A RECUPERAÇÃO DA MEMÓRIA NA LUTA DOS POVOS
Por Miguel Urbano Rodrigues
Os tempos que vivemos exigem um intenso combate também no terreno ideológico. As condições desse combate são tão duras e desiguais como em qualquer outro âmbito da luta de classes. E são agravadas pela forma como a classe dominante não só tenta reescrever a história como procura eliminar da memória dos trabalhadores e dos povos a sua árdua luta milenar, motor da história.
Há milénios que as classes dominantes se esforçam por modelar a mentalidade dos povos de acordo com os seus interesses.
Essa tentativa já é identificável nas velhas civilizações do Mediterrâneo e do Médio Oriente e na India e na China. E ao longo dos seculos foi uma constante. Manifestou-se nas guerras religiosas e nas monarquias de «direito divino».
A Revolução Francesa de 1789, ao destruir a ordem tradicional, impôs uma nova estrutura de classes. A reação foi rápida e demolidora. O Thermidor assinalou em França o fim da breve fase revolucionária que abalara o mundo.
A burguesia, encastelada no poder, modernizou a sociedade, eliminando o feudalismo. Mas, ao assumir o papel de direção antes detido pela nobreza e pelo clero, reprimiu com dureza todas as tentativas das massas populares para dar continuidade à revolução travada e golpeada.
Não obstante o desenvolvimento galopante do capitalismo, as sementes do terremoto politico, social e económico de 1789 sobreviveram. A burguesia não conseguiu destrui-las e o binómio antinómico revolução-contrarrevolução marcou dramaticamente o rumo da Historia na Europa e noutros continente. Recorrendo a métodos que variaram de país para país, foi permanente o esforço do capitalismo para impor a sua ideologia às vítimas do sistema, anestesiando a sua combatividade.
Essa estratégia foi levada adiante com êxito maior ou menor em muitos casos; fracassou noutros, contida pela vitória da Revolução Russa de Outubro de l917.
Na segunda metade do seculo XX, o imperialismo, hegemonizado pelos Estados Unidos, ampliou o seu projeto de dominação mundial. Para o grande capital a tarefa de neutralizar o ímpeto revolucionário das massas oprimidas tornou-se prioritária. Utilizando com habilidade a engrenagem mediática por ele controlada, tudo fez para reescrever a História. Diabolizou aqueles que não se submetiam às suas exigências e destruidoras guerras de saque foram apresentadas como iniciativas humanitárias em defesa das liberdades e da democracia.
Transmutar as grandes maiorias numa massa amorfa e passiva passou a ser meta; a criação do homem robotizado e inofensivo foi considerada imprescindível à sobrevivência do capitalismo.
O CHILE, LABORATÓRIO DA ESTRATÉGIA IMPERIAL
São muitos os exemplos das consequências desastrosas dessa criminosa estratégia.
Os efeitos trágicos das guerras imperiais deste seculo são bem conhecidos.
Um pouco esquecidos, mas não menos esclarecedores, são os resultados da atuação maquiavélica – é a palavra adequada – dos EUA em países que Washington encarou como cobaias para a transformação da atitude perante a vida de uma sociedade.
O caso do Chile é paradigmático.
Acompanhei com absorvente interesse no último meio seculo a evolução do país e do seu povo.
Estava em Santiago no dia da investidura de Salvador Allende na Presidência.
Estive ali em 1971 e 73, assumindo como minha a luta das forças progressistas em defesa da Unidade Popular ameaçada pela cadeia ininterrupta de conspirações.
Voltei 15 anos depois, ainda durante o consulado de Pinochet para participar em Chile Crea uma iniciativa internacional de duzentos amigos do povo chileno que a ditadura não ousara proibir. Foi triste o reencontro com o povo da capital.
A universidade fora destruída, os sindicatos fechados, a comunicação social enaltecia o regime, os genocidas, instalados no poder, orgulhavam-se dos crimes cometidos.
Reencontrei um povo que tinha perdido a alegria de viver.
Voltei em l989 para acompanhar as eleições presidenciais. Pinochet esperava que o seu candidato, apoiado pela máquina oficial, seria eleito. Mas perdeu.
Vivi feliz, em Santiago, ao lado de Volodia Teitelboim – gigante da literatura que não recebeu o Nobel por ter sido secretário-geral do Partido Comunista – a jornada da derrota de uma ditadura que agonizava.
Voltei outras vezes. A última em 2003, a convite de Gladys Marin, então secretária-geral do PC do Chile, para participar no Seminário Allende Vive, promovido para uma reflexão coletiva três décadas apos a morte do grande revolucionário.
Visitei diferentes cidades, falei com dirigentes políticos e sindicais, com escritores, operários, académicos, jovens e mulheres comunistas.
Conclui que a combativa, mas pequena vanguarda que se mantinha fiel aos princípios e valores do socialismo tinha uma influência muito limitada sobre e a massa da classe operaria.
Repetiu-se a sensação de mal-estar. Senti que Volodia – com quem mantive uma longa conversa- enunciava uma evidência muito dolorosa ao afirmar que o povo chileno perdera a memória e tardaria a recuperá-la.
A democracia fora formalmente restabelecida. Mas somente a fachada era democrática. O Chile vivia então sob um regime que era na prática um «pinochetismo sem Pinochet».
O antigo Partido Socialista, instalado no governo no quadro da Concertación, coligação que incluía a Democracia Cristã e outros partidos conservadores, apoiava a política do presidente Ricardo Lagos, um socialista que governava como neoliberal.
Impressionou-me a apatia da nova geração. Quando chamava a atenção para a desigualdade social e a pobreza de milhões de chilenos respondiam-me que a taxa de crescimento da economia era elevada e o PIB per capita o mais alto da América Latina.
Jovens licenciados com quem falei desconheciam a história recente do país. E não mostravam interesse por ela. Encontrei uma geração sem memória.
O imperialismo e a ditadura militar ar por ele tutelada atingiu no Chile um dos seus grandes objetivos.
Michele Bachelet, a atual presidente, mascarada de socialista, pratica também uma política neoliberal.
A recuperação da memória – sem o conhecimento do passado não se pode entender o presente – será certamente lenta e difícil.
O Chile é, repito, um paradigma dos efeitos catastróficos da estratégia do imperialismo.
Mas a perda de memória histórica de uma ou duas gerações não ocorreu somente no Chile.
A ofensiva do grande capital para criar uma juventude robotizada, inofensiva, submissa, atinge dezenas de países.
Na Europa comunitária as exceções são poucas.
Lenine lembrava que a ideologia da classe dominante marca decisivamente o comportamento global de uma sociedade.
A afirmação é válida também para Portugal. As novas gerações tem pouco de comum com aquela que tornou possível Abril e as suas conquistas revolucionárias (odiario.info,7,10.15). A ideologia do capitalismo contaminou aliás em maior ou menor grau, independentemente da idade, muitos portugueses que não têm consciência dessa realidade.
Ajuda-los a recuperar a memória histórica é uma tarefa revolucionária. Porque, sobretudo à juventude, cabe a construção de um futuro que responda às aspirações profundas do nosso povo tao exemplarmente assumidas por Álvaro Cunhal e Vasco Gonçalves.
Vila Nova de Gaia,12 de Novembro de 2015
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