Condomínio residencial e utopia burguesa

imagempor Golbery Lessa, membro do Comitê Central do PCB

O condomínio residencial é uma das mais inconsistentes utopias já inventadas. Uma parte da elite econômica levanta muralhas contra o resto da cidade e obriga-se a construir casas sem muros, num estilo arquitetônico marcado pela possibilidade de o transeunte enxergar várias dimensões do cotidiano dos moradores. A mensagem utópica é clara: aqui se vive uma interação perfeita entre individualidade e comunidade, entre indivíduo e sociedade civil, nesse solo prevalecem os princípios republicanos da transparência, da fraternidade e da liberdade, aqui se chega mesmo a tocar as franjas do socialismo. O nomes desses condomínios são sínteses linguísticas dessa utopia.

Visitei uma casa na qual um pequeno gramado com menos de dez metros separava a calçada e uma parede externa com setenta por cento de sua área feita de vidro. Como o dono da casa deve se sentir diante de tal interação compulsória com o espaço coletivo, mesmo sendo um lócus de sua classe social? Por que ele se presta ao evidente incômodo de ter sua vida potencialmente devassada diuturnamente pelo olhar de quem passa?

Esse indivíduo tem necessidade de ver e viver sua utopia liberal, aquilo que justifica e empresta sentido à sua sede de lucro, mas a realidade do capitalismo contemporâneo levanta cidades caóticas e refratárias a qualquer aparência de utopia. A elite mercantil inviabilizadora de políticas urbanas racionais é ela mesma vítima do caos da urbe; vende até a corda na qual se enforcará, destrói a própria utopia justificadora de sua visão de mundo. Inventa, então, um pouco consciente e um pouco inconscientemente, uma farsa de utopia: o condomínio residencial.

O mesmo comerciante destruidor de fachadas com valor arquitetônico paga caro para o seu condomínio ter uma paisagem sem qualquer referência ao comércio. O industrial poluidor dos rios pode ser visto regando as plantas. O latifundiário monocultor não constrói cercas ao redor do seu jardim, contradizendo a lenda rousseauniana sobre o nascimento do direito de propriedade. Ocorre uma transformação geral, o novo homem surge no interior daquele perímetro cercado por guaritas, vigilantes e cercas elétricas.

Muitos acreditam morar ali por mero status, simples ostentação de riqueza, ou para enturmar-se de modo seguro com sua classe social, garantindo lazer, “bons casamentos” para os filhos, bem-estar arquitetônico, distanciamento dos pobres e segurança. Mas para isso não seria necessária a árdua construção de uma aparência de utopia. A utopia igualitária e exibicionista dos condomínios não é funcional para nada disso. Ela é, essencialmente, uma busca desesperada por coerência moral e sentido para a vida efetivada de maneira farsesca por uma classe sem mais possibilidades objetivas de ter coerência e sentido na sua prática e na sua subjetividade.

Categoria