Saramago, o último grande narrador
Numa cultura dominante em que a pulsão da morte constitui a sua essência, o escritor José Saramago, falecido aos 87 anos no dia 18 de junho, foi uma brilhante e genial exceção. Português da aldeia de Azinhaga, filho de pais pobres da região do Ribatejo, Saramago não era homem de concessões hipócritas quanto a princípios morais e políticos nos quais acreditava, e, por isso mesmo, numa época em que tudo está à venda ou pode ser relativizado em nome de projetos pessoais e / ou de grupos, ele se manteve coerente até o fim da vida. Para o bem da alta literatura, dos ideais socialistas e da própria humanidade.
Antigo militante do Partido Comunista Português, Saramago não era “comunista de carteirinha” por acaso. Filiou-se ao PCP em 1969, quando Portugal ainda vivia a ditadura salazarista. O ato foi apenas a formalização de uma militância socialista que vinha de longa data, efeito da sensibilidade moral de um jovem que, tendo nascido no meio de pobres e miseráveis, cedo discerniu as causas da desigualdade social e econômica dos portugueses. Aluno brilhante, teve de abandonar o colégio porque seus pais não podiam pagar seus estudos.
Podia, pela revolta, renegar e esconder sua origem pobre. Podia, como fazem muitos na ascensão social, defender idéias da classe que espoliava os lavradores e proletários do Ribatejo. Podia, por vergonha, fingir que nunca foi pobre. Podia, simplesmente, esquecer. Mas há gente que nasce para lembrar, porque nunca esquece de si mesmo em suas origens. E lembrar por si e pelos outros, pelos que têm boca e língua, mas nunca são escutados; têm olhos e visão, mas são invisíveis em um mundo onde a luz parece se projetar apenas sobre os bens, a riqueza, o luxo, o poder e a ostentação.
Em Saramago, essas dimensões de mestre do romance e de ativista político e social se imbricavam sem que uma tolhesse ou recalcasse a outra. Foram sempre a expressão de uma persona criativa e combativa, rica de uma humanidade onde percebemos a sabedoria dos simples de coração, o humor, a luta dos deserdados, a crítica social e dos (hipócritas) costumes, a denúncia da cegueira de um mundo onde a morte inspira a política do capital, o alerta a respeito da alienação coletiva dos seres humanos, embrutecidos na malha da indústria cultural da incultura.
O poder de sua fábula traduzia justamente este universo, e não por acaso pode explicar o fato de alguns o considerarem “difícil” e ao mesmo tempo ele ser tão lido e admirado por milhões de pessoas, em várias línguas. Em um dos seus raros acertos, o comitê de literatura lhe concedeu o Prêmio Nobel em 1998.
Saramago é, possivelmente, o último grande narrador da humanidade, considerada esta em sua dimensão de um espírito ou idéia universal. Em suas obras, não há como não nos reconhecermos como seres humanos completos, na dor ou na alegria, vivos ou mortos, duvidando dos deuses e das crenças, amando e buscando. Sua morte marca (e aqui a frase feita cabe) o fim de uma época em que a literatura está moribunda e submetida aos escapismos de estilos que apenas revelam sua pobreza. Também simbolicamente, sua morte ocorre em um momento no qual há uma pulsão de morte no movimento de forças econômicas e políticas erguendo-se do espólio neoliberal em vários países europeus, numa onda neofascista que criminaliza migrantes, trabalhadores, etnias não brancas, ativistas políticos e sociais de esquerda, além de estudantes e desempregados.
Contra tudo isso, o grande narrador português nos deixou uma obra para travar um combate que significa a permanência de uma luz que ele fez brilhar nos seus personagens. Em Memorial do Convento, um dos seus grandes romances, os protagonistas Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas são a quintessência do amor perene entre um homem e uma mulher, para além do tempo, das fogueiras da Inquisição, da velhice. Quem vê a vida de Saramago, sente que ele tinha o mesmo amor pela humanidade.
Roberto Numeriano é cientista político (UFPE), professor, jornalista e candidato do PCB ao Governo do Estado de Pernambuco.