Filha conta como Olga não se dobrou ao nazismo

imagemENTREVISTA DE ANITA LEOCADIA PRESTES

EXTRA CLASSE – por Gilson Camargo

Os Trophäen-dokumente, ou documentos-troféus, que registram em 28 mil dossiês as atividades da polícia secreta de Adolf Hitler, apreendidos por soldados soviéticos após a derrota da Alemanha nazista em 1945 e mantidos em sigilo até abril de 2015, reservam a Olga Benario Prestes a mais abrangente documentação sobre uma única vítima do fascismo. “A documentação revela que Olga se recusou peremptoriamente a fornecer qualquer informação sobre o movimento comunista à Gestapo”, afirma a professora e historiadora Anita Leocadia Prestes, filha de Olga, autora do recém-lançado Olga Benário Prestes – Uma comunista nos arquivos da Gestapo (Ed. Boitempo). “Se outros se tornaram traidores, eu jamais o serei”, sentencia Olga em uma carta escrita na prisão e que nunca foi entregue ao marido. Até agora, havia muitas lacunas na história da jovem militante alemã de origem judaica, mulher do líder comunista brasileiro Luiz Carlos Prestes, que foi entregue ao Terceiro Reich pelo governo de Getúlio Vargas, em 23 de setembro de 1936, grávida, e executada em uma câmara de gás em 1942. A obra revela detalhes da perseguição do regime nazista à mãe da autora, uma “comunista inteligente e perigosa”. O livro “é revelador da inaudita violência praticada pelas autoridades do III Reich contra milhões de homens, mulheres e crianças, a grande maioria sem nenhuma culpa formada”, resume a autora nesta entrevista ao Extra Classe.

Extra Classe – No livro Olga Benário Prestes – Uma comunista nos arquivos da Gestapo, a senhora reconstitui a trajetória política e a vida da revolucionária comunista alemã desde a juventude em Munique, a vida e a militância no Brasil, até sua execução no campo de concentração de Ravensbrück. Qual a importância dos arquivos secretos da Gestapo (os “documentos-troféus” liberados para consulta pública em 2015) na construção dessa narrativa?

Anita Leocadia Prestes – O livro se baseia nos documentos disponibilizados recentemente do arquivo da Gestapo, os quais fornecem muitas informações até agora desconhecidas do público e da minha família. Trata-se da documentação da polícia secreta do III Reich (a Gestapo), que foi apreendida pelo Exército Soviético por ocasião da tomada de Berlim, em maio de 1945, e levada para a União Soviética. Em abril de 2015, essa documentação foi disponibilizada na internet – um acervo precioso para a pesquisa histórica e, em particular, para o melhor conhecimento das entranhas do regime nazista.

EC – Dos 2,5 milhões de folhas que integram os 28 mil dossiês, há 2 mil páginas sobre Olga. Quando começou esse monitoramento e por que era tão grande o interesse da Gestapo pelas atividades dela?

Anita – Os documentos do arquivo da Gestapo referentes a Olga abrangem o período 1936 a 1942: da sua extradição do Brasil para a Alemanha até seu assassinato numa câmara de gás. Nesses documentos afirma-se que Olga era uma “comunista perigosa”, cuja atuação no Partido Comunista Alemão e na Internacional Comunista (Comintern) deveria ser por ela relatada à Gestapo, além de ser mulher do líder comunista Luiz Carlos Prestes. A documentação revela que Olga se recusou peremptoriamente a fornecer qualquer informação sobre o movimento comunista à Gestapo.

EC – A publicação dos “documentos-troféus” permitiram a atualização do livro-reportagem Olga (1994), de Fernando Moraes?

Anita – Fernando Moraes fez uma pesquisa abrangente da vida de Olga e escreveu uma obra séria e comprometida com a evidência dos fatos, o que era reconhecido por Prestes, meu pai. Mas, no início dos anos 1980, quando ele escreveu o livro Olga, a documentação do arquivo da Gestapo não estava disponível, o que me permitiu agora complementar sua obra.

EC – Por que Getúlio Vargas optou por deportá-la se já havia capturado Prestes?

Anita – Meu pai dizia que a extradição da minha mãe foi a forma que Vargas encontrou de torturá-lo, pois a tortura física de Luiz Carlos Prestes, à qual foram submetidos outros prisioneiros da época, teria uma repercussão muito negativa para o governo brasileiro. Prestes gozava de prestígio mundial como o “Cavaleiro da Esperança”.

EC – A deportação foi um ato desumano e uma ilegalidade, não?

Anita – Olga foi extraditada no sétimo mês de gravidez de um filho brasileiro, o que lhe dava direito a permanecer no Brasil pela legislação então vigente no país.

EC – Ao reconstruir a trajetória de Olga, a senhora fala de sua própria história. Que sentimentos o livro evoca? Para a senhora, quem é Olga Benário?
Anita – Minha mãe foi sempre a grande inspiração da minha vida. Acima de tudo ela foi uma comunista convicta e abnegada, disposta a dar a própria vida pela causa da revolução, que abraçara desde muito jovem. Embora eu não tenha nenhuma lembrança dela, pois fomos separadas quando eu estava com 14 meses de idade, fui educada pela minha avó paterna Leocadia Prestes e minha tia Lygia, conhecendo e admirando a vida da minha mãe. Da mesma forma, meu pai sempre me orientou no sentido de conhecer e seguir seu exemplo.

EC – O que a correspondência entre seus pais revela?

Anita – São cartas inéditas, que a censura da Gestapo não permitiu que fossem entregues aos seus destinatários. A correspondência entre meus pais é reveladora do grande amor que os unia e da coragem com que enfrentavam a terrível situação a que estavam submetidos: Olga na prisão e nos campos de concentração nazistas e Prestes preso e incomunicável no Brasil durante nove anos.

EC – A senhora afirmou que se considera “filha da solidariedade internacional”. Por quê?
Anita – Minha libertação pela Gestapo e entrega à minha avó paterna Leocadia só foi possível graças à campanha internacional por ela encabeçada e que comoveu profundamente a opinião pública mundial da época. A documentação da Gestapo é reveladora da pressão exercida sobre as autoridades do III Reich pela solidariedade internacional levada adiante por essa campanha.

EC – Qual a importância do filme Olga, de Jayme Monjardim (2004), que opta pela narrativa de novela, para a popularização da história de Olga e Prestes?

Anita – Conforme foi dito à época pelo próprio diretor do filme, seu objetivo foi narrar a história de amor entre os dois personagens principais. Embora este possa ser considerado um ponto débil da obra, o filme emocionou e continua emocionando um público numeroso e contribuiu para divulgar a história dos meus pais e denunciar o crime cometido por Getúlio Vargas com a extradição ilegal da minha mãe para morrer numa câmara de gás da Alemanha nazista.

EC – Em que medida seu livro desconstrói uma eventual narrativa heroica ou mitológica sobre Olga?

Anita – Meu livro, baseado em rica documentação, produzida pela própria Gestapo, é revelador da evidência dos fatos acontecidos com Olga. É revelador da inaudita violência praticada pelas autoridades do III Reich contra milhões de homens, mulheres e crianças, a grande maioria sem nenhuma culpa formada.

EC – No livro Luiz Carlos Prestes – Um Comunista Brasileiro (Boitempo, 2015), a senhora aborda as preocupações intelectuais de seu pai. Quem foi e qual a importância de Prestes no contexto histórico do país?

Anita – Luiz Carlos Prestes foi um revolucionário que dedicou a vida à luta por justiça social e liberdade para o povo brasileiro, um comunista convicto de o socialismo ser o único caminho para a humanidade sair da pré-história, conforme postulou Karl Marx, e chegar ao comunismo – um regime efetivamente igualitário em que cada um irá contribuir de acordo com sua capacidade, recebendo segundo suas necessidades. O compromisso de Prestes foi sempre com o socialismo revolucionário. Sua vida política ficou marcada pelo repúdio constante às tendências reformistas, ou seja, à possibilidade, que considerava ilusória, de se alcançar o socialismo apenas por meio de reformas, sem a tomada do poder. Considerado pelos liberais um político inflexível e inábil, provocou o ódio das classes dominantes e dos intelectuais a seu serviço, uma vez que jamais abdicou dos ideais aos quais dedicou sua vida. Sua ruptura em 1930 com os donos do poder foi um gesto inaceitável para as classes dominantes no Brasil, que nunca perdoariam sua opção pelos trabalhadores e, de maneira geral, pelo explorados. Eis a razão por que recorreram sempre ora às calúnias contra o líder comunista, ora ao silêncio ou à falsificação de sua trajetória como forma de apagar o legado do Cavaleiro da Esperança da memória das novas gerações de brasileiros.

EC – Sua convivência com ele foi interrompida diversas vezes por conta das perseguições e exílios de ambos. Como foram essas separações?
Anita – O maior período de afastamento do meu pai – após tê-lo conhecido aos 9 anos de idade, quando ele saiu da prisão em 1945 – deu-se durante minha adolescência, de 1948 a 1957, quando ele teve que viver na clandestinidade devido à perseguição policial então desencadeada contra os dirigentes comunistas. A partir de 1958 até seu falecimento em 1990, sempre mantivemos contato seja na legalidade, na clandestinidade ou no exílio. Tornei-me sua colaboradora na atividade política que desenvolvia à frente do Partido Comunista Brasileiro e, após termos rompido com a direção desse partido, continuei a assessorá-lo até seu falecimento. Como muitos outros brasileiros, sempre fomos perseguidos pelas forças de direita, reacionárias e anticomunistas em nosso país, principalmente nos períodos ditatoriais, o que nos obrigou a passar anos na clandestinidade ou no exílio.

EC – Como vê o contexto do Brasil pós-golpe de 2016?

Anita – Vivemos um momento extremamente penoso para nosso povo, resultado, em grande medida, do golpe parlamentar jurídico perpetrado há um ano, quando assumiu a presidência do Brasil Michel Temer, um usurpador, que não foi eleito pelos brasileiros. O objetivo do golpe está cada vez mais evidente: liquidar as conquistas dos trabalhadores alcançadas através de muita luta durante décadas, entregar a Petrobras ao grande capital internacionalizado, privatizar os setores da economia nacional que ainda não o foram.

EC – A senhora está escrevendo um livro sobre suas próprias memórias. Pode falar sobre esse projeto?

Anita – Dada a insistência de muitos companheiros e amigos, estou tentando produzir um livro com as minhas memórias, o que, em certa medida, se justifica pelo fato de durante a minha já longa trajetória de vida ter enfrentado as vicissitudes das perseguições movidas contra meu pai e nossa família, assim como ter eu mesma participado ativamente da vida de Prestes e do movimento comunista. Atravessei momentos históricos conturbados no Brasil e fui forçada a passar longos períodos no exílio. Fui processada e condenada pelos tribunais militares da ditadura brasileira instalada em 1964, tive os direitos políticos cassados, fui anistiada e acompanhei meu pai nos embates internos do PCB, partido do qual cheguei a ser dirigente e do qual me afastei junto com Prestes. Minha memória guarda o registro de múltiplos acontecimentos inéditos e fatos pouco conhecidos ou falsificados pelos meios de comunicação a serviço dos interesses dos donos do poder. Imagino que a escrita de minhas memórias poderá constituir um complemento válido à biografia política de Luiz Carlos Prestes, que publiquei sob o título Luiz Carlos Prestes – um comunista brasileiro. Por enquanto, não sei quanto tempo vai levar a elaboração desse trabalho.

A AUTORA

Anita Leocadia Prestes nasceu em 27 de novembro de 1936 na prisão de mulheres de Barnimstrasse, em Berlim, na Alemanha nazista. Filha dos revolucionários comunistas Luiz Carlos Prestes, brasileiro, e Olga Benario Prestes, alemã, foi afastada da mãe aos 14 meses de idade. Antes de vir para o Brasil, em outubro de 1945, viveu exilada na França e no México, com a avó paterna, Leocadia Prestes, e a tia, Lygia. Em 1964, graduou-se em Química Industrial pela Escola Nacional de Química da antiga Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 1966, obteve o título de mestre em Química Orgânica. Devido à atuação clandestina nas fileiras do Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi perseguida pelo regime militar instalado no país a partir de 1964, sendo obrigada a exilar-se, no início de 1973, na extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Julgada à revelia em julho de 1973, foi condenada à pena de quatro anos e seis meses pelo Conselho Permanente de Justiça para o Exército brasileiro. Em dezembro de 1975, Anita Prestes recebeu o título de doutora em Economia e Filosofia pelo Instituto de Ciências Sociais de Moscou. Em setembro de 1979, com base na primeira Lei de Anistia no Brasil, a Justiça brasileira extinguiu a sentença que a condenou à prisão. Em seguida, Anita voltou ao Brasil. Desde 1958, até o falecimento de Prestes, em 1990, atuou politicamente ao lado do pai tornando-se sua assessora. Autora de vasta obra sobre a atuação política de Prestes e a história do comunismo no Brasil, é doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, professora do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes.

Ilustração: Editora Boitempo/Divulgação

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