Mulher negra comunista: Maria Aragão e o PCB
Fundação Dinarco Reis
Maria José de Camargo Aragão, nascida em 10 de fevereiro de 1910, no Engenho Central, interior do Maranhão, área de conflitos de terra, concluiu o Curso Normal em São Luís. Em 1934, foi para o Rio de Janeiro com a mãe doente, que morreu logo depois. Enfrentando sacrifícios e passando fome, ingressou no Curso de Medicina, na antiga Universidade do Brasil e conseguiu cumprir o sonho de formar-se médica, em novembro de 1942.
Foi trabalhar no Rio Grande do Sul, onde sofreu preconceito por ser mãe solteira. Sua filha morreu vítima de uma epidemia, o que a fez retornar para o Rio. Em 1944, entrou para o PCB, após participar do histórico comício de Carlos Prestes em São Januário. Em 1945, voltou ao Maranhão para organizar o Partido. Dirigindo o jornal Tribuna do Povo, revelou-se grande agitadora e organizadora política. Em 1951, durante a revolta popular que explodiu no Estado contra as práticas coronelistas de Vitorino Freire, foi presa pela primeira vez. Passou mais de oitenta dias presa, mas recebeu solidariedade de muita gente do povo.
Durante a ditadura de 1964-1985, foi perseguida, presa e torturada em diversas ocasiões. Neste período, fez da medicina e da atenção aos proletários sua principal missão. Na década de 1980, dirigiu o Sindicato dos Médicos, atuou na greve dos profissionais de saúde e na criação da Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos. Faleceu aos 81 anos, em 1991. Milhares de pessoas participaram do seu velório e do enterro, que se transformou num ato político promovido por entidades sociais e partidos de esquerda. No Centro Histórico da capital maranhense, em 2003, foi inaugurado o Memorial Praça Maria Aragão, projetado por Oscar Niemeyer.
O ingresso de Maria Aragão no PCB
Fonte: Portal TraduAgindo
Trecho do depoimento autobiográfico de Maria José Aragão, mulher negra, nordestina, médica e militante comunista.
O relato trata do início da organização de Maria Aragão no então Partido Comunista do Brasil (PCB) em 1945. Maria Aragão retornou ao Maranhão com a missão de reforçar o PCB. Na época, o Partido chegou a ter mais de dois mil militantes, incluindo o interior do Estado, onde a médica era tratada como prostituta ou besta-fera por alguns padres que incitavam a população contra ela, dizendo que “comia criancinhas”. Na cidade de Codó, chegou a ser apedrejada.
Originalmente disponível no livro “Maria por Maria ou a Saga da Besta-Fera nos Porões do Cárcere e da Ditadura” de Euclides Moreira Neto, publicado pela Editora Engenho, em 2015. Disponível aqui.
Transcrição de Andrey Santiago.
Bem, mas eu disse:
– Eu vou entrar, vocês já sabem como eu sou. E eles sabiam que eu era teimosa, que eu sou teimosa. Aí, de manhã fui procurar a Mochel, eram duas Mochel, ambas morreram, a Celina e a Eline.
Eline era minha colega de turma, nunca me convidou pra entrar no Partido.
– Me convidou depois para sair do Partido e ir pro PC do B, e eu mandei-a pra puta que a pariu (isso não é pra sair?). Bem, então eu fui lá onde as Mochel e disse:
– Eu quero entrar pro Partido Comunista.
Aí elas disseram:
– Ótimo, muito bem, tá aqui, assina uma ficha.
– Tinha uma ficha pra assinar e aí me levaram, apresentaram lá e me puseram para estudar os estatutos.
– Que raiva que eu tenho disso hoje, quanto eu sofri por causa disso, como foi dolorosa a minha formação como comunista por causa desse descaso, por isso tive que estudar as coisas.
– Aí o partido precisou de gente pra trabalhar, pra construir a sua sede. Eu me atirei apaixonadamente nas obras.
– Eu só sei fazer essas coisas… inclusive, meus erros eu os cometo apaixonadamente.
– Sou assim mesmo, é minha cabeça.
– Pois bem, então eu comecei a trabalhar, procurei todos, principalmente os que eram maranhenses, os que eu conhecia, meus amigos, meus alunos pra dar dinheiro, pra tatatá, tatatá e tal e chamei atenção pela minha fúria.
Aí disseram o seguinte:
– Quem pode ir para o Maranhão?
– Quem pudesse ir para o Maranhão, devia vir, pois, aqui estavam precisando de militantes pra levantar o Partido.
Maria se autocriticando, revela:
– A idiota da Maria Aragão berra “eu posso!”…
– Eu posso! Foi o que disse, pois vinha em grupo pra cá, inclusive um fulano que dizia ter sido da “Coluna”, mas Prestes não se lembrava dele. E a memória de Prestes é fotográfica, hoje ele se lembra, locais, datas, é impressionante, com 90 anos que ele fez agora.
– Bem, Prestes não se lembrava dele.
– Ele se chamava Euclides Neiva. Então, veio um grupo de maranhenses pra cá e eu vim também, não veio o meu companheiro, meu ex-companheiro.
– Eu vim pro Maranhão, sem saber porra nenhuma.
– Um amigo meu, Dalcídio Jurandir, era um escritor, tem livros publicados e me deu vários conselhos.
Ele me disse:
– Você precisa ler.
Foi a primeira pessoa que me disse isso:
– Você precisa ler.
Eu disse:
– Mas o que é que eu vou ler? Os miseráveis (referindo-se aos seus companheiros de Partido) nunca me disseram isso, me deram uma lista de livros pra eu estudar, bem, nunca tive isso.
– Então, venho pro Maranhão, assim nua e crua, sem nada, nada, nada, nada.
– Esse é o ódio que eu tenho maior da vida, porque isso me fez cometer erros gravíssimos.
– Bem, então ele me deu um livro pra ler, um livro volumoso assim (faz gestos).
– Era um livro sobre Lênin.
– … como é que eu podia ler aquele livro, meu Deus? Anos depois, eu entendia que aquele livro iria me fundamentar teoricamente.
– Era uma polêmica, entre Lênin e Stálin.
Bem, então eu vim pra cá, vim furiosamente, loucamente, pegava jornal, os novos jornais e sabia notícia de jornal, e era em cima do que tava no jornal que eu discutia, brigava, que eu fazia, que eu convocava gente e ia pra porta de fábrica, numa verdadeira loucura.
Havia aqui um grupo de comunistas, velhos comunistas, homens sérios, e eu queria que eles fizessem propaganda.
Eles diziam:
– Você entrou agora, você tem razão de acreditar que é possível a legalidade. Nós tínhamos ido à legalidade, Prestes indo pro comício e falando em nome do Partido Comunista.
E ele entrou… a legalidade não teve uma lei, não teve porra nenhuma. Então estava na legalidade… (interrompe para atender um vizinho de lá).
Sim, então eu vim pra cá e comecei a trabalhar sem nenhuma base teórica e a cometer erros, a querer que aqueles companheiros fizessem a mesma coisa que eu. Eles diziam:
– Você tem meses de Partido e nós temos anos, você entrou na legalidade e nós temos não sei quantos tempos de prisão em Ilha Grande, nós perdemos emprego, nós não conseguimos…
Eu ficava pensativa…:
– Meu Deus, eu não sentia aquilo, isso me dói hoje.
– Maranhão, Maranhão, isso me dói hoje, me dói muito, viu?
Então disse:
– Faça você, você pode, não, não, não faça. Eu fazia. Ia pra porta de fábrica, fazia comício em porta de fábrica, colava, mexia, pintava caneco, meu Deus que coisa horrorosa!
Cometia erros, por exemplo, esse:
– Era um querer arrastá-los para fazer aquilo que eles não podiam fazer e eles tinham razão. Tinha um companheiro de quem eu gostava muito. Ele se chamava Queiroz.
Maria se perguntava:
– Como é o primeiro nome dele?
Ela mesma se respondia:
– Eu não me lembro, mas sei que ele é Queiroz. Queiroz tinha sido expulso do Exército, vivia de bisca- te, não sei de que, bababá, bababá, bababá…
Nós íamos vender jornal e ele não queria sair.
Ele dizia:
– Maria, eu sou um homem velho.
Eu dizia:
– Tu és velho nada.
Eu sabia que ele tinha uma mulher na rua.
– Tu tens mulher na rua, com filho de dois anos, como é que tu és velho?
– Tu não és velho nada.
– Eu arrastava o velho pra trabalhar comigo, era o único que tinha coragem mesmo de sair e que saía comigo.
– Ele saía reclamando, mas saía, sectário danado, nós íamos fazer finanças.
– Me lembrei, como me lembrei dele! Foi horrível a morte dele, me puseram pra falar, eu falei chorando, foi horrível, disse que nunca mais falava em enterro de ninguém, falei.
– Gregório Bezerra, então, ele ia fazer finanças com um cara desse conhecido aqui viu. Preciso de dinheiro pro jornal tatatá, tatatá…
E o homem dizia:
– Não, eu não posso dar.
Ele dizia:
– Olha rapaz (passando a mão no pescoço), olha a revolução, olha a revolução, chega aí…
Aí ele disse:
– Espera aí, eu vou dar, vou dar.
Aí eu dizia:
– Rapaz, isso é meu modo de amedrontar as pessoas.
Disse ele:
– Tu és doido?
Maria se pergunta a si mesma:
– Ele deu?
… e ela responde:
– Não deu.
Pois é assim que eu sei trabalhar. Nunca vi um sujeito igual a Queiroz, eu fazia as coisas, cometia muitos erros, mas trabalhei esses anos todos, todos esses anos, mas não estudava, porque Euclides Neiva, que era o Secretário Geral que veio mandado pra cá pra organizar o Partido, não estudava, ele não tinha nenhuma base teórica e os outros pobres coitados também não.
– Por infelicidade minha, fez-se uma reunião dos que existiam aqui e também pra direção.
– Eu era da gente pobre, era de agitação e propaganda, porque eu era uma agitadora mesmo, viu?
– Mas isso que eu fiz, foi errado. Primeiro, se eu chegasse aqui tranquilamente e se fosse trabalhar como médica, eu me firmava aqui.
– Eu nem sei como é que eu cheguei a ser Maria Aragão hoje.
– Isso aí é um caso digno de estudo, viu?
– Mas não, eu cheguei aqui mandando brasa ao ponto de um jornal dizer que eu tinha vindo aqui, do Rio, também pra organizar o partido, bababá, bababá…
Perguntando a si mesma:
– Sabe o que aconteceu?
– O clero e a reação inteirinha veio em cima de mim. Como os outros não apareceram, tudo era em cima de mim. Eu que era Doutora, que tinha tido um nome bom como professora aqui, era conhecida como professora, fui conhecida como aluna, era tida como aluna brilhante (risos…). Só porque eu era uma coisa diferente, o Haroldo me chamou uma vez e disse:
– Maria, o que tu és, é petulante. Ela concorda para si mesma:
– Eu acho que eu era mesmo petulante.
– Eu hoje acho que ele tinha razão, eu era petulante mesmo, viu? Por isso eu fiz um curso brilhante como professora, cursei brilhantemente as três séries, eu me metia a falar, discutir, sobretudo discutir, por isso era tida petulante.
– Eu não era tão inteligente e eu não era nem a mais inteligente dos meus irmãos. Eu era talvez a terceira ou quarta mais inteligente entre meus irmãos. Mas eu era tida como a mais inteligente, porque eu era isso, petulante, como Haroldo classificou muito bem. Então este clero caiu em cima de mim, dizendo:
– Chegou aqui uma mulher, uma prostituta, ela se diz que é médica, mas ela não é médica, uma dona Maria, ela é uma prostituta, não se consultem com ela.
EUCLIDES: Era pregação na igreja.
MARIA ARAGÃO: Pregação na Igreja, durante as Missas. Sei lá quem eram esses filhos da puta.
– Era tudo, todos os que se diziam padres.
– Era o clero todo em cima de mim.
– Era o clero todo, puseram até no jornal.
– Eu me lembro que o padre Elias Cruz, que tinha sido meu professor, que gostava muito de mim e que um dia me encontrou no Rio de Janeiro com a minha filha no braço e ficou feliz de me ver. Então ele veio com um bababá, bababá…
Ele disse:
– Você está aqui. Essa garotinha é sua afilhadinha?
Eu disse:
– Não, é minha filha. Mas eu não sabia que você tinha casado.
Aí eu disse:
– Mas eu não casei.
– Aí ele ficou me olhando meio besta, de olho arregalado, olhando pra trás. Olhando, parecendo que ele tinha visto não sei o quê?
– Parece que ele tinha visto assombração, de olho esbugalhado olhando pra trás, porque eu disse pra ele que eu não tinha casado. E aquilo foi a fonte que os padres tinham pra me chamarem de prostituta.
Pois bem, mas aqui chegou…
Maria se maldiz:
– Lá vem o troço do ano, da data, não sei quarenta e quantos… 45, 46, devia ter sido entre 46 e 47, pois o Partido ainda estava na legalidade… Não tínhamos saído da legalidade, pois isso só aconteceu em 47….
– Quando o regime cassou o Partido, deve ter sido de 47 para 48, aí saímos da legalidade… foi cassado o Partido Comunista, então deve ter sido de 47 para 48.
Com convicção Maria declara:
– Chegou aqui um dirigente comunista maravilhoso, Orestes Timbaúba. Era o nome dele. Ele me deu a maior ajuda que eu tive. Ele dizia o seguinte:
– Olha isso que você fez, estava errado.
Perguntou ele a mim:
– Você sabe que isso tava errado? Imediatamente, pensei:
– Por isso, por isso, por isso deu certo, mas podia dar errado, você ia se arrebentar mais do que já se arrebentou aqui. Se tivesse dado errado, ele poderia dizer:
– É porque você não estuda.
Então, resolvi perguntar:
– O que é que eu vou estudar? Ele pegou, me deu uma lista de livros e disse:
– Vou mandar os livros pra você. Mandou buscar os livros e eu comecei a estudar.
Ele disse:
– Olhe, se você estudar, você não comete mais esses erros.
Decidi começar a ler:
– Eu senti as palavras do Lênin, que eu fui ler. Vi as palavra do Lênin e senti que era verdade:
“Não há movimento revolucionário, sem teoria revolucionária”.
– Só aí eu comecei a estudar, foi muito doloroso, e me dói lembrar aquele começo de não terem me dito que é preciso estudar isso, isso, isso… é preciso se ter base teórica pra fazer isso ou pra fazer qualquer outra atividade… faça isso, desta maneira. Eu sempre estive aqui.
– Em 1951 houve aqui aquela greve política [1] que você deve saber que houve, nós não tínhamos feito a greve política, nós apoiamos a greve política. Quem foi a alma disso foi o Neiva Moreira [2].
– Bem, mas nós apoiamos, tomamos parte da greve e tal.
– Bem, no último dia da greve, a essa altura eu tinha me casado.
– É preciso falar desse casamento?
– Porra…
EUCLIDES: Fala logo da greve.
MARIA ARAGÃO: A essa altura tinha me casado, e meu marido chamava Alfredo Galvão, era um sujeito interessante, inteligente, com uma coragem física muito grande, grande, brigador, mas duma covardia política, até danada.
– Ele tinha um aspecto jovem, era um homem da minha idade, diferença de um ano mais ou menos, mas tinha um aspecto muito jovem, então quando tava com as minhas amigas.
Ele dizia: – Tenho 22 anos.
E eu dizia: – Tu ainda me pagas.
– Então, quando ele fez 40 anos, eu ia fazer uma festa pra ele (interrompe para dizer que uma de suas cadeiras estava quebrada). Eu ia fazer uma festa pra ele e botar as 40 velas. Então a gente tava trabalhando… tinha peru pra matar… a mulher estava lá trabalhando… e tinha doce… tinha as velas… bem era os 40 anos do Alfredo. Mas nessa altura batem a porta.
[O relato continua com a prisão de Maria Aragão em 1951].
Notas de Rodapé
[1] A greve foi um movimento articulado pelas oposições contra a posse do Governador Eugênio Barros, que era ligado a Vitorino Freire, “vitorioso” em eleições marcadas por denúncias de fraude. As Oposições Coligadas apresentaram como candidato Saturnino Bello, que rompeu com a situação em virtude de sua não indicação como candidato ao governo pelo vitorinismo. Aproveitando-se das dissidências abertas no seio do grupo dominante, as oposições vislumbraram em “Satú” Bello a possibilidade de finalmente alcançarem o governo estadual. […] A campanha eleitoral de 1950 foi particularmente agitada e provocou forte interesse da população
[2] No Jornal do Povo, alguns dias depois, Neiva Moreira fez um balanço do pós-greve, afirmando que, apesar dos objetivos não terem sido alcançados, houve um avanço considerável “na formação de uma nova consciência de força popular e de um núcleo de resistência que tem feito os prepotentes mudar de rumos e atenuar a arbitrariedade”. Pois, apesar de tudo, no decorrer da greve foram sedimentados os eixos do discurso oposicionista: o combate à fraude eleitoral e à corrupção administrativa, preconizando a libertação do Maranhão do jugo opressivo da oligarquia de Vitorino Freire. Sem dramaticidade e heroísmo, o cordel de “Zé Pequeno” [José Ribamar Bogéa, fundador do Jornal Pequeno] abordou os últimos dias do movimento.