Processos populares se fortalecem na Nossa América

imagemPor Narciso Isa Conde

Não há dúvidas de que, crescendo cada vez mais, nossos povos não querem viver sob o domínio da recolonização neoliberal, nem tutelados por “partidocracias” conservadoras, seja qual for sua intensidade opressiva, menos ainda quando a “volta do passado” é pior do que um simples retrocesso.

O ciclo de rebeldias populares, iniciado com a Revolução Cubana, ainda não chegou ao fim. A quarta onda transformadora, inaugurada pelo levantamento zapatista no México e pela insurgência chavista na Venezuela, está se revigorando depois de uma série de golpes, em escala latino-americana, desencadeados pela contraofensiva imperialista.

O imperialismo estadunidense não pôde consolidar os resultados de suas violentas agressões no nível regional. Começa novamente a perder terreno. Pôde temporariamente remover do poder estatal os processos de autodeterminação e as reformas antineoliberais, mas sem conseguir vencer a resistência popular às suas reivindicações e sem poder impor uma governabilidade colonizadora estável.

As diversas modalidades de golpes contrarrevolucionários e contra as reformas, suas várias formas de retrocessos exacerbados – todas carregadas de um neoliberalismo mais violento, uma recolonização mais extremada e uma aliança público-privada de caráter fascistoide e mafioso – têm enfrentado altos níveis de contestação popular; e, em vários casos, reverteram ou estão a ponto de reverter as recentes imposições imperialistas (México, Argentina, Bolívia e Chile); em outros casos, a luta continua e os protestos são radicalizados de forma recorrente (Honduras, Haiti, Paraguai, Brasil, Equador, Colômbia…).

A agressiva hostilidade contra a Venezuela bolivariana e Cuba revolucionária é consequência de frequentes fracassos.
Certamente, a perfeita combinação da afluência popular nas ruas e das lutas eleitorais na Bolívia e no Chile apontam para uma nova agitação de um amplo ciclo de rebeldias populares e para uma reativação de seu mais recente e grande movimento pela nova independência e por modelos econômicos sociais com justiça social.

A IMPOSIÇÃO DO NEOLIBERALISMO E DE UMA RECOLONIZAÇÃO MAIS EXTREMADA AGRAVAM A CONFRONTAÇÃO

O capitalismo imperialista ocidental e suas expressões locais dependentes não contam com fórmulas alheias a um neoliberalismo profundamente desacreditado, repudiado e impregnado do fortalecimento de um “Destino Manifesto” (veja NT), que se choca frontalmente com o anseio de autodeterminação de nossos povos.

Porém, quanto mais neoliberalismo, quanto mais conservadorismo (classista, patriarcal, racista e ecocida…), quanto mais recolonização, maior é a tendência ao descontrole das consequências de sua contraofensiva saqueadora e maior é a profundidade de sua crise de decadência.

Assim tem acontecido – inclusive em prazos relativamente curtos – em situações em que os erros, as inconsistências políticas e as omissões ético-morais dos chamados modelos pós-neoliberais e/ou progressistas facilitaram – aos EUA, às direitas e às ultradireitas continentais – retrocessos no tempo que contribuíram para o fortalecimento da indignação popular, como aconteceu na Argentina e como acontece agora na Bolívia e poderia acontecer no Brasil, em Honduras, no Paraguai e no Equador, entre outros casos não necessariamente iguais.

Não há dúvidas de que, crescendo cada vez mais, nossos povos não querem viver sob o domínio da recolonização neoliberal, nem tutelados por “partidocracias” conservadoras, seja qual for sua intensidade opressiva, menos ainda quando a “volta do passado” é pior do que um simples retrocesso.

É um nível superior de capitalismo mafioso, colonialista, de privatização e saque do patrimônio público e dos recursos naturais, sob maior repressão com alta dosagem de neofacismo. É um conjunto de velhas e novas práticas de corrupção impune, associações público-privadas criminosas que devastam o que resta do papel social e nacional do Estado, mineração destrutiva, privatização da água, do solo e do subsolo; maior crise ambiental, profusão do racismo, da homofobia, da xenofobia, da violência de gênero e da manipulação das pandemias (neste momento, da Covid 19), como uma espécie de ajuste global empobrecedor dos povos. Tudo isso quase sempre acompanhado por uma religiosidade fundamentalista, induzida pelas hierarquias eclesiais conservadoras e pelos órgãos de inteligência estadunidense.

O SIGNIFICADO DAS CONTRAPARTIDAS POPULARES NO CHILE E NA BOLÍVIA

No Chile, a resposta popular tem características de “ajuste de contas” com o longo obscurantismo pinochetista-neoliberal, com sua vertente socioeconômica e cultural recentemente fortalecida pela ultradireita conservadora; valioso “ajuste de contas” a partir da indignação popular-nacional acumulada, que aponta para uma grande transformação constitucional sob a vigilância e pressão extra institucional do povo trabalhador e de seus diversos movimentos sociais, persistentemente insubmissos e mobilizados.

Na Bolívia, assume a condição de um contundente contragolpe dos povos originários e da sociedade excluída e ultrajada, que defenderam com garras anti-imperialistas – nas ruas, nos campos, nas urnas – … o heroicamente conquistado.

Em ambos os casos, cada um com suas particularidades e desigualdades sociais, estão pendentes grandes e variadas transformações institucionais e estruturais, mudanças profundas na formação econômico-social, no sistema político e no poder militar. Porém, tudo isso está nas ruas, gestando-se um poder popular paralelo, com capacidade de pressionar e de influir na representação institucional surgida nas votações. Importantes contribuições ao patrimônio da criatividade popular latino-caribenha, também em gestação em outros países da região.

É evidente que a radicalidade anti-imperialista do povo boliviano está além dos resultados institucionais dessas eleições em relação às “cores” do novo governo e à representação partidária nos organismos do Estado, o que sem dúvida tem a ver com as características das forças políticas mais influentes na disputa eleitoral propriamente dita.

No Chile, está pendente o tema da representação e correlação de forças nas próximas eleições para a Convenção Constituinte, assim como aos conteúdos da nova Constituição. Porém, de todo modo, as forças populares, comportando-se com desenvoltura nas recentes rebeliões e com capacidade demonstrada para influir exercendo a democracia das ruas, é um sinal de esperança, ainda que apresente deficiência frente à capacidade militar e ao desdobramento da violência por parte das direitas e dos EUA.

Em ambos os casos – e em muitos outros – está presente o desafio da formação das novas vanguardas anti-imperialistas e anticapitalistas com capacidade de ação integral, isto é, avanços ainda pendentes de direção, articulação e criação de consciência política alternativa nos movimentos sociais em luta e em todas as forças potencialmente transformadoras, garantia para o salto do puramente reformista ou reformador para o rigidamente socialista-revolucionário, que inclui o político-militar.

Os acontecimentos recentes, enquanto vão além das fronteiras desses países irmãos e de estímulo a outros processos de resistência e indignação popular, revelam que, em nossa América, está novamente em curso transformar o ideal bolivariano e guevarista em realidade, ou seja, forjar uma Pátria Grande desvencilhada do norte insidioso e brutal e do seu “Destino Manifesto”, sob o sinistro lema de “América para os gringos”. (28-10-2020 – Santo Domingo RD)


Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)

Este texto pode ser lido no original em:

Bolivia y Chile: La ola transformadora se reactiva en nuestra América

[N T: “Destino Manifesto”→ A doutrina do “Destino Manifesto” é uma filosofia que expressa a crença de que o povo dos Estados Unidos foi eleito por Deus para comandar o mundo, sendo o expansionismo geopolítico estadunidense apenas uma expressão dessa vontade divina. No século XIX, a doutrina do destino manifesto era uma crença comum entre os habitantes dos Estados Unidos, que dizia que os colonizadores estadunidenses deveriam se expandir pela América do Norte. Ela expressa a crença de que o povo estadunidense foi eleito por Deus para civilizar o seu continente. (Wikipédia)]