“O Capital no Século XXI”

por Michel Gruselle*

Introdução

O título do livro de Thomas Piketty, O Capital no século XXI, soa como uma réplica de O capital de K. Marx. Este livro chamou a atenção do CUEM na medida em que bate recordes de venda, vários milhões de exemplares, e porque o seu autor foi largamente solicitado para comentar as suas obras. Nos Estados Unidos esse livro suscitou um vivo debate mesmo nos meios progressistas. O New York Times saudou Piketty como o economista rock-star e o Financial Times baptizou o livro como extraordinariamente importante enquanto os prémios Nobel de Economia J. Stiglitz e K. Krugman acharam que se trata da obra mais significativa do ano, “apta” a transformar o nosso discurso económico”. Na França, o autor foi muito solicitado pelos media para comentar os acontecimentos económicos e mais recentemente a situação na Grécia. Desse ponto de vista recomendo a entrevista de Piketty por Iglésias, o líder do Podemos, entrevista disponível na Internet e que aclara as posições de Piketty e as do Podemos.

Daí a afirmar-se que Piketty renovou a ciência económica e que ele é o Marx do Século XXI, não vai mais que um passo, que alguns se apressaram a dar. Por exemplo, o jornal The Economist coloca-o acima de Marx: “Maior que Marx” declara.

A proximidade do título do livro com a da obra maior de Marx teve provavelmente um papel nos comentários mais que elogiosos que acabo de citar e numa miríade de outros ainda. O título é evidentemente importante numa obra e chama a nossa atenção. Para o leitor, no contexto da crise sistémica do capitalismo, é evidente o interesse de compreender o que é o capitalismo hoje, quais são as suas evoluções desde que este modo de produção começou a desenvolver-se e evidentemente quais seriam as soluções possíveis para sair de uma crise que agita o mundo inteiro.

Digamos que a notoriedade assim adquirida, o sucesso popular da edição, nos levou a interrogarmo-nos sobre o conteúdo da obra, as teses que defende e as propostas que apresenta para a economia.

Mais uma razão para ir ao fundo das coisas e fazer uma leitura crítica desta obra.

Apresentação geral da obra

Vou começar por uma apresentação rápida do livro sem focar os pormenores e tentando mostrar a sua lógica interna. O livro que comporta 950 páginas divide-se em quatro partes:

Rendimento e capital

A dinâmica da relação capital/receita

A estrutura das desigualdades

Regular o capital no século XXI

Se as três primeiras partes não parecem deixar aparecer um pendor político muito forte, que é apenas aparente, a ultima é claramente orientada para o que Piketty chama a “a retomada do controlo do capitalismo”. Na quarta parte, regular o capital no século XXI, pág. 751 passa a mensagem central do seu pensamento: Podemos imaginar para o século XXI, uma ultrapassagem do capitalismo que seja mais pacífica e mais durável, ou devemos simplesmente aguardar as próximas crises ou as próximas guerras, desta vez verdadeiramente mundiais? Tudo está dito ou quase tudo, quem escolherá o apocalipse guerreiro! O autor escolheu assim claramente o que ele chama a ultrapassagem do capitalismo.

A escolha dos termos nada deixando ao acaso, tem de ser examinada. Para já o conceito de “ultrapassagem do capitalismo”, que não é uma ideia nova, foi largamente utilizado no seu tempo por R. Hue para justificar o abandono pelo PCF de uma orientação revolucionária. O conteúdo é claro, as forças da ciência e da técnica levam naturalmente a uma transformação do capitalismo, que já não seria o capitalismo conservando as suas características centrais em particular as do mercado. Mas esta última profissão de fé reformadora aponta o receio de que as forças sociais passem a reger de outra forma o problema, ou seja por uma modificação profunda das relações sociais. Sente-se aqui um certo receio de que o reformismo não possa encontrar os meios políticos que permitam manter o sistema capitalista.

Na sua introdução Piketty apresenta uma grande parte das orientações que vão estruturar o seu discurso. De imediato nota que: “a repartição das riquezas é uma das questões mais vivas e mais debatidas hoje. Vejamos bem que se trata da repartição das riquezas e não do sistema de extorsão capitalista da mais-valia.

Lembremos que a riqueza não é o valor. O sistema capitalista cria o valor a partir da riqueza que constituem o trabalho e os recursos naturais.

Este conceito de repartição das riquezas não aparece por acaso. É a chávena de chá quotidiana de todos os que colocam deliberadamente o capitalismo como um universo inultrapassável cuja reorganização – precisamente através desta outra repartição das riquezas – bastará para lhe assegurar a perenidade. Aliás todas as forças que querem manter o domínio do capital ou julgam que não há outra solução senão o seu desenvolvimento procuram focalizar o seu discurso sobre esta famosa repartição das riquezas. A própria Igreja, na sua doutrina social, faz dela a pedra angular da sua marcha reformadora sem evidentemente pôr em causa o mundo de exploração do trabalho assalariado pelos detentores do capital. Lembremos também que Sarkozy queria uma nova partilha do valor acrescentado entre o capital e o trabalho, desejo que rapidamente caiu no esquecimento.

Nestas condições Piketty deve relegar Marx para a situação de visionário cujas predições não se realizaram. Partindo da ideia de que o capitalismo gera desigualdades, matiza imediatamente esta evidência incontornável, pelas contra-tendências que, segundo ele, estão em acção no sentido de permitir que o capitalismo se desenvolva, escrevendo na pág. 16 “o crescimento moderno e a difusão dos conhecimentos permitiram evitar o apocalipse marxista, mas não modificaram as estruturas profundas do capitalismo e as suas desigualdades…Mas existem meios para que a democracia e o interesse geral venham retomar o controlo do capitalismo e dos interesses privados, recusando os recuos proteccionistas e nacionalistas.” De que meios se trata? Vamos apresentá-los na quarta parte e demonstrar os seus limites.

Nesta citação breve podemos notar uma grande aproximação científica, ou seja a do interesse geral utilizada a contrario da luta de classes, uma vez que acima do seu antagonismo existiria uma finalidade que poderia reuni-los. Tendo estado alguns anos no CESER Ilha de França , posso testemunhar que este conceito de interesse geral não é mais que a folha de parra dos interesses do patronato e dos que os servem. O interesse geral é apenas o das classes dominantes e o dos seus interesses próprios. Serve para arrastar as classes dominadas no que é preciso chamar pelo nome a colaboração de classe. Claro que a classe dominante deve levar em conta as relações de força e é por vezes forçada a fazer concessões, como em 1936, 1945 e 68, perante lutas populares poderosas mas sem nunca se colocar fundamentalmente em perigo. De facto como retomar o controlo sobre o capital se pela sua mobilidade ele puder escapar-se aos constrangimentos que Piketty gostaria de impor-lhe.

Aquilo a que Piketty chama “a visão apocalíptica de Marx” é a lei fundamental que este último demonstrou: “a baixa tendencial da taxa de lucro”. Segundo Piketty esta baixa mataria a acumulação e levaria à revolta dos trabalhadores. Mas, esse destino negro previsto por Marx não se realizou! Como é necessária uma explicação para esta não realização do apocalipse, Piketty atribui a Marx uma falta profunda de lucidez sobre a realidade do movimento de acumulação do capital pág. 28: “Marx negligenciou totalmente a possibilidade de um progresso técnico e de um crescimento contínuo da produtividade, força que permite equilibrar o processo de acumulação e de concentração crescente do capital privado”.

É bastante divertido ler esta frase quando pelo contrário Marx consagrou muita energia a mostrar o papel do desenvolvimento científico e técnico na produção e no processo de acumulação do capital. Ao contrário do que afirma Piketty, a Tecnologia e a ciência desempenharam um papel importante no pensamento de Marx. Ele escreveu muito a propósito das grandes descobertas científicas da sua época. As matemáticas, a termodinâmica, as descobertas de Darwin inspiram frequentemente as suas propostas. Um exemplo, nos seus artigos consagrados à Ásia e publicados em 1853, Marx analisa o papel da ciência e da tecnologia inglesa no processo de destruição da sociedade indiana tradicional e também no desenvolvimento do capitalismo têxtil em Inglaterra.

Para terminar com a introdução notemos que Piketty envia piscadelas de olho daqui e dali para mostrar que apesar da reputação de homem de “esquerda” que entende atribuir-se, não está fora da confraria dos economistas ortodoxos, clássicos e neoclássicos, e digamos burgueses. Afirma-nos: “A desigualdade não é necessariamente má em si: “a questão das desigualdades depende das representações dos actores”.

Vejamos agora o desenvolvimento das quatro partes do livro.

Rendimento e Capital (primeira parte)

Nesta primeira parte Piketty coloca os parâmetros da sua demonstração. Num primeiro tempo apresenta algumas definições e as suas indicações são interessantes pois dão um sentido à via política do seu autor. Primeiro sublinha de novo o carácter conflitual da partilha de produção entre salários e lucros depois entre rendimento do trabalho e rendimento do capital. Nota que o capitalismo exacerbou esse conflito mas não dá qualquer explicação para este agravamento e não se interroga sobre o porquê da perenidade desse conflito.

Nas linhas que se seguem após as suas constatações bastante banais apresenta-se um deslize significativo já que da análise capital/trabalho, segue para o do capital/rendimento, o que é totalmente diferente uma vez que o capital/trabalho remete para o cerne do sistema de exploração capitalista enquanto o capital/rendimento remete para considerações de tipo estatístico e coloca no mesmo plano os rendimentos retirados do trabalho e aqueles retirados da especulação. Não toma portanto em conta o processo de extracção da mais-valia baseada no trabalho assalariado.

Lembremos que para Marx:

O capital é acima de tudo um tipo de relações sociais na medida em que os capitalistas só podem possuir e acumular capital graças à relação social que mantém com os trabalhadores. Marx parte da análise da escola clássica para a qual o capital é constituído por todos os meios de produção avançados pelos capitalistas durante o ciclo de produção, ou seja, bens que o capitalista adquire a fim de produzir (máquinas, matérias-primas, edifícios…) o que Marx chama “capital constante”, assim como a força de trabalho assalariada que Marx chama “o capital variável”. Lembremos que a força de trabalho é: a mercadoria que os trabalhadores assalariados, para viver, devem vender aos seus empregadores capitalistas. Eles vendem não apenas o seu trabalho, mas a sua capacidade de trabalho: a sua força de trabalho. Marx descreve um processo de produção organizado de modo a que os capitalistas invistam dinheiro (A) a fim de conseguir os meios de produção (M) e uma força de trabalho (T) para produzir as mercadorias (M) que vão vender por uma soma de dinheiro (A’) com A’ superior a A. A diferença positiva procurada entre A e A’ constitui a mais-valia.

Para Marx A’ é superior a A pois os capitalistas exploram os trabalhadores não lhes pagando a totalidade do valor que eles produzem pelo seu trabalho. O capitalista compra a força de trabalho cujo valor de utilização cria o valor de troca. Paga-a ao preço da reprodução desta força, preço inferior ao valor de troca criada.

Esta parte não lançada é utilizada pelo capitalista na sua qualidade de proprietário dos meios de produção. Assim, para Marx, é graças a este sobre-trabalho que os capitalistas obtêm um lucro, que lhes permite acumular capital. Ou por outras palavras, os meios de produção materiais não produzem por natureza do valor, eles só o produzem quando são accionados pelos trabalhadores assalariados e permitem conseguir a mais-valia e assim o lucro. Consequentemente, para Marx, em vez de ser uma coisa, o capital é uma relação social entre as pessoas. Essa relação social corresponde ao que Marx chama “relação de classe”.

Para Piketty a compra e a venda da força de trabalho não existem. Mais ainda, ele assimila totalmente o capital ao património, ele chama-lhes na pág. 84 “sinónimos perfeitos” e utiliza-os de modo intercambiável. Para ele, o capital ou património representa o conjunto dos activos não-humanos que podem ser possuídos ou trocados num mercado. Divide depois esse capital global em capital público e privado. Esta confusão entre capital e património não é inocente. Constatamos ao ler a obra que o autor joga astuciosamente com esta confusão património/capital utilizando um ou outro dos dois termos (que ele acha permutáveis) para dar um sentido particular à sua demonstração.

Voltarei aqui mas para já queria lembrar como a língua francesa trata deste assunto.

Segundo o Tesouro da Língua Francesa (TLF) a definição do património é a seguinte:

“Conjunto de bens herdados dos antepassados ou reunidos e conservados para serem transmitidos aos descendentes.

Conjunto dos bens e obrigações de uma pessoa (física ou moral) ou de um grupo de pessoas, apreciável em dinheiro e no qual entram os activos (valores, créditos) desse.

Segundo o TLF a definição do capital é a seguinte:

1. Bens monetários possuídos ou emprestados, por oposição aos lucros que podem produzir.

2. Conjunto dos meios de produção (bens financeiros e materiais) possuídos e investidos por um indivíduo ou um grupo de indivíduos no circuito económico. Por extensão conjunto dos meios de produção incluindo o trabalho humano”

Vemos assim que o próprio TLF faz uma diferença entre património (o que se possui) e capital) (o que se investe). Com efeito esta assimilação não é inocente capital/património, já que nessas condições o operário ou o assalariado que possui a sua casa está na mesma condição do capitalista como detentor de capital e será globalmente levado em conta na parte capital ou património das estatísticas. Nesse passe de prestidigitação Piketty apaga mais uma vez a realidade de classe entre os que possuem os meios de produção e os que apenas têm a sua força de trabalho. Para citar Marx e Engels no manifesto do Partido Comunista: “Ser capitalista, é ocupar não apenas uma posição puramente pessoal, mas ainda uma posição social na produção. O capital é um produto colectivo. Só pode ser posto em movimento pela actividade em comum de muitos indivíduos, e mesmo em última análise pela actividade em comum de todos os indivíduos, de toda a sociedade. O capital não é assim uma potência pessoal, é uma potência social.

Voltando à relação capital/rendimento Piketty anuncia que o que ele chama a primeira lei fundamental do capitalismo (segundo a sua definição evidentemente).

Alfa = r x beta

r = relação capital/rendimento

Beta = relação capital/rendimento.

Alfa = parte do capital no orçamento nacional

De facto esta igualdade é uma identidade, sempre verdadeira por construção.

Notemos que aqui Piketty utiliza o termo capital e não património.

Mesmo que do meu ponto de vista de cientista esta fórmula não constitua uma lei ela vai servir ao autor para descrever a evolução do capital através dos tempos e do espaço. Nota ainda assim que constitui uma tautologia mas isso não o impede de fazer dela bom uso, que é apenas a relação que estes valores mantêm entre si sem identificar as linhas de força que decorreriam dessa “lei”. De passagem, nota que r (taxa de rendimento médio do capital) é a base da análise marxista, juntamente com a baixa tendencial das taxas de lucro, que acrescenta constituir uma predição histórica errónea. Na verdade essas duas afirmações são falsas. O r piketiano não é taxa de lucro, engloba todos os rendimentos do património, qualquer que seja a sua forma jurídica englobando mesmo as cadernetas de poupança! Por outro lado Marx indica que a baixa tendencial das taxas de lucro é precisamente tendencial, o que está longe da visão dada por Piketty que faz crer que para Marx esta baixa não teria nem contra-tendências nem “acidentes”, e segundo uma curva regular levaria à morte “térmica” do capitalismo. Vamos ao livro III do Capital onde Marx desenvolve longamente entre outros, estas contra-tendências e acidentes.

O facto de Piketty levar em conta a taxa de rendimento do capital está directamente ligada à sua definição do capital. Mistura assim a taxa de lucro e as mais-valias bolsistas ou imobiliárias, mistura o capital que se valoriza na produção e o dinheiro investido nas operações puramente especulativas. Mas, no fundo, tudo isto não reflectirá o crescimento dos capitais que procuram valorizar-se para lá da produção pela especulação? Notemos que estes capitais enormes que se investem na especulação não acrescentam sequer um iota em bens mercantis ou serviços úteis à população. Pesam sobre o preço da compra das matérias-primas, dos imóveis… alimentam as bolhas financeiras e a crise.

Para terminar esta parte, gostaria de sublinhar a ligeireza de Piketty quanto à análise da repartição mundial do rendimento e factores de convergência que podem aproximá-los. Assim, escreve ele ao falar da dominação económica dos países mais ricos sobre os países pobres: “Em princípio, esse mecanismo pelo qual os países ricos possuem uma parte dos países pobres pode ter efeitos bons em termos de convergência”. Os países que sofreram o domínio colonial e sofrem o domínio neocolonial apreciarão esta opinião. Isso opõe-se à realidade social e económica de numerosos países pobres cuja libertação do domínio imperialista é mais do que dolorosa e mortífera.

É certo que para Piketty pág. 144: “A história do desenvolvimento económico é antes de mais a da diversificação dos modos de vida e dos tipos de bens e serviços produzidos e consumidos”. Diz isto sem se rir!

A dinâmica da relação capital/rendimento (segunda parte)

Nesta parte, o autor descreve o que ele chama: “as metamorfoses do capital”. Em especial em França e na Inglaterra, sublinha a propósito, a evolução do capital fundiário para o capital imobiliário e industrial. As guerras, a colonização, a escravatura e depois a descolonização desempenharam um papel importante nesse processo.

Afirma na pág. 190: “O capital tinha desaparecido em grande parte em meados do Século XX. São as guerras que no século XX fizeram tábua rasa do passado e deram a ilusão da ultrapassagem estrutural do capitalismo”. Confesso não apanhar o que o autor pensa através desta afirmação, salvo se ele confunde (voluntariamente?) rendimento e capital. Mas o rigor não parece ser a virtude essencial do conteúdo deste livro. Pág. 202. — constatando que o Estado desempenha um papel importante no processo de acumulação do capital e dos patrimónios e que o essencial do património é privado o autor faz uma importante descoberta que resume assim: “A França tal como o Reino Unido sempre foram países fundados sobre a propriedade privada e nunca experimentaram o comunismo do tipo soviético”.

Segundo ele, a análise do papel da dívida na acumulação do capital nos séculos XIX e XX atingiu resultados opostos, tendo no século XIX uma dívida pública que reforça os patrimónios por uma relação positiva dos empréstimos enquanto os liquida pela inflação depois de 1945.

Voltando a esta ideia que o pós-guerra é marcado por uma França de um capitalismo sem capitalistas, nota que as nacionalizações de 1945 conduziram a um papel reforçado do Estado, o que é uma evidência. Mas o autor não se atarda em analisar o porquê político desta situação e o papel que os Estados desempenharam e desempenham para permitir a constituição de monopólios capazes de se inscrever na nova concorrência mundial nas relações de força decorrentes da guerra e da derrota do campo socialista. Seria ainda mais interessante que, ao lado e em concorrência com a tríade USA, UE e Japão surjam forças estatais capitalistas novas que designamos pelo acrónimo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e Africa do Sul).

O exame da situação na Alemanha e na América dá-lhe ocasião de mostrar as diferenças nos processos de acumulação, na Alemanha, com as características de um capitalismo dito renano, detido em parte pelos assalariados, as regiões e as associações e que asseguraria uma maior estabilidade do capital. Ora sucede que esta visão das coisas, se está de acordo com a realidade no domínio das Empresas de Dimensão Intermédia (ETI), não o está no caso do grande capital monopolista industrial e financeiro. Assim o papel dos grandes trusts alemães da química, da metalurgia, da finança… não é evocado por Piketty.

Admite que a concorrência exacerbada entre as potências europeias está na origem da grande guerra de 1914-18 mas não põe em causa os monopólios e julga-se obrigado a acrescentar que não precisa de concordar com Lénine para chegar a uma tal conclusão.

Piketty chega então ao que chama na pág. 262 a segunda lei fundamental do capitalismo:

Beta = s/g

Beta = capital/rendimento

s = taxas de poupança

g = taxas de crescimento

Pág. 266 esta lei que se torna “uma equivalência contabilística” deve ser estudada num longo período e descreve um processo dinâmico da acumulação.

Estudando as variações de beta o autor conclui que, após uma grande depressão devida à guerra, depois de 1970 os patrimónios se reconstituíram e ainda se reconstituem. Desde 1970, assistimos segundo o autor à “emergência de um novo capitalismo patrimonial” e isso na base de um crescimento fraco do denominador o que matematicamente faz crescer o beta enquanto as taxas de poupança permanecem elevadas pelo facto da transferência da riqueza pública para a privada pelas privatizações e a subida dos preços dos activos imobiliários e bolsistas. Tudo isto está evidentemente ligado a uma política favorável ao capital. Uma nota de passagem sobre a expressão “capitalismo patrimonial”. Se capital e património são sinónimos perfeitos que pode significar esta expressão que poderia também chamar-se: “capitalismo capitalista ou património patrimonial ou ainda património capitalista”. Medimos bem a confusão que preside a esta passe de prestidigitação que consiste em confundir capital e património!

Uma questão emerge na pág. 303 — sobre quem possui o quê, alguns países não se encontram na posse de outros? Na hora de uma “mundialização” generalizada esta questão é evidentemente pertinente. Piketty afirma que cada país está em grande parte na posse dos outros e que : “os activos e passivos financeiros progrediram ainda com mais força que o valor limpo dos patrimónios. Isso demonstra o desenvolvimento sem precedente das participações cruzadas entre sociedades financeiras e não financeiras de um mesmo país e entre países, isso está muito marcado para os países europeus. É uma questão interessante que cobre a realidade do imperialismo mas que não o analisa.

Piketty debruça-se depois sobre a questão da partilha capital/trabalho no Século XXI.

Depois de haver constatado as flutuações na partilha capital/trabalho no decurso do tempo na base da equação alfa = r x beta, de que deduz a parte do capital e do trabalho no rendimento nacional, conclui com o aumento do capital desde 1970 e na estabilização a partir de 1990. Mas esse cálculo coloca uma problema sério pois a partilha assim efectuada nada diz sobre a realidade da parte dos salários no valor produzido, nem sobre os lucros capitalistas nem sobre o preço da força de trabalho e sobre o grau de exploração do trabalho assalariado.

Piketty introduz duas noções:

A taxa de rendimento médio do capital e a noção de produtividade marginal do capital (PMC)

A taxa de rendimento médio do capital:

É uma construção abstracta de elementos e de rendimentos diversos (acções 7%, activos diversos 4%, imobiliário 4%, conta de poupança 1,5%…) a taxa de rendimento médio assim calculada agrega colocações diversificadas e dilui os lucros capitalistas ligados à colocação em movimento do capital na produção das mercadoras e dos serviços e daqueles ligados à especulação.

A noção de produtividade marginal do capital (PMC)

Este PMC é definido pelo valor da produção adicional trazida por uma unidade de capital suplementar. É uma definição idêntica a que prevalece para a produtividade do capital marginal do trabalho PML. De facto, estes PMC e PML servem para calcular a quantidade óptima de capital e o trabalho necessário à realização de uma mais-valia máxima.

O resultado Produtividade Marginal do Trabalho está na base de todos os trabalhos explicando o desemprego pelo nível demasiado elevado dos salários (ver o livro de Laurent Cordonnier “Pas de pitié pour les gueux!”).

PMC e PML ligados à produtividade do trabalho e do capital justificam a tese dos economistas ortodoxos. Não há conflitos possíveis na partilha do valor acrescentado entre trabalhadores e detentores do capital já que o lucro não é mais do que a simples remuneração da produtividade do capital e do trabalho. Por outras palavras, PMC e PML justificam que o livre-jogo dos mercados não faça mais que remunerar trabalhadores e detentores de capital ao seu “justo nível”, o da sua produtividade.

Piketty critica, com razão, estas noções baseadas na teoria de Cobb-Douglas. Calcula na pág. 344 que a conclusão a que levam de uma estabilidade na partilha capital/trabalho: “dá uma visão relativamente serena e harmoniosa da ordem social. Pode conjugar-se com uma desigualdade extrema da propriedade do capital e da repartição dos rendimentos”. Se não chega a nenhuma conclusão clara aproveita a ocasião para se demarcar uma vez mais da análise marxista. Assim, volta a esta noção fundamental de “baixa tendencial da taxa de lucro” para apontar que na aproximação de Marx (de quem afirma: “que a sua prosa não é sempre límpida”! subentendendo-se que a de Piketty o é), a acumulação infinita que prevê não leva em conta o progresso da tecnologia que favorece um aumento da produtividade e assim “equilibra” o processo de acumulação do capital. Sem isso, afirma o autor, a predição de Marx leva à guerra e/ou a impor ao trabalho uma parte mais fraca do rendimento nacional e teria como consequência a revolução. Fazer dizer a Marx o que ele não disse ou torcer os seus enunciados é uma necessidade permanente para Piketty! Veremos que é também uma das motivações políticas deste trabalho. Além disso Piketty parece ignorar o mundo real, o dos confrontos inter-imperialistas para a partilha e repartilha do mundo, a conquista de espaços, de recursos, de novos mercados e de força de trabalho a explorar. Parece também ignorar as políticas usadas para fazer baixar o preço da força de trabalho e aumentar a exploração dos assalariados.

Por outro lado a baixa tendencial da taxa de lucro não diz que os lucros diminuem em valor absoluto; pelo contrário, aumentam-nos. A luta de classes do século XXI é alimentada por essas realidades que a prosa piketiana não saberia enunciar. Não é a concluir esta parte pela afirmação que “o crescimento moderno (produtividade e conhecimento) permitiu evitar o apocalipse marxista e equilibrar o processo de acumulação do capital, mas sem lhe modificar a estrutura profunda” que Pyketty nos convence do valor da sua argumentação.

A estrutura das desigualdades (terceira parte)

Esta parte não é falha de interesse quanto à descrição das desigualdades, quero apenas sublinhar os aspectos mais marcantes e discutir algumas questões de metodologia.

É sobre a questão da definição do conceito de classe que Piketty se esforça para explicar o seu ponto de vista. Trata-se de um problema capital. O autor afirma, justamente, que as definições neste domínio não são anódinas. Considerando que toda a representação das desigualdades fundada num número de categorias limitadas está votada ao esquematismo já que a realidade social é, segundo ele, uma repartição contínua, vai elidir a realidade de classe para se agarrar a uma categorização por déciles e centiles de rendimento do capital e/ou do trabalho. Trata-se aí de um ponto fundamental. Com efeito, agarrar-se a uma visão estatística a partir dos rendimentos apaga o lugar de uns e de outros nas relações sociais e em particular nas relações de exploração à base do próprio sistema capitalista. Negar a divisão da sociedade em classes e em particular em classes antagónicas, conduz a aceitar essa divisão e a fazer do capitalismo o horizonte inultrapassável da história das relações sociais e, no melhor dos casos, a que Piketty se agarra, preconizar – vê-lo-emos mais tarde – uma humanização do capitalismo, se tal é possível dada a própria natureza desse sistema.

Nessas condições, Piketty fica-se por uma visão do pensamento económico clássico e neoclássico da emergência de uma “classe média patrimonial” e, por que não, segundo os seus sinónimos perfeitos que são o capital e o património, uma “classe media capitalista”. Afirma na pág. 410 que esta inovação maior do século XXI constitui a principal transformação da repartição de riquezas no século XX. Acrescenta que esta classe média permitiu uma transformação profunda da estrutura social e política. O que constitui uma afirmação audaciosa pois as camadas que chama médias não têm o poder, que já foi confiscado pelo grande capital e, como ele próprio afirma, ficam apenas com as migalhas.

À pergunta “O Século XXI será ainda mais desigual que o Século XIX?”, responde pág. 598: “é ilusório imaginar que existe na estrutura do crescimento moderno ou nas leis da economia de mercado forças de convergência que levem naturalmente a uma redução das desigualdades patrimoniais ou a uma estabilização harmoniosa”. Este reparo após longos desenvolvimentos sobre o crescimento das desigualdades deveria levar o autor a inquietar-se com as causas profundas desta situação. Mas nada disso sucede e o autor nota mesmo na pág. 613: “Por razões tecnológicas, o capital desempenha hoje um papel central no processo de produção e portanto na vida social”. Não se pode escolher mais claramente o seu campo! Porquê referir-se a razões tecnológicas se o capitalismo não coloca em acção as ciências e as tecnologias a menos que elas entrem numa estratégia adequada ao seu desenvolvimento. As razões são com efeito de ordem económica e política.

A partir daí Piketty vai justificar esta escolha. Como justificar as desigualdades e baseá-las num princípio racional aceitável pela sociedade. As pág. 671-672 e 674 esclarecem este ponto de vista. Retoma a racionalização política, a da declaração dos direitos do homem, que é o fundamento da emergência do domínio da classe burguesa capitalista. “Em democracia, para sair da contradição da igualdade proclamada e das desigualdades reais, é vital que as desigualdades decorram de princípios racionais e universais. As desigualdades devem ser então justas e úteis para todos”. Depois, para se fazer entender, acrescenta pág. 674: “A partir do momento em que o capital desempenha um papel útil no processo de produção, é natural que tenha um rendimento”. Esta tese lembra os esforços dos neokeynesianos para preconizar um cálculo do custo de trabalho e um do custo do capital e uma outra partilha das riquezas, sem tocar evidentemente no próprio sistema capitalista. Esta concepção alimenta mesmo hoje o pensamento teórico das confederações sindicais em França e na União Europeia.

Colocar-se do lado do capital não tolda a lucidez de Piketty, já que se interroga sobre a evolução da progressão das desigualdades nos seguintes termos, pág. 685: “Não arriscam as forças da mundialização financeira a levar, nos séculos que se abrem, a uma concentração do capital ainda mais forte do que todas as observadas no passado, se é que o caso não é já esse?” Seríamos tentados a dizer esperar 685 páginas para uma tal observação sujeita os nervos do leitor a rude prova, mas podemos também observar a Piketty que uma leitura um pouco mais atenta de Marx tê-lo-ia convencido que, longe de uma visão apocalíptica, Marx tinha claramente previsto este fenómeno de concentração do capital e que Lénine juntou uma camada à espessura dessa observação ao descrever a formação de uma fase imperialista ligada à fusão do capital financeiro e industrial na constituição de monopólios. Realidades e fenómenos que inegavelmente aceleraram nos últimos decénios.

Perante esta dinâmica de concentração do capital Piketty volta na pág. 701 à sua proposição central, a de um imposto progressivo sobre o capital a nível mundial para permitir contrariar eficazmente essa dinâmica.

Para atenuar o “choque” desta perspectiva afirma que: “por mais justificadas (por quem?) que sejam do início, as fortunas multiplicam-se por vezes para lá de qualquer limite e de toda a justificação racional possível em termos de utilidade social”. Estamos em plena moralização e a sequência vai mostrar os limites da audácia piketiana!

Regular o capital no século XXI (quarta parte)

Pág. 751 retoma a ideia da necessidade de uma superação do capitalismo para o regular antes que chegue uma grande catástrofe. Piketty coloca a seguinte questão pág. 762: “Que instituições políticas poderiam permitir regular de modo simultaneamente justo e eficaz o capitalismo patrimonial mundializado do século?”. Esta questão leva a outra: “que estado social para o séc. XXI” e mais precisamente “qual o papel do poder público na produção e na repartição das riquezas e na construção de um estado social adaptado ao século XXI.” Para lá do que aparecia como o cúmulo das boas intenções: “modernizar o estado social e não o desmantelar” encontramos todo o discurso actual sobre a reforma, cujo conteúdo está claramente orientado no sentido dos interesses do grande capital. É só ver o conteúdo da lei de modernização dita lei Mácron que a coberto de modernidade liquida áreas inteiras de conquistas sociais dos assalariados. Nesta “modernização” é fácil encontrar os temas em voga:

Mistura público/privado

Reforma das pensões que admite, como os sucessivos governos, que elas devem continuar por repartição, mas de que é necessário prolongar a duração de contribuição e modificar as base de cálculo. Afinal nada de original!!!

Mais Europa económica e política

Perante as desregulamentações que julga nefastas para a manutenção da ordem social Piketty insiste fortemente na questão da fiscalidade. E retoma a sua ideia de um imposto mundial sobre o capital. Mas, medindo a dificuldade e a ausência de credibilidade de uma tal proposta quando sabemos das somas tragadas pelos paraísos fiscais e da complexidade dos mecanismos bancários que visam poupar às empresas o pagamento do imposto, Piketty considera a sua própria proposta como ilusória, como o é de forma idêntica a famosa taxa Tobin, cara aos reformistas políticos. Nessas condições, aproveita para incluir no terreno da mais Europa necessária segundo ele para conseguir regular o capital. Evidentemente que não se coloca a questão da natureza da construção europeia, a de uma agregação imperialista ao serviço dos monopólios da qual os povos sofrem a dolorosa experiência.

Ainda sobre o imposto, Piketty, pág. 840 atribui-lhe um objectivo de transparência democrática e financeira. Afirma que esse imposto mundial será modesto em termos de receita. Não é, segundo ele, para: “financiar o Estado social mas para regular o capitalismo”. Os capitalistas devem ficar mortos de medo perante uma tal perspectiva!

A segunda parte é consagrada à questão da dívida. Uma ocasião para elaborar uma grande explicação sobre a necessidade de dar um Estado ao Euro, ele que é a única moeda sem Estado. Trata-se claramente de uma apologia para uma Europa federal criando “um parlamento orçamental da zona euro”. Esta Europa estaria assim necessariamente totalmente integrada no plano político.

Para acabar verdadeiramente, mas “in cauda venenum”, Piketty afirma que “o mercado e o voto são apenas duas maneiras polares de organizar as decisões colectivas” e para ter uma boa medida reformadora acrescenta na pág. 940: “para que a democracia chegue um dia a retomar o controlo do capitalismo, é preciso primeiro partir do princípio que as formas concretas da democracia e do capitalismo estão ainda e sempre a reinventar-se”. Podemos medir nesta afirmação a impossibilidade de conseguir tal coisa mas na verdade não é esse o objectivo de Piketty nem dos seus mandatários. Tudo isso coloca a questão: Porquê o livro de Piketty, que interesses serve?

Porquê o livro de Piketty, quais os interesses que serve?

Na crise profunda do sistema capitalista, na luta encarniçada que o capital trava para restabelecer as taxas de lucro, os ideólogos burgueses, conscientes da rejeição das suas medidas políticas por uma parte crescente da população, estão à procura de um compromisso social que lhes permita neutralizar a luta de classes ou desviá-la para que in fine a dominação do capital permaneça. Nessa luta, é preciso a todo o custo mostrar que não há outra saída senão aceitar a lei do capital. Assim, é necessário sistematicamente desclassificar as análises apoiando-se na existência das classes sociais e seu carácter antagónico no sistema capitalista, e substitui-lo por uma análise em termos de grupos sociais. É também necessário “purificar” a economia da política e afastá-la de uma análise global da sociedade e do seu movimento.

É preciso distinguir o papel do Estado do do capital, dando a ilusão de que o Estado é neutro, acima da confusão. Donde os discursos sobre o Estado estratega. Nessas condições, Marx e os marxistas devem ser desconsiderados e afastados para as fileiras dos doces sonhadores, e na pior das hipóteses para as dos teóricos do “totalitarismo”. Expurgar a luta de classes da paisagem é evidentemente uma tarefa árdua, mas necessária do ponto de vista do capital. Isto necessita de se apoiar em organizações sociais, especialmente sindicais e politicas, que pratiquem a colaboração de classe. É a esta necessidade imperiosa que responde uma demanda de “teorização” do movimento da sociedade, do ponto de vista do capital, claro está. É este finalmente o conteúdo político do livro de Piketty. Ele dá uma visão da realidade, que é difícil ignorar, a das desigualdades, a da sua perenidade, uma visão do seu aprofundamento ao mesmo tempo que o capital se concentra. Simultaneamente, nega toda a realidade de classe e remete para “soluções” que ignoram a realidade da exploração capitalista. Nesse sentido o livro de Piketty é útil para uma variante política visando a justificar a aceitação da política do capital.

Indo ao fundo da questão, haverá uma via reformista possível?

Esta parte da minha exposição está destinada a abrir um debate que se vai centrar na questão mais fundamental da possibilidade de uma via reformista, que vise transformar e moralizar o capitalismo.

Vou apresentar o meu ponto de vista sem demora e vou responder brutalmente “Não, não há”! Mas, dizem alguns, sendo a relação de forças como é, é razoável a curto prazo uma linha de classe, e que apoio utilizar para reconstruir uma consciência de classe do lado dos trabalhadores? Vou tentar responder.

Se analisarmos rapidamente o que se passa actualmente na Europa, medimos bem o impasse que representa a procura de um compromisso político com as forças do capital. É a experiência que faz o povo grego quando o seu governo afirma defender simultaneamente os seus interesses e colocar-se do ponto de vista da NATO e da Europa.

Para manter o poder e manter o sistema de exploração capitalista, para desarmar ideologicamente os trabalhadores mascarando as causas da crise, as classes burguesas na Europa recompõem permanentemente as forças políticas quer de direita quer de esquerda. É assim cada vez mais necessário que para manter ou seja restabelecer as taxas de lucro, os capitalistas devam forçar cada vez mais os recuos sociais e a exploração do trabalho assalariado. Fazer baixar o preço da força de trabalho e aumentar a exploração dos povos é o seu grande objectivo, aquele que jamais perdem de vista. Esta recomposição das forças políticas visa a aspirar e desviar o descontentamento geral pelas medidas anti-sociais tomadas pelos governos. Ela toma formas diversas de acordo com os países. Mas há características comuns a registar. Assim, a divisão da sociedade em classes antagonistas (o assalariado explorado e o capital explorador) é substituída pelo conceito dos que estão em cima e dos que estão em baixo. Esse conceito, que apaga as diferenças de classe, é utilizado de formas diversas. O mesmo acontece ao capitalismo que é baptizado de novo como “neoliberalismo”. Esta designação tem a virtude de poupar o próprio sistema e, se permite fustigar as “finanças”, sobretudo não toca na natureza do capitalismo. É de bom-tom condenar o “neoliberalismo” e as finanças e dar assim a entender que a crise é apenas uma desregulação do capitalismo.

Ao atacar o “capitalismo neoliberal” todas estas forças omitem qualquer crítica sobre a natureza capitalista e imperialista da construção europeia. Esse discurso é o de toda a esquerda europeia, dita radical ou não, que afirma a possibilidade de uma reorientação da UE para mais “social”.

Contudo, a natureza imperialista da UE é clara, os factos mostram-no bem. Sob a égide da NATO, os países europeus participam em verdadeiras guerras de conquista e de destruição de nações: Afeganistão, Jugoslávia, Ucrânia, Iraque, Líbia, Síria, apoio indefectível ao Estado de Israel, intervenção em África…

Sejamos claros, sem uma análise rigorosa da natureza imperialista da União Europeia não é evidentemente possível começar a luta contra o próprio capitalismo. Agarrar-se a fórmulas gerais como a saída do Euro e da Europa, sem atacar a natureza capitalista da UE e dos Estados que a compõem será apenas o espelho da fórmula vazia da transformação da Europa em Europa social.

Conclusão

Piketty apercebe-se e de certo modo ilustra o grau de parasitismo do capitalismo.

Esta situação de crise sistémica exacerba os confrontos inter-imperialistas para a partilha e a repartilha do mundo. Arrasta consigo conflitos armados conduzidos pelo imperialismo cujo preço é pago pelos povos. Esta situação é a causa de recuos sociais e democráticos sem precedentes, e ameaça a paz mundial. Nessas condições, a impotência de Piketty em propor uma saída que não seja a do rearranjo do capitalismo pela fiscalidade, a educação e a investigação, discurso recorrente dos reformistas de todos os matizes, tem algo de patético. Este rearranjo do capitalismo releva mais do sonho do que a realidade. É irrealista e a experiência demonstra-o todos os dias.

O único realismo, na minha opinião, partindo da análise das condições da luta de classes, é a luta pela emancipação dos trabalhadores e portanto a expropriação do capital.

*Investigador do CNRS. Conferência em 5/Março/2015.

O original encontra-se em www.cuem.info/?page_id=364 e a tradução de Manuela Antunes em www.odiario.info/?p=3594

Este texto encontra-se em http://resistir.info/ .

Categoria