá para cá, muitos esforços têm sido envidados em busca de uma leitura integral de Gramsci, e, de fato, é possível dizer que tal empreendimento – vital na mesma medida em que é árduo – está ainda em construção. Nesse sentido, a publicação, no Brasil, de Antonio Gramsci, o homem filósofo: uma biografia intelectual, de Gianni Fresu, constitui uma importantíssima contribuição.

Neste livro, Fresu consegue dar concretude ao “Gramsci histórico”, sujeito às modificações – e, pode-se dizer também, evoluções – intelectuais e morais exigidas diante de seus próprios limites humanos tanto quanto diante dos desafios teóricos e políticos de sua época. Emerge dessa leitura toda a complexidade do autor em suas diversas fases de vida. Paralelamente às diferentes perspectivas que Gramsci assume em sua trajetória intelectual, percebemos o fio condutor que opera a unidade do pensamento ao longo do tempo, pensamento que sempre rejeitou com veemência o pedantismo e o diletantismo burgueses, assim como nunca tolerou os esquematismos e os dogmatismos nas próprias fileiras.

Fresu nos faz enxergar os elementos de permanência e de coerência interna no percurso intelectual e político de Gramsci, entre os quais se destaca o firme e resoluto combate à instrumentalização política das classes subalternas pelas minorias dirigentes. A adesão à perspectiva das classes subalternas não corresponde, contudo – como fica evidente sob a pena de Fresu –, a um procedimento meramente teórico, mas à identificação e à imersão real no drama histórico dos dominados e subalternizados, na concretização de uma epistemologia popular capaz de prover fundamentos sólidos a uma filosofia de massa, ou, pode-se dizer, à filosofia da práxis.

No momento em que governos autoritários e seus sustentáculos civis reacionários reemergem na história, a biografia intelectual de um militante político que se dedicou inteiramente à luta contra todo tipo de dominação, especialmente contra o fascismo, torna-se incontornável.

Na figura de Antonio Gramsci coexistem diferentes necessidades e perspectivas, mas toda a sua produção teórica se desenvolve dentro de uma estrutura de profunda continuidade. Isso não significa que ele permaneça sempre idêntico a si mesmo; pelo contrário, em muitas questões seu raciocínio torna-se mais complexo, toma novas direções, muda juízos iniciais. A suposta divisão ideológica entre um antes e um depois, em razão da qual um “Gramsci político” tende a ser oposto a um “Gramsci homem de cultura”, é resultado de uma falsificação ditada por questões essencialmente políticas.

A vida do intelectual sardo é marcada pelo drama da Primeira Guerra Mundial, o primeiro conflito de massas em que as grandes descobertas científicas foram aplicadas em larga escala e em que milhões de camponeses e operários foram enviados ao massacre. Em toda a sua produção teórica, essa relação dualista, que exemplifica o uso instrumental dos “simples” pelas classes dominantes, ultrapassa o contexto das trincheiras para encontrar plena expressão na moderna sociedade capitalista. Em contraste com essa ideia de hierarquia social, considerada natural e imutável, Gramsci afirma a necessidade de superação da fratura historicamente determinada entre funções intelectuais e manuais. Para Gramsci, “todo homem é um filósofo”. Nessa expressão está condensada sua ideia de “emancipação humana”: a subversão das relações tradicionais entre dirigentes e dirigidos e o fim da exploração do homem pelo homem.

Num contexto como o atual, marcado pela ofensiva reacionária e pelo refluxo democrático em nível internacional, o legado de Gramsci é uma ferramenta fundamental, porque fornece categorias e chaves de leituras úteis para esclarecer as contradições históricas e contemporâneas.

Gianni Fresu (Sassari, 1972) é professor de filosofia política na Universidade Federal de Uberlândia (MG), doutor em pesquisa filosófica pela Università degli Studi “Carlo Bo” de Urbino e presidente da International Gramsci Society Brasil. É autor, entre outros, de Il diavolo nell’ampolla. Antonio Gramsci, gli intellettuali e il Partito (2005); Oltre la parentesi. Fascismo e storia d’Italia nell’interpretazione gramsciana (2009), em coautoria com Aldo Accardo; Lênin leitor de Marx: dialética e determinismo na história do movimento operário (2016) e Nas trincheiras do Ocidente: lições sobre fascismo e antifascismo (2017).