O PCB antes do PCB: um ponto cego na história da revolução brasileira

Manifestação de 1º de maio de 1919 na Praça da Sé, em São Paulo. Fotografia: Wikimedia Commons

Lucas Andreto (membro do Comitê Regional do PCB-SP)

Dentre a última leva de pesquisas sobre a história do movimento operário e revolucionário no Brasil, possivelmente uma das teses mais interessantes é a de Frederico Duarte Bartz. A afirmação se justifica pela apresentação de uma tese que inverte completamente a compreensão que temos sobre o movimento operário entre 1917 e 1921, o PCB chamado “anarquista” de 1919 e o processo de amadurecimento político dos militantes que fundaram o PCB em 1922. Toda a bibliografia existente até hoje mostra as movimentações neste período como movimentos dispersos, sem ligação entre si, com objetivos locais e muitas vezes imediatistas. A tese de Bartz é justamente evidenciar o contrário: a organização dos operários e revolucionários nas várias regiões do país tomaram progressivamente um caráter paulatinamente mais unificado, integrando-se em um projeto político que se resumia na ideia de “revolução social”.

Esse processo se deu com vários percalços, cada derrota do movimento gerava um salto qualitativo em que as forças ligavam-se umas às outras, delineavam objetivos, pensavam um próximo passo. Das greves gerais, passava-se à formação de organizações, congressos e então planos insurrecionais. Nas palavras de Bartz, “o projeto revolucionário também resultou em um adensamento dos laços de solidariedade entre os militantes de diversos estados. Os trabalhadores, principalmente suas lideranças, elevaram suas expectativas para além de um campo de ação local, incorporando uma perspectiva nacional em suas estratégias e suas táticas revolucionárias”.

A forma organizativa embrionária desse projeto político cujo norte era a revolução social foram os Comitês de Defesa Proletária, chamados também de Ligas de Defesa Popular, no caso do Rio Grande do Sul, especificamente em Porto Alegre. Esse tipo de organização, criada para dirigir e organizar os movimentos grevistas que tomavam de assalto as cidades mais industrializadas do Brasil, passou também a ser porta-voz da população em geral ao reivindicar pautas que iam para além da classe operária, como o barateamento dos itens básicos de alimentação, bem como dos aluguéis.

Ao negociar diretamente com os patrões e o governo, os Comitês de Defesa Proletária e congêneres faziam um papel estritamente político, quebrando o princípio anarquista (corrente ideológica então hegemônica no movimento operário brasileiro) de não reconhecer a legitimidade do poder do Estado.

Surgido inicialmente em São Paulo, o Comitê de Defesa Proletária, devido ao seu sucesso como organização, se tornou um modelo organizativo replicado no Rio de Janeiro, Porto Alegre, Pelotas e Maceió. Apesar da vitória inicial em dirigir o movimento grevista e apresentar-se como órgão de representação popular perante o Estado, os Comitês de Defesa Proletária descobriram o seu próprio limite como organização na frouxidão dos laços entre si nas mais diversas partes do país, o que foi crucial para a vitória da repressão policial após o fim das greves. Esta experiência levou o Comitê de Defesa Proletária de São Paulo a propor um Congresso Geral de Vanguarda Social do Brasil, objetivando constituir um organismo que permitisse uma mobilização articulada de todas as forças organizadas do operariado no país.

Devido à repressão que o movimento operário começou a sofrer por parte da polícia, o Congresso das Vanguardas não ocorreu. Todavia, passaram a surgir organizações voltadas para a construção de insurreições revolucionárias, inspirando-se nos sovietes da Revolução Russa. Faz parte deste caso a Aliança Anarquista, que organizou a insurreição operária de 18 de novembro de 1918, no Rio de Janeiro. Outro tipo de organização que surgiu então foram os embriões de partidos leninistas (ou que assim se pretendiam, pois neste momento não era claro para os militantes brasileiros o que era o leninismo, ou então a teoria de Partido de Lênin), como a União Maximalista de Porto Alegre, a primeira organização a justificar sua fundação no apoio à Revolução Russa e a apresentar um programa político que era ao mesmo tempo um projeto de sociedade socialista.

A insurreição operária no Rio de Janeiro, em novembro de 1918, tratou-se de um plano conspirativo, que deveria ser colocado em prática no dia 18 de novembro daquele ano. Contando com o apoio de líderes operários de categorias como os têxteis e metalúrgicos, bem como dos sindicatos filiados à Confederação Operária Brasileira (COB), a insurreição começaria com a deflagração de uma greve generalizada no estado do Rio de Janeiro. Então, os operários grevistas iriam para o Campo de São Cristóvão, onde encontrariam soldados aliados. Juntos, operários e soldados tomariam de assalto o Palácio do Catete, deporiam o Presidente da República (Venceslau Brás) e proclamariam a República dos Sovietes do Brasil.

Foi a primeira tentativa de realizar a revolução social no Brasil por meio de uma aliança entre operários e soldados, tal como na Revolução Russa. A possibilidade dessa aliança desenhou-se para os militantes revolucionários depois que, na greve da Companhia Cantareira (operadora de bondes e barcas de Niterói) ocorrida no começo do ano de 1918, soldados se solidarizaram com os operários grevistas, juntando-se a eles no combate à polícia. Apenas não contavam os líderes operários, que o militar que deveria ser aliado e organizar os soldados para a insurreição, o tenente Jorge Elias Ajus, era na verdade um infiltrado que denunciou todo o movimento, levando à prisão dos planejadores da insurreição: Astrojildo Pereira, João Jorge da Costa Pimenta (dois dos fundadores do PCB em 1922) e José Oiticica (importante professor anarquista). A greve planejada ocorreu, mas sem os organizadores principais do movimento e sem a aliança com os soldados, os trabalhadores se viram isolados e entraram em sangrento combate com a polícia, ao fim do qual a tentativa de insurreição foi esmagada.

A derrota da insurreição de 1918, em vez de arrefecer o movimento, levou ao incentivo para mais uma tentativa de superar as limitações dos planos revolucionários no Brasil, retomando a ideia do Congresso de Vanguarda em criar um órgão de articulação nacional e, dessa vez, com inspiração direta na Revolução Russa. Partiu dos revolucionários do Rio de Janeiro o chamado para uma Conferência Comunista para junho de 1919, cujo resultado seria a criação do primeiro Partido Comunista do Brasil (PCB).

Frederico Duarte Bartz mostra que, diferente do que é apresentado pela historiografia, esse PCB teve repercussão nacional, com núcleos fundados no Brasil inteiro e densidade considerável no Rio de Janeiro (onde contava com vários núcleos de atuação), e tinha no jornal Spartacus o seu porta-voz. Contaria ainda com vários aparelhos vinculados, como um Ateneu Comunista e uma Liga Comunista Feminina.

Nas palavras do autor, ” O Partido Comunista do Brasil, estruturado a partir da Capital Federal, havia conseguido estabelecer núcleos e estender sua influência pelos subúrbios cariocas, mas também havia conseguido estabelecer uma rede de comunicação e solidariedade que se enraizava de forma tentacular por diversas regiões do Brasil. Sua influência atravessava os limites da cidade do Rio de Janeiro, indo, através de excursões de propaganda e do envio de jornais, em direção ao estado do Rio de Janeiro, para cidades como Niterói e Petrópolis; ao mesmo tempo estabelecia laços com os grupos comunistas de São Paulo e por intermédio da cidade de Cruzeiro, conseguia penetrar pelas cidades do sul de Minas Gerais através da Rede Ferroviária Sul Mineira”.

Sobretudo, teria sido este PCB o responsável por organizar mais uma tentativa de insurreição, ao fim da qual deveria ser declarada uma República de Sovietes no Brasil. O movimento deveria eclodir em São Paulo, tendo início com uma greve dos trabalhadores em transportes, generalizando-se para outras categorias. Uma casa na Rua João Boemer, no bairro do Pari, servia de depósito de dinamites, bombas relógio, dinheiro e materiais de propaganda que deveriam auxiliar o movimento insurrecional. Esta casa, porém, explodiu (não se sabe ao certo se por acidente ou sabotagem), precipitando todo o movimento.

A greve de trabalhadores do transporte tornou-se uma batalha campal do proletariado paulistano com a polícia, cujo resultado foi uma grande leva de prisões, incluindo lideranças operárias como Gigi Damiani, Sylvio Antonelli, Everardo Dias e João Jorge da Costa Pimenta. Os estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo cumpriram o papel de serviçais da burguesia, auxiliares da polícia e do Estado, substituindo os motoristas de bonde que estavam em greve e empastelando o jornal anarquista A Plebe.

No seu livro de memórias, Everardo Dias conta que esse movimento estava planejado para ocorrer simultaneamente em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco e Rio Grande do Sul. A estrutura com que se contava para levar a cabo a insurreição, era a estrutura dos núcleos militantes do PCB de 1919. A explosão da casa no Pari precipitou o movimento dos transportes, que por sua vez desencadeou dura repressão e impediu que a ação fosse desencadeada em outros locais. O caso foi mais uma derrota no movimento operário, foi especialmente a derrota do PCB de 1919, que dissolveu-se. Além disso, tornou-se um episódio perdido da Revolução Brasileira, renegado por anarquistas por ter em um partido sua principal ferramenta de organização e igualmente desclassificado pelos comunistas, por envolver um partido prenhe de concepções ideológicas demasiadamente anarquistas.

O PCB de 1919 guardaria ainda outras características interessantes. Construído e tendo unificado em uma única organização anarquistas, sindicalistas revolucionários, socialistas e políticos republicanos radicais (jacobinos) não seria, na prática, um partido, mas sim uma Frente Única cujo programa se resumia na Revolução Social. Teria sido, dessa forma, a primeira frente política da esquerda organizada no Brasil, uma espécie de precursora do Bloco Operário e Camponês (BOC) e da Aliança Nacional Libertadora (ANL).

O BOC e a ANL tinham uma característica considerada comum nas frentes políticas: diminuir o programa político no nível de reivindicações gerais que podem ser aceitas por setores não revolucionários da política, como reformistas e liberais democráticos. O PCB de 1919, contudo, foi uma frente que se construiu fazendo o exato contrário: seu programa era a revolução, a derrubada do regime republicano e a instauração da República Soviética. Esse fenômeno, talvez único na história política brasileira, só foi possível pelo contexto vigente: o momento imediato após a Revolução Russa, com a perspectiva da revolução socialista em toda a Europa (que parecia real enquanto encarnada no biênio rosso italiano, na derrocada do Império Prussiano e subsequente proclamação da República Alemã, na instauração da República Soviética da Hungria etc), o processo de ascensão do movimento operário brasileiro desde a greve geral de 1917, tendo como plano de fundo movimentações semelhantes do operariado em toda a América Latina. A Revolução Social do Proletariado aparecia para os militantes proletários como estando na ordem do dia; para que se realizasse, faltava apenas um pequeno esforço.

Com o desmantelamento precipitado da insurreição de 1919 e a desarticulação do primeiro PCB, o movimento operário entrou em crise. A derrota política levou à cisão do movimento. As pessoas que faziam parte do PCB de 1919 passaram a pensar as razões da derrota, as debilidades do movimento, compará-las com a experiência revolucionária em outros países, principalmente a Revolução Russa. As conclusões não foram unânimes. Parte destes militantes, como Edgard Leuenroth e José Oiticica, recusaram terminantemente o caminho que enveredaram nos últimos anos, aproximando-se das organizações partidárias e do exemplo do bolchevismo russo, retornando ao anarquismo e ao sindicalismo-revolucionário que vigia até 1914. Outros, como Astrojildo Pereira, Abílio de Nequete, João Jorge da Costa Pimenta, Everardo Dias e Octávio Brandão, convenceram-se de que o exemplo da Revolução Russa era o correto e que as derrotas do movimento operário brasileiro se deram justamente pela incompreensão e ausência das ferramentas que possibilitaram a vitória na Rússia. Principalmente a incompreensão do que era o partido leninista teria sido fatal. Assim, rumaram para a adesão à III Internacional fundada pelos bolcheviques e para a construção do PCB em 1922.

Bibliografia:
BARTZ, Frederico Duarte . Partido Communista do Brazil (1919): lutas, divergências e esquecimentos. Aedos: Revista do Corpo Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS (Online) , v. 2, p. 318-330, 2009.
___. Movimento Operário e Revolução Social no Brasil: ideias revolucionárias e projetos políticos dos trabalhadores organizados no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Porto Alegre entre 1917 e 1922. Porto Alegre: UFRS, 2014. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/107948
DIAS, Everardo. História das Lutas Sociais no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1977.