Senso comum e consciência de classe
Senso comum e consciência de classe em análises de conjuntura
Por G. Lessa
A desconsideração da natureza específica do senso comum na reflexão sobre consciência de classe e posicionamentos políticos empobrece as análises de conjuntura. A atitude leva, entre outros problemas, a oscilações abruptas entre crença e descrença nas possibilidade de ação consciente dos sujeitos sociais. Assim, por exemplo, o crescimento da influência de massa da extrema direita é frequentemente percebido com surpresa, como se os indivíduos estivessem necessariamente protegidos do obscurantismo pelo avanço geral da ciência. No caso brasileiro, a abordagem assistemática do pensamento cotidiano tem levado a dificuldades na análise da adesão dos trabalhadores ao bolsonarismo.
Entre os autores marxistas mais conhecidos, Lukács e Gramsci foram aqueles que trataram o pensamento cotidiano de maneira mais sistemática. Para o filósofo húngaro, no livro Estética, publicado em 1963, o senso comum se caracterizaria pelos seguintes traços: 1) materialismo espontâneo, isto é, convicção intuitiva do caráter objetivo da realidade imposta pelas necessidades da vida cotidiana, como a necessidade de o pedestre evitar ser atropelado ao atravessar uma avenida ou de alimentar-se todos os dias, que convive com as superstições e fantasias mais implausíveis relativas a vários nexos causais do real; 2) uso da analogia como principal forma de generalização, que abre espaço tanto para a flexibilidade na apreensão dos fenômenos como para o esquematismo e o enrijecimento epistemológico; 3) caráter histórico e capacidade/necessidade de absorção dos resultados da ciência, da arte e da filosofia sem abandonar a própria estrutura.
A abordagem de Gramsci sobre o tema, escrita principalmente nos Cadernos do Cárcere três décadas antes da publicada por Lukács, tem identidades com aquela do autor de A Destruição da Razão e algumas relevantes singularidades. O tratamento gramsciano preocupa-se em rejeitar de pronto qualquer condescendência com o senso comum e destacar sua incoerência intrínseca, além do seu conservadorismo. Considera-o o folclore da filosofia, um caldo de afirmações incongruentes advindas do contato com várias ideologias; defende a necessidade de superá-lo via a organização de nova hegemonia cultural e política, que elevaria as massas para além do pensamento cotidiano via a constituição de uma rede hierarquizada de intelectuais revolucionários; superá-lo na medida do possível, pois Gramsci considera que o senso comum seria parte constitutiva da vida.
A perspectiva lukacsiana é muito mais otimista do que a gramsciana, pois o marxista húngaro acredita que o materialismo espontâneo do senso comum tem razões objetivas, não deriva do contato com outras formas de abstrações, e cumpriria as funções decisivas de tornar a as decisões cotidianas possíveis e de enfraquecer as teorias e atitudes subjetivistas, contribuindo para manter as instituições e os pensamentos científico e filosófico com os pés no chão. Gramsci considera o senso comum como um problema e vê seu materialismo espontâneo como resultado da absorção de traços de vários sistemas filosóficos/ideológicos e não como expressão de circunstâncias objetivas perenes (as necessidades práticas da vida). Marx e Lenin são, evidentemente, as principais inspirações de ambos, mas se percebe que os dois autores agregam mediações e desenvolvimentos que não estavam explícitos nas abordagens do fundador do marxismo e no líder bolchevique.
Apesar de não ter escrito uma teoria do senso comum, Lenin o compreendeu profundamente, como fica evidente na sua acurada compreensão do pensamento dos operários, camponeses e soldados russos. No clássico “O que fazer?”, de 1902, no qual apresenta, entre outras coisas, uma teoria da consciência de classe e da organização revolucionária, expõe a conhecida tese de que sem contato com uma a cultura marxista erudita, sistemática, não existente no pensamento cotidiano ou nas tradições proletárias, os trabalhadores não conseguiriam ir além de uma consciência sindical, corporativista, nunca chegariam a uma consciência socialista consequente. Já no texto “Carta a um camarada”, também publicada em 1902, procura demonstrar, em meio a várias outras questões, a necessidade da produção partidária de literatura em vários níveis de abstração, para que cada trabalhador/a pudesse encontrar leituras de acordo com o seu nível de desenvolvimento. Em síntese, Lenin compreendia o senso comum como elemento intrínseco ao ser social, determinado por razões objetivas, e positivo na afirmação de um materialismo espontâneo (opinião expressa no livro sobre o empiriocriticismo); mas também acreditava que o pensamento cotidiano era permeável aos resultados da ciência e da filosofia, de acordo com o ritmos de cada trabalhador/a e das circunstâncias sociais e políticas, mesmo que não pudesse se transformar em ciência, modificando a própria natureza. Esses pressupostos teóricos explicam uma das famosas frases de Lenin: “Em determinadas conjunturas, as massas proletárias aprendem em semanas o que duraria anos para aprender em outras circunstâncias”.
As lições desses clássicos do marxismo (e de várias outros, como Rosa de Luxemburgo, Trotsky, Mariátegui e Mao Tsé-Tung; seria importante estudos sistemáticos sobre o tema na tradição marxista) nos ajudam a avaliar melhor a subjetividade das classes sociais nas conjunturas políticas. Exemplifiquemos com o caso brasileiro.
1) Vejamos um exemplo de como o senso comum absorve determinados resultados da ciência (ou de outro discurso explicativo da realidade que seja socialmente aceito como bem elaborado e crível), mas não o faz de maneira definitiva. Parte significativa e crescente da classe trabalhadora brasileira assimilou, pelo menos até 2013, teses sobre as principais questões sociais, morais, econômicas e políticas sustentadas por um discurso científico difundido pela esquerda e a centro-esquerda desde a luta contra a ditadura burgo-militar. Constituiu-se paulatinamente um senso comum progressista em um terço da população e, depois, atingiu dois terços. Existiram, no entanto, várias concessões para o alcance deste resultado, como as presentes na “Cartas aos Brasileiros”, publicada pela candidatura Lula em 2002 com o objetivo de angariar o apoio dos eleitores de centro. Como ficou evidente no peso adquirido pela direita nas manifestações de 2013, a assimilação do progressismo/reformismo socialdemocrata diluído, pela própria natureza do pensamento cotidiano, foi revertida pela experiência da população com algumas dimensões dos governos considerados de esquerda/progressistas unida à onipresente propaganda da extrema direita, que ofereceu outras explicações, apresentadas como “cientificamente embasadas ou derivadas da bíblia” e difundidas por meio de igrejas neopentecostais, editoras reacionárias, gabinetes parlamentares, associações empresariais, faculdades privadas, sites, perfis em mídias sociais, programas de TV e Rádio. Por mais que a esquerda tenha lutado para apresentar uma alternativa discursiva e disputar o movimento, as Jornadas de Junho de 2013 acabaram expressando o ápice de uma modificação no senso comum que vinha sendo gestada. Mudança de tal ordem que afetou até o entendimento popular de muitas evidências empíricas, como a esfericidade da Terra e a eficácia das vacinas. Constituiu-se um novo senso comum, agora de extrema direita, mudou-se o conteúdo das ideias-força das grandes narrativas assimiladas pelo pensamento cotidiano.
2) Agreguemos exemplo, também da realidade nacional, do materialismo espontâneo do senso comum reagindo contra explicações e justificativas conceituais sem base empírica suficiente. A partir do auge de popularidade do segundo governo Lula, a secretaria de comunicação da presidência e o PT difundiram discurso que se apresentava como científico, embasado em estatísticas e conceitos econômicos e sociológicos, de que o Brasil, repetindo fenômeno ocorrido em países centrais, teria se transformado em nação de classe média e superado a histórica exclusão socioeconômica e política da maioria dos trabalhadores. A recomposição do salário mínimo e o aumento de 30% na renda média geral, puxados pelo aquecimento econômico determinado pelo boom das commodities, unidos ao Bolsa Família e aos programas de expansão educacional, como o FIES, pareciam corroborar a existência do mundo róseo criado pela propaganda governamental. No cotidiano, a população trabalhadora e a classe média dos grandes centros urbanos viviam e constatavam empiricamente outras circunstâncias objetivas e não aceitaram o discurso governamental indefinidamente. Deparavam-se com graves problemas provocados pela radicalização do domínio do grande capital sobre as cidades e o setor de serviços, tais como, o crescimento da criminalidade e do número de dependentes químicos, a diminuição das áreas de lazer e fruição cultural, o aumento do preço de passagens e da duração média das viagens no transporte público, a substancial ampliação dos gastos familiares com telefonia, saúde e educação privadas, entre vários outros. Houve, então, um conflito entre as constatações empíricas do senso comum da população urbana e o róseo discurso governamental, o que criou a sensação generalizada de que o governo e o sistema político não representavam a maioria dos indivíduos. Esse conflito entre pensamento cotidiano e discurso petista foi menor no Nordeste, principalmente nas sub-regiões nordestinas mais rurais, porque a população partira de um patamar comparativamente inferior de qualidade de vida, e o fato determinou que os programas sociais e a monetarização da economia local corroborassem melhor o discurso governamental de que o país estava abandonando a estrutural exclusão socioeconômica dos trabalhadores.
Ao concluirmos, desejamos destacar que é imperioso articular as teorias do senso comum presentes nos clássicos do marxismo com a reflexão marxiana relativa ao fetichismo das relações capitalistas/coisificação da consciência. Do contrário, a pesquisa sobre a trajetória e a configuração conjuntural do pensamento cotidiano permanece tautológica, pois considera apenas aquilo que está no interior das instâncias subjetivas, na chamada superestrutura. Não é suficiente falar em interesses materiais que se expressariam na esfera ideológica, é necessário explicar as origens e a persistência desses interesses na cabeça e no coração dos indivíduos. A teoria do fetichismo de Marx articula dialeticamente relações de produção e subjetividade, demonstra como a própria prática de comprar e vender, seja força de trabalho ou qualquer outra mercadoria, tende a ser interpretada nos momentos em que não há crise econômica de maneira fetichista pelo senso comum. Nesse fenômeno do encontro entre o senso comum e a aparência das relações capitalistas se encontra a base de todas as possibilidades da subjetividade na sociedade regida pela lógica do capital, tanto as possibilidades de sua justificação quanto de sua negação revolucionária. Ambas implicam em dadas relações particulares entre o pensamento cotidiano e as formas mais elaboradas de abstração, como a ciência, a arte e a filosofia.