“O progressivismo, tal como o conhecemos, acabou”
Resumen Latinoamericano/Sebastián Orrego/Marcha, marzo de 2015 – Em diálogo com Marcha, o escritor e jornalista uruguaio Raul Zibechi analisa o panorama que se abre com o regresso de Tabaré Vázquez à presidência. Prevê uma maior aproximação com os EUA e o retrocesso em certas políticas progressistas.
– Como começa a configurar-se esta nova etapa a partir da ascensão de Tabaré em contraposição ao que foi a gestão de Mujica?
– O governo do Pepe pode ser caracterizado de duas maneiras: por um lado, a figura do Pepe, que é uma pessoa com um passado militante, com um estilo de vida muito simples, um discurso à flor da pele, vinculado à forma de falar dos setores populares, alguém que pode ser criticado por “populista”, porém é autêntico. Uma personalidade que se manifesta não apenas em sua pessoa, mas em muitas decisões de governo. Sempre esteve com as duas pernas fincadas na região, boas relações com Dilma e boas intenções de relacionamento com a Argentina, apesar de todas as dificuldades que sempre existem entre os dois países.
Por outro lado, temos a política pura e dura de seu governo, baseada em um modelo extrativista, que se sustenta da exportação de commodities, grande produção de soja e celulose, da tentativa de abrir a mineração a céu aberto de maneira massiva, forte especulação imobiliária urbana (ou seja extrativismo urbano). E agora vem Tabaré, um oncologista claramente tecnocrata, um homem muito voltado para uma cultura clássica, um típico membro da maçonaria. Além disso, tem uma personalidade muito diferente da do Pepe, nunca foi militante, nem antes e nem durante a ditadura militar, nem teve presença política em nada, apenas dois anos antes de ser prefeito de Montevidéu teve uma participação política no voto verde, essa foi sua primeira experiência quando já tinha mais de 50 anos. Se falarmos de características pessoais diria que Tabaré é a contraface do Pepe. E desde o primeiro momento, aparecem figuras destacadíssimas de seu primeiro mandato que preveem muitas continuidades: na política extrativista, na preocupação com a educação, nas políticas de saúde.
– Onde podemos visualizar suas principais diferenças?
– Provavelmente existe um par de inflexões preocupantes. A que mais me preocupa é que o Uruguai modifique seu alinhamento na política exterior, já em seu primeiro mandato, Tabaré tentou um Tratado de Livre Comércio com os EUA, argumentando que era nosso primeiro mercado (já não é). Além disso, Rodolfo Nin Novoa, o novo chanceler, um homem de sua confiança muito questionado pela esquerda, já disse que em matéria de política exterior “se acabou a ideologia, agora vem o pragmatismo”. O pragmatismo aqui quer dizer pró-EUA.
– Que papel ocupará o Uruguai na região?
– Creio que o Uruguai pode pedir o ingresso formal à Aliança do Pacífico, o que gerará um conflito muito forte com o Brasil no Mercosul. Além disso, o cenário global e regional é muito distinto quando assumiu pela primeira vez, quando se começava a ver o declínio dos EUA. Hoje, a queda é patente e a violência da política exterior norte-americana é evidente no mundo todo. A Aliança do Pacífico é o projeto estratégico dos EUA para enfrentar o Mercosul e creio que o Uruguai deixará de alinhar-se com o governo da Venezuela, uma virada muito pesada e, a meu modo de ver, muito negativa.
O Uruguai, provavelmente, chegará a cumprir um papel de articulador entre estes dois projetos da região. Não podemos esquecer que o Uruguai nasceu como país articulador há dois séculos, da mão do império britânico com o objetivo de ser o estabilizador entre a colônia espanhola e a portuguesa. O Lord John Ponsonby, que escreveu o tratado do Rio de Janeiro pelo qual se criou o Uruguai, em sua carta à Londres escreveu: “Coloquei um algodão entre dois cristais”. E este papel, geopoliticamente, continua estando latente.
– É possível que o novo governo retroceda em algumas políticas e medidas progressistas implementadas durante o mandato anterior?
– Tabaré não tem chance de opor-se à descriminalização do aborto, ainda que em seu governo anterior tenha vetado o votado pelo Parlamente e pela Frente Ampla (FA). Teve um custo político para ele. Porém, hoje o custo seria impensadamente mais elevado já que a lei está totalmente consolidada e em funcionamento. Com respeito à regulação da maconha, assumo que Tabaré é contra, mas vai tomar um caminho mais suave, vai optar para que o projeto morra. Se o governo não fortalecer, esse projeto morre. É preciso impulsionar a semeadura, as colheitas, os circuitos de comercialização e isso tudo está no ar. Tabaré pode deixar passar o tempo e, apoiado em organismos internacionais conservadores, deixar morrer esse projeto. Ao menos a regulação do autocultivo (que já começou) me parece positivo e realizável, porém acho muito difícil que o Estado se encarregue de produzir e comercializar. O governo de Tabaré se dedicará a realizar uma forte campanha contra o álcool, em semelhança à realizada em sua gestão passada contra o tabaco.
– Com você analisa a campanha da Unidad Popular [Unidade Popular] e das forças que estão à esquerda da FA?
– Há um século o batllismo governava aqui. Um governo muito progressista sob o qual nasceram os dois partidos que, posteriormente, formaram a FA, comunistas e socialistas. Hoje em dia, se acomodam as duas forças que serão futuramente os substitutos do FA. São os que representam, por um lado, o programa fundacional de 1971 (Unidad Popular) e, por outro, os que representam as obrigações do extrativismo, ou seja, os ecologistas (Partido Ecologista Radical Intransigente), que estiveram muito próximo de conseguir um deputado. Cresceram muito as duas forças. Se somassem os votos nulos ou brancos teriam conseguido até algum senador. Recordemos que a Unidad Popular é um partido clássico, uma cisão do FA que reflete a grande quantidade de descontentamento com o governo. Pela primeira vez há um deputado à esquerda do FA e estão em condições de crescerem muito mais, já que a Frente está sofrendo uma ruptura que se aprofundará ainda mais com Tabaré.
Então, o cenário político volta a se formar como um bipartidarismo imperfeito. A FA por um lado e os brancos com bons resultados a nível municipal por outro. Na minha hipótese, o Partido Colorado continuará decaindo (recordemos que este partido governou nosso país durante um século). E o Partido Independente se prepara para recolher os colorados progressistas. As mudanças se darão muito lentamente e à uruguaia, ou seja, no terreno eleitoral.
– O que acontece com os movimentos sociais no Uruguai?
– O Uruguai é a exceção na América Latina. Na crise de 2002, o sistema de partidos não quebrou, tampouco houve quebra institucional como ocorreu em outros países. Houve uma mudança suave. Antes da crise, o FA tinha 45% dos votos e, depois, chegou a 51%. O Uruguai é um país de um forte Estado e uma forte institucionalidade. É o único país onde durante os últimos 60 anos o principal movimento social é o sindical. Foi, é e será principal movimento. Existem cooperativas de habitação, algumas rádios, porém não temos movimentos territoriais fortes como em outros lugares da América Latina. É preciso remontar à história do país para entender porque temos uma cultura de classe média tão potente e não uma cultura popular e plebeia. No Uruguai, até o carnaval, que é uma manifestação popular da cultura, é sumamente de classe média tanto em seu público como seus artistas. Porém, está é a realidade. Experiências como as dos movimentos piqueteros, os sem teto, sem terra, indígenas, zapatistas, estão muito distantes de nossa realidade. O movimento sindical se fortaleceu como nunca nos últimos dez anos e conseguiu conquistas importantes para os trabalhadores graças ao fato de ter um governo amigo.
– A falta de conflito é o que anula a possibilidade de formar organizações que construam o poder popular?
– Certamente a falta de conflito se deve a que o Estado funcione. Obviamente, funciona porque somos três milhões. Os níveis de pobreza e desigualdade social são crescentes (sobretudo nos serviços de saúde e educativos), porém existem mecanismos de intermediação muito fortes, ainda que alguns estejam se deteriorando. E na história política do Uruguai, o conflito não causa boa impressão. O conflito não é bem visto e nem sequer nos setores populares. Enfrentar e gritar não é bom… Porém, além disso, funcionam outros mecanismos substitutivos do conflito. Por isso o movimento sindical é o hegemônico, por suas instâncias de diálogos e quando existem conflitos não são para destituir, mas para reforçar essas políticas de diálogos. Isto se instalou de forma muito forte em nossa cultura política e hoje não existem forças sociais e políticas que se oponham a ela.
É difícil entender. Poderíamos discutir durante horas, mas muitos historiadores afirmam que no Uruguai não existiu oligarquia. Por diversas razões, como o povoamento tardio, o fato de ser um país fronteiriço que não conseguiu consolidar a propriedade privada dos estancieiros, a fraca presença da Igreja, dessa aliança que existiu em toda a América Latina entre a espada, a cruz e a terra e que no Uruguai não se deu. Além disso, o modelo extrativista fortalece as direitas por ser altamente concentrador de riquezas, e isto nos diz que as relações de força que tendem a favorecer a direita são produto das escolhas feitas por todos estes governos. Criaram polarização, muito desemprego e, depois de 12 anos de governo, não se pode evitar a culpa da direita. A direita faz seu jogo e vocês que fazem?
Creio que o progressivismo, tal como o conhecemos (governos que desenvolviam algumas políticas favoráveis aos setores populares, porém sem redistribuir riquezas) se acabou, sobretudo pela baixa do preço das commodities e pela mudança no cenário mundial. Agora, para continuar desenvolvendo essas políticas, é preciso entrar em conflito e creio que nem a Argentina e nem o Brasil estejam em condições para tal. Esta transição para outro ciclo implicará tensões muito fortes, onde a última palavra será do povo. Caso as pessoas se mobilizem, as portas para algo novo se abrirão. Não sabemos o que virá, mas será fundamental ver o que faz o povo na Venezuela, na Bolívia, na Argentina, no Brasil, no Uruguai e em toda a América Latina. A última palavra não será dos governos, mas do povo.
Fonte: http://www.resumenlatinoamericano.org/2015/03/04/raul-zibechi-el-progresismo-tal-como-lo-conocimos-ya-se-acabo/
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)