O Canal da Nicarágua e o risco de um novo imperialismo
Victor Farinelli
Embora ainda resistido por ambientalistas e cientistas no mundo inteiro, além de camponeses e operadores turísticos em seu próprio país, o Canal da Nicarágua está saindo do papel.
Graças ao poder dos mais de 40 bilhões de dólares investidos pela empresa chinesa HKND (Hong Kong Nicaragua Development, do megaespeculador chinês Wang Jing, criada especialmente para construir e administrar a obra), os trabalhos já começaram, ainda que em ritmo lento, devido aos protestos e obstáculos judiciais que ainda enfrenta.
ojeto anunciado em julho de 2014, terá 278 quilômetros desde o Mar do Caribe, cruzando boa parte do Rio San Juan, até chegar ao gigantesco Lago Cocibolca, o segundo maior da América Latina – atrás somente do Titicaca, entre a Bolívia e o Peru – e um dos mais conhecidos cartões postais nicaraguenses.
Os trabalhos necessários para viabilizar o canal incluem uma série de desvios que tornarão o San Juan navegável para embarcações de grande porte, incluindo trechos entre montanhas e uma fuga de regiões do rio mais próximas da fronteira com a Costa Rica – para evitar problemas diplomáticos – além das obras no Cocibolca, sendo a principal delas a conexão, através do Istmo de Rivas, que ligará o lago com a costa do Pacífico. Também serão construídos portos de águas profundas, próximos aos dois extremos do canal, nas cidades de Punta Gorda (costa leste) e Brito (costa oeste).
Será o investimento chinês mais importante na América Latina nesta década, recebendo quase um quinto cerca de 250 bilhões de dólares que o gigante asiático tem previsto destinar ao continente nos próximos dez anos, e colocando a Nicarágua no mesmo patamar dos principais parceiros comerciais da China na região, como Venezuela, Brasil e Argentina.
Embora a iniciativa, no caso do canal, seja de uma empresa privada, se presume, que o próprio governo chinês esteja participando, pelo fato de ser uma entidade criada especialmente para a obra, pela verba bilionária destinada ao projeto e porque coincide com uma política do país comunista em se aproximar da América Latina, a partir de acordos com quase todos os países da região, incluindo vínculos criados com organismos regionais, como a CELAC (Comunidade de Estados Latino Americanos e Caribenhos, que realizou, em janeiro deste ano, um fórum especial em conjunto com a China, em Santiago do Chile).
O ponto mais complexo, mas também previsível, desse verdadeiro negócio da China é a concessão da operação e dos direitos econômicos sobre o futuro canal à empresa HKND por cinquenta anos, com direito a ampliação por outro meio século, que só não será exercida em caso de desistência oriental, concedendo um suposto, e ainda assim condicionado, direito a veto para os centro-americanos.
Mas existem outros elementos desfavoráveis, e que ferem princípios constitucionais, incluídos na carta magna por iniciativa do próprio presidente atual do país, o sandinista Daniel Ortega, como o fim da obrigatoriedade para as empresas chinesas de usar mão de obra local ou buscar apoio técnico e logístico em parceiros nicaraguenses, além da ampla isenção de impostos, apresentada como condição para viabilizar o investimento.
A simbologia deste caso deveria ressuscitar velhos temores na região, mas eles estão escondidos pela esperança de se vencer velhos inimigos. Um canal interoceânico na América Central, com dinheiro estrangeiro implicando em perda da autonomia econômica sobre parte de um território, é história conhecida. Aconteceu no Panamá, com os Estados Unidos exercendo controle total sobre as atividades na Zona do Canal durante 96 anos, considerando o tempo de construção e o período em que se manteve dono da região, até que o Tratado Torrijos-Carter estabeleceu o último dia de 1999 como data para a entrega da soberania do canal, definitivamente, ao governo panamenho.
Para o resto da região, o Panamá era um símbolo, mas não uma exceção. Os demais países também foram reféns de acordos e investimentos realizados pelos Estados Unidos durante os Séculos XIX e XX, e ainda hoje, os governos da região, especialmente os de visão mais progressista, tentam se desvincular dessa dependência do capital estadunidense, e de seus interesses nas respetivas políticas internas.
Não é possível fazê-lo totalmente, mas em tempos de reordenamento da geopolítica mundial, a China surge como um oásis, com a ilusão de uma parceria que trará menos dependência e uma relação menos sujeita a intervencionismos. A mesma esperança tinham os que, há cem anos ou mais, viam nos Estados Unidos uma alternativa ao imperialismo britânico ou a compromissos com a Espanha que permaneceram pendentes depois dos processos independentistas.
O tempo dirá se o Canal da Nicarágua será o símbolo da influência da China na região, e como será essa influência, se mais daninha ou mais amistosa que a dos Estados Unidos e das potências que impuseram seus interesses à América Latina nos séculos anteriores.
Ainda não está provado se as experiências colonizadoras calejaram os líderes latinos, principalmente os progressistas. Pode-se entender uma direita resignada ou até ansiosa em cooperar com os Estados Unidos, mas a esquerda, que sempre criticou essa situação, deveria ser a mais preparada para evitar relações que, no futuro, possam ser desfavoráveis, mesmo que venham de um país supostamente comunista – condição bastante questionável na prática.
Os obstáculos ao Canal
Os protestos contra o canal não são poucos, mas carecem de repercussão internacional. As comunidades rurais do sul do país estão preocupadas com as transformações no leito do Rio San Juan e em como serão afetadas. O governo diz que os manifestantes são grandes latifundiários, e que não têm do que reclamar, já que a empresa chinesa se comprometeu a indenizar todas as propriedades que forem removidas. Contudo, também existem muitas famílias de pequenos camponeses, provavelmente a maioria dos que reclamam das obras, que têm no San Juan o seu meio de subsistência. Para eles, as indenizações serão ajuda de curto prazo, antes que se esgote sua principal fonte de renda.
Os ambientalistas também protestam contra os desvios do Rio San Juan, mas concentram suas energias nos efeitos que o canal levará ao Lago Cocibolca, um problema muito mais complexo do ponto de vista ecológico, já que, antes mesmo de se iniciar essa parte da obra, a destruição do ecossistema local já atingiu níveis preocupantes. Já são décadas em que o uso de suas águas para o despejo de lixo, esgoto e resíduos químicos vem acumulando efeitos trágicos.
As 50 mil toneladas diárias de despejos são como uma overdose de poluição a uma das mais belas paisagens do mundo. Um espelho d´água de 8 mil quilômetros quadrados, repleto de pequenas ilhas vulcânicas – uma delas, a Omatela, é a maior ilha lacustre do mundo, e possui dois vulcões em seu território – e que já sente os efeitos da devastação em seu ecossistema marinho, cujas mais de trinta espécies aquáticas começam a sofrer perigo de extinção – o tubarão-touro, única espécie desse animal adaptada à água doce, só não está considerado extinto porque pode ser encontrado em habitats semelhantes de outros continentes, mas já não se vê mais no Cocibolca.
O governo nicaraguense nega tudo, baseado em questionáveis estudos de impacto ambiental, cujos conteúdos nunca foram publicados.
Contexto histórico
Ainda assim, a maioria das iniciativas surgiram a partir do Século XIX, quando os países da América Central, recém independentes mas com os cofres vazios, viam na criação de uma rota de comércio interoceânica uma aposta milionária, mas careciam de recursos para realizá-la. A Nicarágua, e não o Panamá (que, na época das primeiras tentativas a respeito, era uma província pertencente à República de Nova Granada, atual Colômbia), sempre foi a primeira opção, tanto para os estadunidenses quanto para os europeus que empreenderam a corrida pelos canais.
No começo do século passado, os Estados Unidos eram a única potência capaz realizar o projeto. Promoveram uma disputa entre Nicarágua e Panamá, vencida em 1902 pelo país mais ao sul. Tão forte era a influência norte-americana sobre as duas nações que, mesmo depois de já ter construído o Canal do Panamá, fez os nicaraguenses aceitarem um acordo para travar qualquer projeto de canal enquanto os próprios Estados Unidos não exercessem sua prioridade em fazê-lo – o Tratado Chamorro-Bryan era, na prática, um documento para impedir que outro país o construísse, e se manteve vigente entre os anos de 1916 e 1970.
Agora, finalmente, parece que a China vai tirar do papel um sonho de desenvolvimento presente em quase toda a história independente da Nicarágua. Falta saber se a realização desse sonho trará os efeitos esperados durante séculos.
Fonte: Pátria Latina