Venezuela: os dilemas de outubro
A esquerda não pode perder o rumo, nem se paralisar diante das incompreensíveis pequenas coisas, nem se confundir com as limitações do processo bolivariano. A alternativa é clara e não é legítimo virar as costas a ela. Há que se apoiar Chávez e o processo bolivariano, aprofundando as transformações em direção ao socialismo.
Mas a urgência das eleições de outubro e a necessidade imperiosa da vitória eleitoral não devem nos confundir. A luta na Venezuela não é só eleitoral. O imperialismo estadunidense (sob o disfarce sorridente e “multicultural” do presidente Obama, belicoso como os mandatários ianques anteriores), a grande burguesia venezuelana e os seus sócios políticos estão desenvolvendo um plano extraeleitoral destinado a sabotar o processo e/ou a desconhecer os resultados. Planejam desestabilizar até conseguir os mesmos objetivos intervencionistas praticados na Líbia ou na Síria. Por isso mesmo, a solidariedade com a revolução bolivariana deve se expressar em todos os cenários de luta até garantir a derrota definitiva desses esforços sediciosos e o aprofundamento e a ampliação definitiva da marcha para o socialismo.
Os dilemas de outubro inscrevem-se num nó geopolítico condensado. O imperialismo e as suas subservientes burguesias querem varrer completamente do mapa a insolência de um militar latino-americano, mestiço e bolivariano, anti-imperialista e admirador do Che Guevara, que não lhes obedece e os desafia há duas décadas. Precisam imperiosamente recuperar a renda petroleira e “pôr ordem” no norte da América do Sul, deslocando Chávez, neutralizando e desarmando definitivamente as FARC-EP e espalhando pelo continente novas bases militares que garantam o seu monopólio sobre os recursos naturais.
Frente a essa ofensiva imperial, a geopolítica bolivariana não deveria se contentar com a UNASUL e com a unidade institucional dos Estados. Em longo prazo, o que definirá a queda-de-braço será a unidade dos povos (incluindo suas expressões sociais e insurgentes), e não apenas os pactos entre os Estados. Os apertos de mão com Santos, presidente corrupto e assassino, não frearão o paramilitarismo e a lumpesinagem da burguesia colombiana, nem garantirão uma estabilidade duradoura na região, enquanto as forças armadas colombianas sigam mantendo meio milhão de soldados – dirigidos diretamente por generais ianques e assessores israelenses – que ameaçam invadir a Venezuela na eventualidade de se aprofundar a marcha ao socialismo. A continuidade do bolivarianismo das FARC-EP como ponta de lança do movimento popular colombiano é a melhor garantia para que a Venezuela não seja invadida pelos Estados Unidos através do exército colombiano, que está nas proximidades.
A unidade continental dos povos é a chave do triunfo bolivariano em escala internacional (nenhuma revolução pode triunfar isolada, num só país). No âmbito nacional, por outro lado, a luta de classes se expressa em todos os terrenos, não só no eleitoral (este, sem dúvida, o mais visível).
A vitória segura de Chávez em outubro não deve nos fazer esquecer de que no interior do processo bolivariano também há conflito. Um segmento que apoia o líder histórico da revolução bolivariana, ainda que mantendo a retórica oficial, faz todo o possível (e mais) para evitar ou retardar a opção socialista. Dia a dia “inventa” pseudoalternativas, sempre qualificadas como “populares”, “autogestionárias” e “bolivarianas”, para não aprofundar o caminho ao socialismo. Como se fosse possível marchar ao socialismo sendo amigo de todo mundo e socializando apenas as margens da sociedade (aquelas que não incomodam o mercado, nem interessam às grandes empresas porque não são lucrativas). Como se fosse possível construir a transição para o socialismo sem confrontar os milionários da burguesia e do empresariado.
Um dos grandes desafios do presidente Chávez e de todo o processo bolivariano, posterior à vitória eleitoral em outubro, consiste em se apoiar na organização política das classes populares, exploradas e subalternas (a sua principal e mais leal força de luta) e ir encontrando formas concretas de gestão da propriedade estatal ou nacionalizada, que debilitem socialmente o inimigo sórdido, e ir assentando as primeiras bases econômicas da transição socialista.
Deve-se golpear e debilitar os sórdidos não apenas na retórica, na comunicação, nas urnas e na sensibilidade cultural (algo fundamental e imprescindível), mas também nas colunas vertebrais do mercado capitalista da economia venezuelana. Para vencer o tigre, há que se animar a pôr sal no seu rabo. Ou se enfrenta a burguesia, debilitando-a socialmente, ou a burguesia terminará por devorar o processo bolivariano, como ocorreu à revolução sandinista em 1990. Não se pode “civilizar a burguesia” (expressão infeliz de Tomás Borge em 1986). Há que enfrentá-la e derrotá-la!
Chávez pode fazer isso. Sobra-lhe energia, projeto, valentia e decisão política. Inclusive, colocou sua própria vida em risco (recordemos o golpe de Estado e a atitude digna que então assumiu, tão diferente da pusilanimidade e da covardia da maior parte da elite política da América Latina). A sua decisão pessoal não é o único ponto importante aqui. A revolução bolivariana apoia-se em muitas conquistas que vão além da liderança carismática de um indivíduo:
– Internacionalizou a disputa política e cultural a ponto de envolver todo o continente em cada uma das lutas sociais internas da Venezuela.
– Politizou completamente a sociedade: até o mais indiferente ou alienado hoje deve se pronunciar (a favor ou contra). Ficou para trás a era do “pragmatismo efetivo” e a despolitização pós-moderna das massas populares que percorreu não só a Venezuela, mas toda a Nossa América nos anos de 1990.
– Recuperou um olhar histórico (bolivariano) da nossa identidade popular, colocando em crise o individualismo cínico do pós-modernismo, que nos convidava falsamente a desconfiar “dos grandes projetos” e a viver o dia a dia, pensando unicamente em consumir, sem ideais, sem história e sem projetos coletivos.
– Relegitimou os símbolos, a cultura e a tradição política do socialismo, que eram questões demoníacas nos anos de 1990.
– Redistribuiu a renda do petróleo entre os setores populares e em projetos políticos regionais, quando antes era um butim de guerra da burguesia venezuelana destinado ao seu consumo frívolo e suntuoso.
– Restabeleceu uma opção anti-imperialista no nível regional e continental – diríamos inclusive mundial – estabelecendo vínculos com muitos povos e governos do mundo (os “maus”, na linguagem hollywoodiana das administrações estadunidenses), desde a América Latina até a África e a Ásia.
Por isso, é vital apoiar determinadamente a continuidade do projeto encarnado por Chávez, ao mesmo tempo que se torna impostergável o aprofundamento da revolução bolivariana, apontando para a expropriação das grandes fortunas, das grandes casas comerciais, dos grandes bancos e das grandes empresas (nacionais e estrangeiras). Se a revolução bolivariana não marchar para o socialismo de uma vez por todas – socializando concretamente as grandes empresas, nacionalizando as bases fundamentais da economia e estabelecendo, contra a regulação mercantil, um planejamento socialista de larga escala, para além inclusive do âmbito nacional, para o regional através da ALBA –, necessariamente retrocederá e será derrotada pelos seus inimigos históricos, internos e externos.
Não será estendendo a mão ao presidente Santos, vizinho perverso, hipócrita e sinistro, nem dando novamente a face às sórdidas ameaças golpistas da direita venezuelana, que ameaça virar a mesa se não ganharem as eleições, que se aprofundará a revolução. Não é hora de dar ouvidos ao pacifismo e às trapaças social-democratas que, em nome do “realismo”, sempre aconselham a pisar no freio – como fizeram no Chile em 1973, na Nicarágua em 1990 e assim por diante – para terminar, invariavelmente, na derrota. Não.
O comandante Chávez e a revolução bolivariana devem aproveitar essa crise mundial do capitalismo e a atual debilidade dos EUA e da Europa ocidental para pisar no acelerador. Não só o povo venezuelano, mas todos os povos do mundo estamos atentos. O que se joga nessa disputa terá, sem dúvida alguma, repercussões muito além da terra natal de Simón Bolívar.
26 de setembro de 2012