Astrojildo Pereira: o maior homem de sua terra

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Rômulo Caires

Jornal O MOMENTO – PCB da Bahia

“Naquele momento, o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo — no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra.”
(Euclides da Cunha em ‘A última visita’)

Assim Euclides da Cunha escrevia sobre a famosa visita de Astrojildo Pereira a Machado de Assis, durante os momentos finais da vida do grande escritor brasileiro. Era 1908, tempo de Primeira República, poucos anos antes da grande campanha civilista pela eleição de Rui Barbosa contra o militar Hermes da Fonseca. Machado estava em seu leito de morte, tinha diante de si aquelas poucas pessoas que compunham seu círculo íntimo, inclusos nomes como o do escritor carioca Coelho Netto. Astrojildo, então um jovem de 18 anos, entrou de repente, não quis se identificar, beijou a mão de Machado, levantou-se e foi embora. O gesto marcaria a personalidade modesta de Astrojildo e ao mesmo tempo eternizaria o seu profundo humanismo e admiração pelas letras brasileiras.

Astrojildo Pereira Duarte Silva nasceu em 1890 em Rio Bonito, cidade do interior do Estado do Rio de Janeiro. Posteriormente mudou-se para Niterói, passou alguns anos em colégio aristocrático até a decisão de largar a escola e romper com antigos laços. O autodidatismo marcará sua trajetória, fato que não era incomum aos intelectuais do período. Foi operário gráfico e depois jornalista. Em 1911 fez viagem pela Europa e se introduziu nos círculos anarquistas. A derrota de Rui Barbosa em 1910 calou fundo em Astrojildo, mas seu ímpeto de luta só aumentou e por isso decidiu-se pelo anarquismo.

A partir de então Astrojildo tornou-se figura destacada no movimento operário, escrevendo para diversos jornais anarquistas, participando das crescentes greves e sendo importante organizador das lutas sindicais. O refluxo do anarcossindicalismo e a vitória da Revolução Russa de 1917 funcionaram como um novo marco na vida de Astrojildo, que se juntaria a outros combatentes destacados para fundar o Partido Comunista do Brasil (PCB) em 1922. No mesmo ano assistiríamos em São Paulo à Semana de Arte Moderna, contraditório movimento, mas que, em conjunto aos outros acontecimentos do período, sinalizava para uma nova época no Brasil e no mundo.

Por cerca de 8 anos Astrojildo será secretário-geral do PCB e guiará o partido na construção de seus quadros partidários, na dedicação cada vez maior ao estudo da realidade nacional e será decisivo na ampliação do leque de alianças do PCB. Grande intelectual que era, Astrojildo foi capaz de absorver as principais contribuições da Internacional Comunista sem perder de vista as particularidades do Brasil. Com a mais recente republicação de sua obra, podemos notar claramente o refinamento teórico de Astrojildo, sua independência intelectual e sua grande capacidade política. Definitivamente com Astrojildo não tivemos “derrota da dialética” como quer Leandro Konder.

Em 1931 e com a patética política obreirista que invadiu o PCB, Astrojildo foi expulso do partido. Que tipo de partido expulsa Astrojildo Pereira? Que tipo de partido expurga o maior quadro comunista brasileiro dos anos 20, aquele que não só impediu que o partido se transformasse em seita irrelevante como trouxe decisivas contribuições para o avanço da consciência de classe no Brasil e para as formulações estratégicas da Revolução Socialista em nosso país? Aquele mesmo que viajou até a Bolívia para encontrar o Cavaleiro da Esperança e ser decisivo no recrutamento e formação política do maior líder comunista da história do Brasil, Luiz Carlos Prestes.

O tempo longe do PCB permitiu a Astrojildo dedicação integral a outra de suas grandes paixões: a literatura. O grande político era também um grande escritor. Releu com afinco a obra de Machado de Assis e produziu aquelas que certamente são das mais notáveis páginas do acervo crítico do Bruxo do Cosme Velho. Mas não só de Machado de Assis viveu Astrojildo. Analisou com precisão a gênese do romance brasileiro a partir de figuras como Joaquim Manoel de Macedo e Manoel Antônio de Almeida, focando na ideia de um estudo dos costumes urbanos.

É famosa a paíxão de Astrojildo pelo Rio de Janeiro e na figura de Lima Barreto ele encontrou páginas notáveis sobre a vida urbana na capital da República. Apesar de ter produzido belos textos sobre a vida e a obra do criador de Gonzaga de Sá é de se lamentar que Astrojildo não tenha escrito obra separada tal qual fez com Machado. Quem também diz isso é Nelson Werneck Sodré, que passou a vida cobrando esse livro de Astrojildo. Para o grande historiador, apenas Astrojildo poderia escrever a obra que desmistificasse toda a série de equívocos sobre os escritos de Lima, de quem Astrojildo foi amigo. Para Sodré, somente Astrojildo escreveria um livro à altura de um dos maiores de nossos romancistas.

Os anos 30 foram bastante difíceis na vida de Astrojildo. Estar fora do PCB, a quem tanto se dedicou, pesava em seu destino. Mas ele não conseguiu ficar totalmente longe da política. Participou das lutas antifascistas e escreveu textos clarividentes sobre o Integralismo. No calor do momento, Astrojildo identificava no Integralismo um movimento da Contrarrevolução e foi capaz de analisar o movimento de extrema-direita brasileiro sem recorrer a modelos copiados que ignoravam o específico de nossa realidade nacional.

Astrojildo Pereira volta ao PCB nos anos 40, tem participação saudada no I Congresso dos Escritores Brasileiros e chega a ser novamente eleito para o Comitê Central do Partido nos anos de 1960. Seu retorno foi mais focado na construção de uma política cultural que desse conta de nossos enormes desafios. Dirigiu importantes revistas como Literatura e Estudos Sociais, esta última revista teórica do PCB que aglutinou desde nomes consagrados a jovens intelectuais que teriam seus nomes cada vez mais conhecidos nos anos seguintes. A Ditadura não perdoou Astrojildo, que foi preso após o Golpe de 64, passando alguns meses no cárcere. Muito doente, teve habeas corpus aceito e pôde passar seus últimos dias em liberdade.

No ano do centenário do PCB, faz-se fundamental rememorar a vida e a obra do grande homem, escritor, brasileiro e comunista que foi Astrojildo Pereira. Sua modéstia, dedicação, generosidade e coragem serão sempre lembradas por todas e todos aqueles interessados em transformar radicalmente a realidade opressora do capitalismo. Astrojildo era profundamente ligado ao seu país, mas nunca deixou por um segundo de lembrar que a Revolução é internacionalista ou não será. Foi uma das raras figuras que conseguiram unir com grandeza teoria e prática, a essência do legado marxista. Modesto que era, Astrojildo nunca aceitaria a pecha de “gênio”. Mas podemos dizer junto com Astrojildo que não é meramente uma questão de modéstia, pois ele sabia que a emancipação de um só se dará com a emancipação de todos.

Viva o legado de Astrojildo Pereira!