Outubro Vermelho: o significado da Revolução Bolchevique e seu impacto no Brasil

imagemMuniz Ferreira e Ricardo Costa*

De acordo com o historiador britânico Eric J. Hobsbawm, o século XX se desenvolveu à sombra do embate econômico, político e ideológico que contrapôs as forças do capitalismo ocidental e o sistema soviético. Ainda segundo aquele autor, tal contraposição balizou os próprios limites inicial e conclusivo do século e diferenciou sua extensão cronológica de sua delimitação propriamente histórica. Versão novecentista da disputa sócio-política que, a partir da Revolução Francesa, opôs direita e esquerda, o conflito entre o movimento comunista e seus antagonistas contribuiu decisivamente para o delineamento do perfil da centúria há dezesseis anos encerrada. No curso de tal embate, a produção de um discurso e de um imaginário anticomunistas adquiriu um significado estruturante do ponto de vista da conservação e da estabilidade das sociedades do hemisfério ocidental. É na rejeição ao projeto comunista que se reconfigurou o próprio sentido do conceito de Ocidente, particularmente a partir da Segunda Guerra Mundial.

A sociedade brasileira não se manteve incólume aos efeitos da citada polarização político-ideológica, tampouco à disseminação global da ideologia e do discurso anticomunistas. Anarquista primeiro e comunista depois se constituíram, através da locução hegemônica entre nós, em categorizações equivalentes a epítetos difamatórios tais como: subversivo, desordeiro, inimigo da nação, anticristão, destruidor da família e liberticida. Conforme demonstraram Moniz Bandeira, Clovis Mello e Astrojildo Pereira, a imprensa brasileira – tanto a chamada grande imprensa quanto a imprensa operária – não foi indiferente a Outubro de 1917, tendo veiculado aqui reportagens, análises e controvérsias a seu respeito. Seria no bojo destas abordagens acerca do evento russo que se delineariam os primeiros contornos de uma representação acerca do bolchevismo, antecessor conceitual direto do comunismo na imprensa e no imaginário brasileiros. Este, por sua vez, enquanto nomenclatura de um movimento político em atuação no solo brasileiro teria sua utilização consolidada a partir do ano de 1922, data da fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), expressão nacional da corrente política e organizativa inspirada e animada pelos comunistas/bolcheviques do país dos sovietes.

Classes dirigentes e anticomunismo na sociedade brasileira

Por um lado, a vitória dos bolcheviques, aliada à destruição e crise provocadas pela guerra, acendeu a esperança de que era possível um mundo alternativo ao caos que se vivenciava, pois trabalhadores de outros países europeus e sul-americanos passaram a se organizar e tentaram seguir o caminho trilhado pelos russos. Por outro, ao longo deste duelo de titãs – representado pelo choque ideológico entre capitalismo e socialismo – foi sendo edificado um discurso anticomunista que, difundido no imaginário coletivo, reforçou-se de um significado legitimador de governos antidemocráticos em qualquer país.

Concomitante à Revolução de Outubro, foi sendo traçado um esboço de discurso anticomunista, por meio de agências internacionais responsáveis pela elaboração de notícias sobre o acontecimento na Rússia e que funcionaram como serviços de intriga e desinformação desenvolvidos pelas agências associadas ao capital financeiro internacional. O estudo sobre as origens de um imaginário anticomunista no Brasil toma como fonte de pesquisa a produção dos jornais da grande imprensa brasileira entre os anos que se seguem à repercussão internacional da revolução bolchevique e os efeitos que dela foram produzidos no cenário político do país – tanto no que diz respeito às alterações verificadas no movimento operário local, quanto ao que se refere à criação de um novo arquétipo comunista a ser destruído pelas classes conservadoras – a partir de novembro (pelo calendário gregoriano) de 1917 até o momento em que é declarado o Estado Novo (a ditadura de Getúlio Vargas), em 1937.

De fato, a opinião pública em geral rapidamente aceita e reconhece o governo provisório que foi estabelecido na Rússia, tão logo ocorre a derrubada do Czar Nicolau II, podendo ser verificado pelas notícias: “A Revolução na Rússia encontrou munidos o exército e o povo. A Duma dominou os reacionários, a burocracia foi vencida. Vitória das forças liberais. A Revolução é considerada um movimento antigermanófilo e antialemão” (A CIDADE, 19/03/1917). “O embaixador norte-americano (…) reconhece o governo provisório e felicita” (A CIDADE, 24/03/1917). “A Câmara (da Itália) saudou a Duma e desejou a consolidação das instituições liberais” (A CIDADE, 26/03/1917). “O papa Bento XV declarou estar satisfeito com a implantação na democracia na Rússia Ortodoxa” (A CIDADE, 15/05/1917).

A maioria das informações sobre a Rússia era produzida por agências internacionais como Havas, Reuters, Associated Press, Americana, todas ligadas aos interesses norte-americanos e/ou europeus. No entanto, o que chama a atenção é que, apesar de a revolução de março ter sido vista com bons olhos, paralelamente à sua aceitação houve indícios daquilo que ganharia forma posteriormente: o desenvolvimento de uma ideologia anticomunista. Neste primeiro momento foi assim explicada a associação entre russos e agentes alemães: “(…) A Alemanha tinha seu principal sustentáculo na Rússia autocrata; esta desapareceu. Entre o povo e o exército existe um pequeno grupo, exportado pela Alemanha, imbuído de ideias anarquistas” (A CIDADE, 28/03/1917). Daí por diante várias notícias mostrarão um teor similar.

O jornalista Astrojildo Pereira comentou em certo artigo: “Uma das teclas mais batidas pelas ilustríssimas gazetas do Rio, quando se referem à Revolução Russa, é a de que os bolcheviques em geral e Lênin em particular são agentes do governo alemão”. Esta associação parece até natural, visto que em 1917, além da Revolução Russa, a Europa está em plena guerra, e os aliados (EUA, França e Inglaterra, e neste momento a Itália também) lutavam contra três impérios: dois decadentes, o Austro-Húngaro e o Turco-Otomano, e um poderoso, o alemão, que se encontrava em posição ofensiva de conquista territorial, o que o tornava principal inimigo dos aliados. Após a vitória dos bolcheviques, a Rússia foi incorporada ao grupo dos inimigos.

Há, porém, outro elemento muito importante, precisamente o fato de a imprensa brasileira ter assumido uma posição de alinhamento com as agências internacionais sobre a Rússia, utilizando muitas vezes a palavra traição para caracterizar a saída da Rússia da I Guerra Mundial. Uma notícia comenta com especial entusiasmo o surgimento de um suposto movimento contrarrevolucionário: “O povo russo, trabalhando por ideias de liberdade e de justiça, não poderia tolerar o grave crime de lesa-pátria, com que o maximalismo traidor cedeu às imposições teutônicas, consagrando como fato irremediável – argumento de mera covardia – a infâmia da humilhante paz agora referendada” (A HORA, 27/03/1918). A importância de tal alinhamento deriva da estreita ligação entre os jornais da grande imprensa e os chefes das facções oligárquicas que controlavam o Estado em todas as suas funções. Em outras palavras, significa dizer que a imprensa se comportava como meio de propaganda política, como órgão defensor dos interesses das classes dominantes, em suma, não muito diferente da maior parte da imprensa (televisiva, de rádio ou escrita) atual, mas a parcialidade era ostensiva e escandalosa. Ainda sobre a repercussão de março de 1917, três notícias podem ser destacadas, duas delas pela prematuridade com que a revolução foi associada à ideia de violência e criminalidade:

A marcha da ideia nova socialista não cessa nunca nas estepes geladas (…) E tamanho era esse ódio às classes dominantes, no sentido libertário da vingança dos radicalistas do socialismo moscovita que, certa feita, ao assassino do conde de Ignatieff, sendo perguntado qual era dogma de sua seita, respondera: ‘matar todos os homens do Estado’. Depois ao lhe ser inquirido sobre a polícia do czar, qual o nome Del, dissera, apenas: ‘veja o meu revólver’. Havia na arma indicada esta inscrição de morte aos tiranos: Partido Socialista Revolucionário (O DEMOCRATA, 18/03/1917).

Outra, com sentido similar, acrescenta os termos capitalista e socialismo em confrontação, identificando as ideias socialistas como elemento responsável por crimes sociais:

Causou penosa impressão a divulgação do trágico acontecimento de anteontem, de que foi vítima o advogado e capitalista Dr. João Alfredo Conde. Um espírito de loucura, traduzido numa fria perversidade e no sentimento de ideias anárquicas, guiou a mão do criminoso, que procurou esconder a hediondez do crime premeditado por traz da questão econômica que divide as sociedades europeias e sustem o abominável socialismo, fundado no crime contra o direito de vida e de propriedade, assegurados por todos os direitos como condição de existência social (JORNAL MODERNO, 16/06/1917).

Vale ressaltar que o teor contido nestas últimas fontes coletadas não foi encontrado em nenhum outro jornal de data anterior à Revolução Bolchevique. O destaque da terceira notícia seria a sua condição emblemática daquilo que até então era produzido:

De apreensões sérias é o momento atual (…) Mas, para cúmulo do agravamento dessa situação anormalíssima, que enche de preocupações a todos os espíritos de responsabilidade, há, neste instante, no seio da nossa querida Pátria um trabalho que, à surdina, se opera para um movimento de desarmonia entre as várias classes, principalmente aquelas cujos interesses mais de perto se podem chocar no campo das relações econômicas, ao influxo de ideias de um largo e desenvolto socialismo, e sob o propósito da defesa dos fracos contra os fortes, dos pobres contra os ricos (…) Às autoridades e representantes das classes conservadoras aconselharemos a maior prudência e todo cuidado (…) (A CIDADE, 18/07/1917).

Na verdade, o trecho acima faz parte de um artigo, espécie de editorial, embora este termo não seja utilizado na época, e expressa a linha adotada pelo jornal. Este mesmo jornal, ao tecer comentários a respeito da famosa greve de São Paulo de 1917, aponta um movimento que opera para a “desarmonia entre as classes”: “Em São Paulo, surgiram, com a última greve, os efeitos desse trabalho a que nos referimos, e informações que chegam dali dizem que o mais intenso esforço dos insufladores desse movimento se volta agora para as outras capitais (…)”.

Este artigo é emblemático porque será dessa forma que será traçado o primeiro esboço de um discurso anticomunista. É através da repetição sistemática de que as ideias socialistas promovem a desordem e a desarmonia entre as classes que os setores conservadores vão dar início à construção da ideologia anticomunista.

A construção do imaginário anticomunista e o avanço das lutas dos trabalhadores brasileiros

A greve geral ocorrida no Estado da Bahia no ano de 1919, segundo seus estudiosos, foi uma das mais importantes dentre todas as manifestações grevistas realizadas pelo operariado brasileiro nas primeiras décadas do século XX. Teve o Sindicato dos Pedreiros e Carpinteiros e Demais Classes como polo aglutinador e motivador da paralisação geral dos serviços da cidade. A sua importância vem do fato de que, quando ela ocorre, percebe-se uma inflexão da postura dos trabalhadores diante da defesa de seus interesses, isto é, passando de uma posição defensiva (em que se luta para se fazer cumprir as conquistas já existentes) para uma posição ofensiva, apresentando novas reivindicações e defendendo objetivos comuns. A greve geral de 1919 legou para boa parte do operariado baiano um novo padrão de comportamento político frente às necessidades imediatas.

Na sequência dos acontecimentos de Outubro na Rússia, as manchetes dos jornais, ao se referirem ao governo lá instalado, noticiam “os excessos maximalistas”, “o regime do assassino na Rússia”, “o canibalismo maximalista”, enfim, é assim que a revolução bolchevique é tratada nos jornais. Desta forma, as ideias socialistas serão acompanhadas de novas expressões pejorativas e difamatórias. Além da caracterização do socialismo como elemento responsável pela desordem e desarmonia, houve também a tentativa de definir as ideias socialistas/anarquistas (palavras sinônimas na época) como “coisa de estrangeiro”, “arruaceiros que, tangidos da Europa, vêm encher as algibeiras para, de volta, rirem abertamente da ingenuidade brasileira” (O IMPARCIAL, 27/11/1918), terminando por explicar da seguinte maneira:

Compreende-se a organização operária defensiva e combativa na Europa, onde a luta entre o capital e o trabalho se fundamenta em razões muito para respeitar e ponderar. No Brasil, porém, onde os salários são relativamente compensadores; e essa antinomia fatal não existe entre patrões e proletários, no Brasil onde uns e outros são amigos, (…) esses exploradores, mascarados de socialistas, anarquistas ou reformadores devem ser expulsos pelos próprios a que eles, matreiros e sagazes, instruídos na arte de embair o proletariado com suas lábias e seus ardis, dizem defender e salvar de um perigo inexistente.

O caráter exógeno das ideias, aliado ao ecumenismo da Revolução Russa, contribuiu para a formulação de ideais apologéticos do trabalhador nacional, do Brasil, antes “ordeiro”, mas que se vê então invadido por “ideias estrangeiras e perniciosas”. Por isso, os jornais – representantes dos setores oligárquicos – afirmam:

Os elementos corrosivos e tarados que a Europa decadente e corroída de males sociais tem enviado, juntamente com os bons contingentes imigratórios ao nosso país, insinuando-se entre os grupos de trabalhadores brasileiros, intrometendo-se no meio operário das primeiras cidades do Brasil, aproveitam-se da relativa ingenuidade dos artífices nacionais para incutir neles o ódio ao capital, a má vontade aos empresários, a irritação permanente contra os patrões e contra os grandes diretores da indústria (…). Se os nossos operários estivessem preparados para ver, discernir e entender os fenômenos sociais que dizem respeito às condições do trabalho brasileiro, seriam eles os primeiros a repelir e fazer correr os pregadores da anarquia, os amotinadores que se encobrem com o interesse da classe. (JORNAL MODERNO, 17/07/1917).

Após o período que se abre com a greve geral de 1919, seguem-se as lamúrias das classes dirigentes pelas transformações que se fizeram sentir no seio do proletariado, como esta: “o caos russo trouxe para alma operária de todos os povos da terra o mal de a tentar subverter, mergulhando-a na mesma treva sem lumes em que se debate a alma eslava” (A HORA, 12/11/1920). Nota-se que houve uma mudança no discurso, de trabalhadores ingênuos e ordeiros passaram a ser encarados como pessoas entregues ao mesmo mal, a anarquia.

No percurso da construção de um imaginário anticomunista no Brasil, vê-se a publicação de artigos que também foram exibidos na Europa, tencionando com isso, dar respaldo ao discurso anticomunista feito aqui, como este que defende a perseguição aos adeptos do regime russo:

Quer um mundo eficazmente impedir os horrores que se passam na Rússia e precaver-se ele próprio de futuro contra hospedes tão perigosos? Só tem um único meio: uma declaração formal dos Estados Aliados e neutros, assentando que os indivíduos que hoje estão senhores do poder na Rússia não são reconhecidos como formando um partido político; acentuando que todos os crimes por eles praticados pessoalmente e pelos seus adeptos, sob sua instigação, são considerados como crimes de direito comum; que o direito de asilo lhes não é reconhecido e que as suas vítimas poderão persegui-los nos tribunais de todos os países, e que ao futuro governo russo será reservada a possibilidade de pedir a sua extradição pelos crimes cometidos contra o Estado. (O IMPARCIAL, 07/01/1919).

Foram inúmeros os artigos encontrados na imprensa brasileira que tinham como principal objetivo explicar para os leitores o que é anarquia ou socialismo, como este que se segue:

Que é a anarquia? É a desordem, é o regime da insegurança, é o bolchevismo, é a sublevação de todos os maus instintos, é o crime erigido em virtude, é o escorraçamento da liberdade, a barricada nas ruas, o sossobro do direito, a violação dos lares, os sacrifícios do pudor, a vasão de todas as energias de um povo até o completo e absoluto aniquilamento. A anarquia é isto! A miséria, a infâmia do caos russo, com seus Lenine, brotados da esterqueira das ruas para afogar em sangue um povo e transformar em propriedade pública a honra das mães e a pulcridade das virgens! (O IMPARCIAL, 11/03/1919).

Embora a semente da ideologia anticomunista tenha sido brotada antes mesmo da radicalização das organizações operárias, ela foi regada pelas greves que explodiram em todo o Brasil no período, com destaque para aquelas que aconteceram no sudeste do país. É importante atentar para o fato de os jornais exporem as opiniões das classes dominantes, inclusive no que diz respeito à visão que apresentavam do socialismo e dos socialistas, e ainda, ao trabalho pedagógico feito por estes jornais, no sentido de que a informação transmitida por eles tinha um objetivo muito claro de preservação dos privilégios dos capitalistas.

Mas, apesar de todo discurso anticomunista disseminado na imprensa burguesa à época, os revolucionários brasileiros, diretamente influenciados pelos novos ventos trazidos mundialmente pela Revolução de Outubro, se organizaram em torno de um núcleo inicial de comunistas, fundando, em 1922, o Partido Comunista no Brasil.

A formação do Partido Comunista no Brasil: os anos iniciais

Fundado em congresso realizado nos dias 25, 26 e 27 de março de 1922, na cidade de Niterói, Estado do Rio de Janeiro, o Partido Comunista surgia, no Brasil, em meio ao contexto internacional da afirmação do regime socialista na Rússia, após a Revolução Soviética de 1917, e da criação da Internacional Comunista em 1919, episódios históricos que sinalizavam, para os integrantes do movimento operário e sindical, a possibilidade real de vitória das forças proletárias no combate ao sistema capitalista. Grande parte dos fundadores do PC brasileiro, como o jornalista Astrojildo Pereira, haviam saído do movimento anarcossindicalista, muito forte, principalmente em São Paulo, no interior do operariado fabril, mas vivendo sua fase de descenso na década de 1920, devido à forte repressão policial que se abateu sobre ele, mas também em decorrência da boa nova que a vitória dos bolcheviques representava, naquele momento histórico. No ano de 1924, admitido no órgão máximo representativo dos comunistas em todo o mundo, o PCB adquiria a condição de Seção Brasileira da Internacional Comunista (PC-SBIC).

Nos primeiros anos de sua existência, o Partido Comunista exerceu importante influência entre os trabalhadores dos grandes centros, verificada, por exemplo, na circulação da revista Movimento Comunista, criada em janeiro de 1922, com tiragem média de 1.500 exemplares e tendo 24 números editados até o ano de 1923, quando se tornou a primeira dentre as várias publicações comunistas a ser fechada pela repressão policial no Brasil. Parte considerável das matérias divulgadas na revista era composta por traduções de artigos que faziam referências à União Soviética e às proposições do Komintern. Contando inicialmente com menos de 100 militantes, os comunistas priorizaram sua atuação no interior dos sindicatos. Concentrados em sua maioria no município do Rio de Janeiro e em Niterói, buscavam difundir as conquistas da Revolução Bolchevique e as ideias contrárias ao capitalismo através de palestras, festas nas sedes dos sindicatos, revistas, livros, panfletos e artigos publicados na imprensa sindical. Contribuíram para a produção de pequenos jornais dos sindicatos operários e controlaram a página sindical do jornal O Paiz, da chamada grande imprensa, mas seu mais importante veículo de comunicação foi o semanário A Voz Operária, editado pela primeira vez em 1º de maio de 1925, chegando a alcançar a tiragem de onze mil exemplares no número 12, quando também foi fechado pela polícia. Posteriormente, o jornal reapareceria em diferentes momentos da história do PCB, como num outro 1º de maio, no ano de 1928, já com uma tiragem entre quinze e trinta mil exemplares, num contexto de acirramento da luta de classes e de crescentes embates políticos entre as oligarquias que disputavam o poder de Estado na Primeira República brasileira, vivendo seu momento decadente.

Figura de destaque desta primeira fase de organização do Partido foi Astrojildo Pereira, que começou sua militância em entidades operárias de cunho anarquista. Astrojildo Pereira Duarte Silva nasceu a 8 de outubro de 1890, em Rio Bonito, interior do Estado do Rio de Janeiro. Era filho de um médico proprietário rural e comerciante, descendente próximo de português. Estudou no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo, educandário de orientação jesuíta, de onde foi expulso. Morando com a família em Niterói, começou a trabalhar como gráfico e entrou em contato com o universo cultural do Rio de Janeiro. Na década de 1910, aproximou-se dos núcleos anarquistas. Em 1913, participou ativamente da organização do II Congresso Operário Brasileiro, que, sob hegemonia dos grupos anarquistas, reestruturou a Confederação Operária Brasileira (COB).

Foi na imprensa operária que Astrojldo deu início à carreira de jornalista, atividade a que se dedicou durante a maior parte de sua vida. Em fins de 1918, participou de uma frustrada tentativa de levante anarquista, razão pela qual foi preso. No entanto, os ecos da Revolução Socialista de 1917 na Rússia já se faziam sentir entre os militantes do movimento operário no Brasil, e Astrojildo acabou por afastar-se do anarquismo. Proferiu palestras defendendo a União Soviética e o internacionalismo proletário e editou a revista Movimento Comunista. Deu início à organização de uma seção brasileira da Internacional Comunista, efetivada em março de 1922 com a fundação do Partido Comunista do Brasil, do qual foi eleito Secretário-Geral. Fez sua primeira viagem à União Soviética em 1924 e foi encarregado, em 1927, de estabelecer o primeiro contato do PCB com o líder do movimento tenentista Luiz Carlos Prestes, então exilado na Bolívia. Passou a fazer parte do Comitê Executivo da IC em 1928, mas, no início da década de 1930, a guinada “obreirista” no Partido foi responsável pelo afastamento dos intelectuais, e Astrojildo seria substituído na Secretaria-Geral.

O II Congresso do PC brasileiro aconteceu em maio de 1925, com a presença de dezessete delegados, os quais aprovaram resoluções que apontavam para a necessidade de uma fase democrático-burguesa na revolução brasileira, resultante de uma aliança política do proletariado com a pequena burguesia radicalizada, em função da forte presença dos grupos urbanos nas lutas sociais do período, diferentemente do que ocorrera na Rússia, onde o campesinato era preponderante. O elemento de originalidade da formulação dos comunistas brasileiros encontrava-se justamente na proposta da aliança com o tenentismo, identificado como um movimento pequeno burguês revolucionário surgido no interior das Forças Armadas, propenso a abraçar a luta contra o imperialismo e pela superação dos entraves semicoloniais ou semifeudais admitidos na realidade nacional.

Foi o intelectual Octávio Brandão, que entrou para o PCB em novembro de 1922 e integrou seu Comitê Central entre 1923 e 1930, o principal inspirador das teses aprovadas no II Congresso do Partido. Octávio Brandão do Rego, alagoano nascido em 1896, farmacêutico por profissão, também começou sua militância política nos meios anarquistas, inicialmente em sua cidade natal, Viçosa e, depois, em Maceió. Estudando no Recife, centro catalisador das lutas antioligárquicas no Nordeste, nas quais se destacavam seus primos Cristiano Cordeiro e Rodolfo Coutinho (também futuros dirigentes do PCB) e o advogado social-reformista Joaquim Pimenta, foi atraído para as ideias comunistas com o impacto da Revolução Soviética naquele meio intelectual. Transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde o contato com Astrojildo Pereira foi fundamental para sua militância no recém-fundado Partido Comunista do Brasil. Eleito para a Comissão Central Executiva do Partido poucos meses após a sua filiação, foi o principal intelectual orgânico dos comunistas até a sua destituição da direção do PCB em 1930, quando foi acusado de “desvios de direita”, juntamente com Astrojildo e outros dirigentes.

A partir de então, passou a viver o ostracismo partidário, tendo permanecido por quinze anos na União Soviética após ser preso e deportado pela polícia do Presidente Getúlio Vargas em 1931. Retornando da URSS em 1946, mesmo tratado com indiferença pela direção do Partido, conquistou a cadeira de vereador no Rio de Janeiro (então Distrito Federal) no ano seguinte, êxito conquistado graças à antiga base operária que o elegera intendente pelo Bloco Operário e Camponês (BOC) em 1928, mas tinha seus pronunciamentos constantemente censurados pelos dirigentes comunistas, perseguido ainda pela injusta acusação de “erros direitistas”, que teriam sido cometidos na década de 1920. Por conta da cassação do PCB em 1947, no período da Guerra Fria, foi preso e torturado, passando a viver na clandestinidade entre 1948 e 1956, após o que voltou à militância partidária e intelectual, sem o mesmo prestígio de antes.

Brandão foi pioneiro na utilização da expressão “marxista-leninista” para designar o tipo de análise teórico-metodológica de corte materialista a que se propunha fazer em relação à realidade brasileira, análise na qual já despontava a noção de revolução em etapas no Brasil. Por meio da obra teórica Agrarismo e Industrialismo (que publicou em 1916, sob o pseudônimo Fritz Mayer), definia a fase da revolução brasileira, na conjuntura histórica dos anos vinte, como de caráter “democrático-pequeno-burguesa”, a partir de estudos sobre as revoltas tenentistas de 1922 e 1924. Brandão analisou a disputa interimperialista no Brasil, travada entre Inglaterra e Estados Unidos, concluindo haver um vínculo crescente entre os interesses da emergente burguesia industrial brasileira e o imperialismo norte-americano, enquanto a economia agrário-exportadora mantinha-se subordinada aos interesses dos bancos ingleses. Por outro lado, as camadas médias urbanas, de cujos estratos sobressaiu o tenentismo, seriam portadoras de uma visão nacionalista, entrando, de fato, em contradição com os propósitos imperialistas no Brasil. Sendo assim, o alargamento da ação das forças populares estaria condicionado à possibilidade de uma terceira revolta tenentista. Ao considerar a natureza da sociedade brasileira como semicolonial, Brandão propunha a aliança política do proletariado “com a pequena burguesia revoltosa e a grande burguesia liberal, contra o Partido Republicano e os fazendeiros do café”.

Tal linha política foi também responsável pela formação do BOC, Bloco Operário e Camponês, articulado, inicialmente em janeiro de 1927, sob a designação de Bloco Operário, com o propósito de se constituir como uma “Frente Única Proletária” na luta contra o imperialismo, pelo reconhecimento da URSS pelo governo brasileiro e em defesa de uma série de reivindicações econômicas dos trabalhadores. Representou a “primeira tentativa sistemática de uma política de alianças” dos comunistas brasileiros. No entanto, devido à limitada capacidade do PCB em organizar sua presença junto ao sindicalismo urbano, à falta de conhecimentos sobre a questão agrária no Brasil e à inexistência de um movimento autônomo e expressivo dos trabalhadores rurais à época, o BOC acabou se transformando num instrumento para a participação dos comunistas no processo eleitoral da época, não conseguindo se constituir em uma organização de massas ou uma frente política que unificasse as ações do proletariado urbano e das “massas camponesas”, como previsto.

Numa época em que o Partido Comunista vivia na ilegalidade, o Bloco Operário serviu para que os comunistas elegessem, em 1927, um deputado para a Câmara Federal, o médico Azevedo Lima, que não era comunista. No ano seguinte, já sob a fachada do BOC, foram eleitos Octávio Brandão e o operário Minervino de Oliveira para o Conselho Municipal do Rio de Janeiro. Em março de 1930, na última participação da sigla eleitoral, lançaram-se candidatos comunistas à presidência da República, ao Senado Federal e às assembleias legislativas, mas as votações foram inexpressivas, e nenhum deles se elegeu. Como já vinha sendo muito criticado pelos próprios comunistas brasileiros e pelos membros da IC, o Bloco Operário Camponês foi imediatamente extinto.

A trajetória do Partido Comunista Brasileiro, portanto, é parte constitutiva da história do Brasil. Se, na sua gênese, convergiram os ideais libertários do nascente proletariado, no seu desenvolvimento e consolidação foram sintetizados os processos de maturação de uma organização política que buscava (e ainda busca até hoje) conjugar em suas fileiras os mais destacados dirigentes das lutas dos trabalhadores e representantes da intelectualidade e da cultura brasileira. Quando se tornou um verdadeiro partido de dimensões nacionais, no imediato pós-guerra, o PCB revelou-se como a instância de universalização de uma vontade política que fundia o mundo do trabalho com o mundo da cultura. À companhia de Astrojildo Pereira e Octávio Brandão, juntaram-se intelectuais do porte de Caio Prado Jr., Graciliano Ramos e Mário Schenberg, entre muitos outros, vinculados a projetos e perspectivas que tinham nas camadas proletárias o sujeito real da intervenção social.

Se a história do PCB foi marcada por uma sistemática repressão, que o compeliu à clandestinidade por mais da metade de sua existência e que entregou ao povo brasileiro boa parte de seus maiores heróis do século XX, nem por isto o PCB foi um partido marginal. Ao contrário: da década de 1920 aos dias atuais, os comunistas, com seus acertos e erros, mas especialmente com sua profunda ligação aos interesses históricos das massas trabalhadoras brasileiras, participaram ativamente da dinâmica social, política e cultural do país. O ponto de partida e referência permanente desta trajetória histórica, sem dúvida alguma, é a Revolução de Outubro de 1917.

* Muniz Ferreira e Ricardo Costa são historiadores e membros do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro – PCB

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