Décimo-sexto dia do povo Tunisino. Acabou a liberdade

“…se é verdade que nunca tinha acontecido anteriormente um povo árabe derrubar um tirano, uma grande retracção se nota nestes dias na Tunísia, onde começa a temer-se que depois do assalto de ontem ao Qasba [dia 28 de Janeiro] todos os sacrifícios feitos nestes dias tenham sido em vão.”

Maquiavel dizia, por outras palavras, que por vezes o príncipe quando perde a legitimidade perante o seu povo tem de apelar à «revolução» contínua. Mudam-se os nomes não porque as coisas tenham mudado mas para que tudo fique na mesma. Ou parecido, porque os nomes também são coisas que não se ajustam a todas as situações – tal como as luvas. Na antiga China, os imperadores que iniciavam uma nova dinastia, depois de um golpe palaciano alteravam todos os pesos e todas as medidas, e começavam a partir do zero a contagem do tempo. Ben Alí derrubou por dentro Bourguiba, e a esse golpe chamou a Grande Mudança, le Grand Changement. E se é verdade que nunca tinha acontecido anteriormente um povo árabe derrubar um tirano, uma grande retracção se nota nestes dias na Tunísia, onde começa a temer-se que depois do assalto de ontem ao Qasba [dia 28 de Janeiro] todos os sacrifícios feitos nestes dias tenham sido em vão.

– É como se nunca tivesse havido o 14 de Janeiro, resume desolada Amira.

Com efeito, depois de duas semanas de contenção voltou a assenhorar-se da situação. Ontem, partiu pernas e braços no Qasba e durante todo o dia circularam listas não confirmadas de mortos e desaparecidos. Pelo menos vinte presos continuavam esta tarde na esquadra. E na praça do Qasba, entre mantas e panelas ficaram ontem dezenas de telemóveis espalhados. De muitos dos que ontem foram dispersos não se sabe nada. Entretanto, esta manhã, 12 horas depois, enquanto repintavam as paredes do que foi durante cinco dias o ministério do povo, La Press publicava na capa uma foto da concentração dispersada com o título: «em Qasba a caravana da liberdade contínua com os protestos». A revolução – já tem a marca de um governo que tecido na obscuridade e de uma imprensa que utiliza novos nomes para dizer as mesmas coisas.

Os investidores portugueses impacientam-se e os EUA, suspensos do Egipto, querem sufocar definitivamente o foco tunisino. Os protestos, enfraquecidos com o claudicar da UGTT, são agora reprimidos sem contemplações. Aos tunisinos, que se tinha habituado a assentar arraiais na avenida Bourguiba, é-lhes agora recordado durante todo o dia que há uma lei marcial, que as manifestações estão proibidas, que é a polícia e não o povo que ocupa as ruas. Bombas lacrimogéneas e cargas de cassetete marcaram uma jornada em que os media internacionais, com os olhos postos no Egipto nem sequer estavam presentes, ou estiveram apenas na conferência de imprensa da Human Rights Watch. Começávamos a habituar-nos a saltar e agora temos de reaprender a correr.

Mas esta jornada de ressaca – em que o mar recua levando com ele os restos da festa – conheceu um homem enorme, descomunal, um homem cujo pessimismo musculoso, paradoxalmente, nos levava ao optimismo. Foi-me apresentado pelo jornalista italiano Gabrielle del Grande, repórter que leva a sua profissão a sério. Trata-se Redha Redhaoui, com quem estive algumas horas. É um advogado de Gafsa que dedicou os dois últimos anos a defender os processados pelas revoltas mineiras de 2008 em Redeyef e os outros povos da região e noutras povoações da região. É um homem grande, quadrado, de cabelos grisalhos e modos francos e fraternos; grande bebedor, extraordinário contador de anedotas jocosas e de uma generosidade desarmante. Sentimo-nos tranquilos ao seu lado enquanto ele enumera implacavelmente motivos de inquietação.

– Por que é que o novo ministro do Interior deu ordem para desalojar o Qasba? A ordem não foi dada pelo ministro do Interior. Os novos ministros são de opereta. Não decidem nada. Há um governo paralelo na sombra.

Esse governo sombra tem que ver, claro, com a intervenção dos Estados Unidos. Não é que a revolução tenha sido manipulada ou provocada do exterior, disse, pelo contrário foi de uma pureza tão grande que é a sua própria autonomia que a põe em perigo. Desde 2009, quando todos descartavam essa eventualidade, que os EUA se interrogavam se, efectivamente era possível que um governo ser derrubado pelos movimentos sociais do mundo árabe. Até ao ponto de, assegura, o nome de «revolução dos jasmins», em que ninguém aqui se reconhece, ter sido enunciado 8 dias antes da imolação de Mohamed Bouazizi, em 17 de Dezembro.

– A situação é agora muito complicada, diz, recordando a célebre frase de Gramsci. Encontramo-nos no meio de um mundo antigo que não morreu e um mundo novo que ainda não acabou de nascer. Foi nesse vazio que despertou a consciência das pessoas; é uma consciência explosiva que quer tudo aqui e agora, que não está disposta a negociar, mas que se choca com limites económicos, sociais e políticos muito severos. Esta desproporção entra liberdade pura e as suas possibilidades reais de materialização torna complicado a actuação perante um regime que apenas se alterou. Nesse pântano entre o mundo antigo que não acabou ainda de morrer e o novo que ainda não acabou de nascer está, além da polícia, um corpo educado para defender a ditadura, muito difícil de controlar e ainda mais difícil de depurar.

Por outro lado, assegura, coma UGTT não se pode contar. Está ocupada a resolver a sua própria crise. A direcção está implicada até às entranhas com a corrupção do sistema e colaborou na sua sustentação ao impedir a formação de outras forças sindicais. Os militantes de esquerda obrigados a actuar na sombra coçam-se agora com limites inultrapassáveis, debilitando ao mesmo tempo a unidade do sindicato. As divisões são grandes como o prova, por exemplo, o comunicado que o sector de ensino distribuiu na avenida Bourguiba e em que apoia a luta do povo contra o governo provisório de Ghanoushi.

Enquanto fala e bebe cerveja no Hotel Internacional, Rheda Redhaoui comenta a situação no Egipto, cujas imagens a Al-Jazeera emite em directo. Diverte-o muito a reprodução passo a passo dos acontecimentos na Tunísia e a concessão de Mubarak de pela primeira vez nomear um vice-presidente ou, o que é o mesmo, um sucessor: Omar Suleiman, chefe dos serviços secretos e o homem mais próximo de Israel. Nesse momento toca o seu telemóvel. Chamam-no de Qasserine.

Convocaram uma greve para amanhã, diz, e pedem-me para alertar os media estrangeiros para fazerem a cobertura. Ao contrário do que se possa pensar isto ainda nem sequer começou.

Saímos para uma avenida Bourguiba revolta e obscurecida onde houve uma manifestação. As mulheres democratas, grupos de estudantes e pequenos grupos gritam, uma e outra vez dispersos pela polícia. Na rua Marselha um jovem com um capuz na cabeça, delgadíssimo, aproxima-se balbuciante de nós e mostra a Redha com a mão trémula um papel e diz-lhe que é irmão de um dos mártires de Qasserine e que não tem dinheiro para regressar à sua cidade. Redha põe-lhe a mão no ombro, ouve-o e depois discretamente dá-lhe vinte dinares (10 euros) uma quantia descomunal.

A primeira estória é falsa, mas a segunda é possível que seja verdade, diz com humor, assim aplicamos-lhe o princípio da presunção de inocência.

E logo temos que pôr rapidamente na boca a máscara que nos deram de manhã na avenida Bourguiba e começar a correr. O ar torna-se de novo denso e irritante. Silvam granadas lacrimogéneas e uma sombra afastada pisa-nos os calcanhares.

Na avenida Paris afrouxamos o passo. Como não se passasse nada Redha propõe-nos ir beber e comer qualquer coisa. Nesse momento toca novamente o telemóvel. Temos de voltar atrás porque a sua amiga Faten, uma jovem de Gafsa que nos tinha apresentado umas horas antes, está ferida. Encontramo-la cem metros mais além, apoiada em três ou quatro pessoas. Só assim pode andar, e quando chegamos até ela cai no chão. O lenço palestino que lhe cobre a cabeça está sujo de sangue.

– A polícia entrou no café e bateu-lhe na cabeça com o cassetete, dizem-nos os seus acompanhantes.

Redha levanta-a, pára um táxi e despedindo-se precipitadamente de nós leva-a ao hospital Charles Nicole.

A atmosfera é pastosa e suja. Não há manifestações nem protestos. Só algumas pessoas dispersas e imóveis nos passeios. Mas de repente chegam três furgões da polícia, abrem as portas e sai um monte de polícias de uniformes negros. Olhamo-los quase como curiosidade turística, sem compreender o que se passa. Depois toda a gente desata a correr e nós seguimo-los. Voltam a rebentar granadas lacrimogéneas; corremos, corremos, com o coração na boca e a sensação que eles estão por toda a parte, ziguezagueando entre ruelas e tropeçando em todos tranquilamente por ali passavam.

Chegámos a casa e telefonámos a Redha. Continua no hospital mas, por sorte, Faten está bem.

A Tunísia não.

A consciência das pessoas é muito superior à estreiteza do caminho. A estreiteza é, na verdade, muito estreita.

*Colaboradora habitual de Rebelión.org

Este texto foi publicado em www.rebelion.org

Tradução de José Paulo Gascão

Fonte: http://www.odiario.info/?p=1958