À memória de Arcelina Mochel

imagemPor Rafaela Fraga

Fundadora do Jornal Momento Feminino, primeira mulher a se tornar procuradora pública no Brasil, vereadora no então Distrito Federal, o Rio de Janeiro… foi rica e multifacetada a trajetória da maranhense Arcelina Rodrigues Mochel, uma dentre os nove filhos do casal Ercília Rodrigues Mochel e José Augusto da Silva Mochel.

Arcelina deu início aos estudos superiores ingressando no curso de Direito, ainda antes dos 20 anos, incentivada por seus humildes pais. Ela foi uma mulher muito ativa, dando os primeiros sinais na vida pública ao fundar uma revista jurídica aos 19 anos, enquanto já cumpria a função interina de promotora em duas comarcas do Maranhão, sua terra natal, onde nasceu em 1918. As contradições consequentes das desigualdades de gênero em nossa sociedade patriarcal se revelavam a Arcelina para muito além dos seus estudos sobre o assunto: ao ser aprovada em 1º lugar no concurso para o cargo efetivo de promotora pública, foi substituída em sua posição pelo segundo colocado, um homem. Como já mencionado, Arcelina foi a primeira mulher a ocupar tal categoria, fato que, certamente, causou incômodo ao funcionalismo local, capaz de cometer tamanha arbitrariedade.

Tal acontecimento mudou a vida desta mulher, que se tornou figura histórica na luta política brasileira: diante do ocorrido, resolveu mudar-se do Maranhão para o Rio de Janeiro, chegando à capital do país em 1943. Lá, ela se envolveu com maior profundidade na luta organizada através do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Com sua vigorosa atuação, alicerçada em uma inarredável convicção ideológica, Arcelina Mochel ainda hoje é reconhecida pelo PCB como “um dos mais destacados quadros políticos femininos entre 1940 e 1950”, declaração feita numa nota do Partido em 2016. E claro que não à toa: ela desenvolveu profundo trabalho de base no movimento de mulheres, nas lutas populares e na imprensa de esquerda por quase duas décadas.

Além da revista que fundou aos 19 anos, também dirigiu a Revista Continental, já no Rio de Janeiro, e foi uma das criadoras do Jornal Momento Feminino, instrumento robusto que, mantido também por outras mulheres comunistas como ela, circulou nacionalmente pelo excepcional período de 10 anos, num Brasil politicamente inseguro e já perigoso para os comunistas.

Como vereadora no Rio de Janeiro – então Distrito Federal, Arcelina ampliou sua capacidade de aglutinação das massas e sua oratória ao se tornar líder da bancada comunista e presidente da Comissão de Administração e Assistência Social da Câmara dos Vereadores. Ela foi eleita em 1947 com 3.704 votos, numa época em que, ainda mais que na atualidade, o parlamento era considerado um lugar exclusivo aos homens.

Seu mandato deveria durar até 1951; todavia, em 1948, o PCB foi posto em ilegalidade, e com isso, todos os seus parlamentares foram cassados. Mesmo com seu Partido em tais condições, Arcelina seguiu firme e convicta em sua disciplina militante, construindo o movimento de mulheres pelos bairros do Rio de Janeiro. A esta altura, já era evidente sua liderança feminista no RJ: além de estar envolvida na construção de comitês populares a partir do seu trabalho de base – comitês estes que se espalhavam pelo Brasil, chegando a somar 43 país afora -, Arcelina foi peça fundamental na articulação do que se tornou a Fundação de Mulheres do Brasil, em 1949.

A Fundação teve expressivo valor na organização política de mulheres trabalhadoras, estando presente em cerca de 11 estados brasileiros e se constituindo, então, como uma entidade nacional. Indissociavelmente do seu trabalho de base, Arcelina foi eleita Secretária-Geral da Fundação de Mulheres do Brasil, e como sua representante, viajou não apenas o Brasil, como também países da Europa, levando para o mundo o exemplo do trabalho das mulheres comunistas desse país. “O caminho que temos que percorrer é ainda muito difícil, e a nossa luta só cessará quando conquistamos a nossa liberdade” – essa é uma das mais famosas frases desta intensa e comprometida militante, dita em um dos vários Congressos dos quais participou. Arcelina foi uma excepcional oradora e aglutinadora de multidões.

Causou impacto em governos da ordem;,apoiou movimentos cruciais como a campanha pela anistia aos presos políticos de 1945, o movimento contra a Lei de Segurança Nacional e a Força Expedicionária Brasileira, que foi à Itália lutar contra o nazifascismo, integrou o Comitê Central do PCB e ainda deu à luz a 6 crianças. Foi mãe, esposa, amiga, mulher.

Na década de 1960, Arcelina passa a enfrentar questões pessoais e de saúde, que a levam a se resguardar da enérgica vida política. Ainda nessas condições, não parou de contribuir para a causa, de um modo ou de outro: abrigou militantes em sua casa, que tentavam se proteger da devastadora repressão que se instaurou no Brasil após o golpe de 1964. Aos 56 anos, em 1974, Arcelina faleceu, deixando para o Brasil um extenso e inspirador legado, que germinou em sua geração e ainda hoje germina para as mulheres de luta, como ela, e para todos que buscam os meios de construir o novo mundo. À memória da gloriosa Arcelina Mochel! Que as sementes que plantou em nossa terra fértil sigam gerando cada vez mais frutos pelo Brasil afora.