O Banco Central e o capital financeiro

imagemPor: Eduardo de Oliveira da Costa

Militante da UJC – SC

Sempre houve na consciência neoliberal, e ela é caracterizada por isso, a ingenuidade de acreditar na autonomia do mercado para se autogerir e manter assim sua contínua expansão; como se a pouca ou nenhuma intervenção do Estado fosse o campo ideal para a acumulação, e que o próprio mercado, seguindo a sua busca desenfreada pela acumulação máxima, encontraria sozinho nos momentos de crise e escuridão, a luz que indica a sua saída. Claro, para eles, crise que talvez nasça da própria intervenção do Estado na economia, que a corrompe. Como tudo o que sai da boca da classe dominante, trata-se da mais rasteira ideologia, que ora vê, ora não vê, conforme os interesses: o peso das políticas tributárias e das leis trabalhistas é sempre muito pesado, mas parecem passar despercebidas as políticas de salvação dos grandes capitais nos seus momentos de risco, com o dinheiro do povo; ao menos nos discursos dessa gente, esse tipo particular de intervenção do Estado não está presente. Isto é conveniente.

Em 2008, já estourada a crise mundial, a lendária Goldman Sachs, mostrando a cumplicidade nunca escondida do governo americano com o capital financeiro, recebeu autorização da Federal Reserve (Banco Central dos EUA) para deixar de ser um banco de investimento e tornar-se uma holding, como forma de se salvar da falência que já arrastava gigantes do porte da Lehman Brothers. Através dessa medida, o banco pôde captar recursos que auxiliaram na superação da crise, além de passar a ter acesso aos recursos oriundos da Reserva Federal norte-americana, que no mesmo ano anunciou um pacote de 700 bilhões de dólares destinados a auxiliar certas instituições financeiras que estavam em queda na crise [1]. Não precisamos nem comentar sobre os cargos no governo dos EUA assumidos por funcionários do Goldman Sachs [2], oferecidos por Democratas e Republicanos em perfeita harmonia ao longo do tempo. Talvez no fim eles não sejam tão diferentes.

Muito bem. O consórcio dos grandes bancos com os governos nunca foi uma surpresa, e se as reservas dos EUA estão sempre abertas para acudir os incêndios em Wall Street, aqui no Brasil a Avenida Paulista há bastante tempo é amiga íntima do Banco Central (BC).

Basta recordarmos a atuação do BC do Brasil durante a crise de 2008 que, em consonância com bancos centrais de toda parte do globo, iniciaram as ações de resgate do setor privado, assumindo boa parte de suas quebras. No período Lula em questão, o presidente da República assinou a MP 442, que ampliava as possibilidades de ajuda por parte do Banco Central para instituições financeiras em dificuldades na crise, através da facilitação de operações como, por exemplo, a compra por parte do BC de carteiras de crédito de bancos privados [3]. Podemos lembrar também que, só nos últimos meses de 2008, o governo brasileiro deixou à disposição cerca de R$363 bilhões de reais para o mercado, por meio de redução de impostos, gastos diretos e medidas cambiais [4]. Talvez o fato de que na época a cadeira presidencial do BC estava ocupada pelo banqueiro Henrique Meirelles, indicado por Lula, afinal signifique alguma coisa.

Em seguida, ainda apresentando o desfile de medidas do governo para salvar, quero dizer, “diminuir os impactos da crise” nos bancos em 2008, tivemos a MP 443/08 que permitiu aos bancos públicos adquirirem, sem licitação, participação – pela compra de ações – em bancos privados com problemas de liquidez [5]. Ou seja, compram parte dos bancos quebrados como forma de socorro. Com dinheiro público, claro.

Voltando à atualidade, a farra dos bancos com o dinheiro do povo permanece e parece se ampliar durante a pandemia da Covid-19, no que ela dá novas dimensões à crise capitalista global. Em março de 2020, o Banco Central do Brasil anunciou a injeção de cerca de R$1,2 trilhão para os bancos privados, com o pretexto de permitir por parte deles uma maior concessão de crédito para empresas e pessoas, tendo em vista as dificuldades enfrentadas na pandemia [6]. Porém, como mostra uma tabela disponibilizada pelo BC em seu site, essas concessões ocorreram numa proporção muito menor do que o montante disponibilizado pelos cofres públicos, tendo uma variação de 5,8% entre 2019 e 2020 [7]. Como vimos ser noticiado algumas vezes, pessoas e pequenas empresas têm constantemente seu pedido de crédito negado, apesar da ajuda do BC para os bancos, e quando o conseguem tem que se defrontar com juros altíssimos [8] [9]. Para os gastos com o auxílio emergencial, até o momento o valor está em R$240,27 bilhões, de acordo com dados da Siga Brasil [10].

Devemos também recordar o escândalo das chamadas sobras de caixa dos bancos, constantemente denunciado pela associação Auditoria Cidadã da Dívida [11] [12]. A sobra de caixa é referente à quantia que o banco tem em caixa e não chega a utilizar em operações como empréstimos, e acaba sobrando. Segundo Maria Lúcia Fattorelli [13], coordenadora nacional da associação, “o Banco Central aceita que os bancos privados depositem em seu caixa toda essa sobra de caixa que eles não chegam a emprestar, e aí o Banco Central passa a remunerar esses depósitos diariamente”. Mais adiante, continua: “Não há amparo legal para remunerar a sobra de caixa dos bancos. Por isso, o Banco Central tem usado títulos da dívida pública nessa operação. […] À medida que os bancos estão de posse dos títulos, eles recebem juros diários às nossas custas”. Esses títulos, por sua vez, são emitidos pelo Tesouro Nacional e entregues ao Banco Central, que os troca com os bancos pela sobra de caixa, de modo que os bancos levam consigo os juros às custas do Tesouro. Ou seja, esse esquema transfere recursos do Tesouro Nacional para instituições financeiras privadas por meio dos títulos da dívida pública. De acordo com um artigo publicado no site da Auditoria Cidadã da Dívida, essas operações, até agora, resultaram em um rombo de quase R$3 trilhões para o Tesouro [14].

Tivemos também, no segundo trimestre de 2020, a promulgação da PEC 10/20, a “PEC do orçamento de guerra”, que estabelecia, além de um orçamento específica para o enfrentamento da pandemia, a autonomia para o BC comprar os chamados “títulos podres” de bancos privados com recursos públicos [15], ou seja, adquirir papéis que possuem um alto risco. Esses títulos podem estar acumulados há anos nos bancos, e estariam sendo comprados com o dinheiro do povo.

Se os grandes bancos já possuem controle sobre o Banco Central, a sua autonomia que está sendo discutida atualmente significa o aprofundamento da sua serventia aos interesses do capital financeiro nacional e internacional. O BC atualmente já possui certa autonomia para determinadas decisões, enquanto autarquia, embora vinculado ao Ministério da Economia. O PL 19/2019, que discute sua independência, pretende transformar o BC em um órgão ainda mais autônomo, perdendo seu vínculo ao ME. A própria diretoria do BC passaria a possuir uma autonomia maior, na medida em que seus membros não poderiam mais ser exonerados a qualquer momento como atualmente, mas cumpririam mandato de quatro anos [16].

Embora os interesses do grande capital já estejam presentes dentro da autarquia por meio de seus representantes, a aprovação do PL reforça esse caráter, na medida em que retira quase todo poder de interferência do presidente da República. Nesse caso, vamos supor, qualquer mudança na cadeira presidencial favorável aos trabalhadores, teria uma influência muito pequena nos rumos do Banco Central e, assim, a sorte da classe trabalhadora estaria nas mãos dos grandes bancos mais do que nunca, uma vez que é o BC o responsável por agir, por exemplo, sobre o nível do desemprego. Há bastante tempo, como sabemos, os interesses da burguesia financeira são hegemonia nesta autarquia, e a grande preocupação com a estabilidade da moeda simultaneamente ao descaso com o nível do desemprego é prova disso. O que ocorre com a independência do BC é o aprofundamento disso. A legalização dos procedimentos de remuneração da sobra de caixa que tratei antes, também faz parte do projeto em questão.

De qualquer modo, não devemos ter muita esperança com a ordem burguesa. O controle do aparelho do Estado, e com isso dos recursos públicos, estará nas mãos da classe dominante até o momento em que a classe trabalhadora assumir as rédeas e construir um novo tipo de sociedade, onde os valores da democracia burguesa, que institucionaliza a miséria e o assalto ao povo, serão nada mais do que uma distante cicatriz na história da nossa gente.

Fontes:

[1]https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2008/09/080922_fedholdings_fp

[2]https://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/03/economia/1486138009_526902.html

[3]https://www.camara.leg.br/noticias/122519-chega-a-camara-mp-que-permite-socorro-a-bancos/

[4]http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2008-12-20/governo-injetou-r-363-bilhoes-na-economia-desde-agravamento-da-crise

[5]https://www.camara.leg.br/noticias/123001-mp-autoriza-bb-e-caixa-a-comprarem-bancos-em-dificuldade/

[6]https://www.gov.br/pt-br/noticias/financas-impostos-e-gestao-publica/2020/03/banco-central-anuncia-conjunto-de-medidas-que-liberam-r-1-2-trilhao-para-a-economia

[7]https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwjsirLj1OruAhUYE7kGHSAUCVsQFjABegQIAhAC&url=https%3A%2F%2Fwww.bcb.gov.br%2Fcontent%2Festatisticas%2FDocuments%2FEstatisticas_mensais%2FMonetaria_credito%2FNotimp2.xlsx&usg=AOvVaw26FzQNbi_xfM2_6GLbZJZb

[8]https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/16/em-crise-pequenas-empresas-tem-dificuldade-de-acessar-linhas-de-credito.ghtml

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