Os ventos do leste movem moinhos:
o impulso revolucionário de 1917 na criação do PCB
por Rodrigo Lima*
A força do movimento pela revolução mundial estava na forma comunista de organização, o “novo tipo de partido” de Lenin, uma formidável inovação de engenharia social do século 20, comparável à invenção das ordens monásticas cristãs e outras na Idade Média. Dava até mesmo a organizações pequenas uma eficácia desproporcional, porque o partido podia contar com extraordinária dedicação e auto-sacrifício de seus membros, disciplina e coesão maior que a de militares, e uma total concentração na execução de suas decisões a todo custo. Isso impressionava profundamente até mesmo os observadores hostis.
(Hobsbawn – Era dos extremos: o breve século XX 1914/1991)
A Revolução de Outubro de 1917 e a consequente criação da URSS como o primeiro Estado socialista na história da humanidade abriram um novo e importante ciclo de lutas e transformações econômicas, políticas e sociais protagonizadas pela classe trabalhadora em todo o mundo. Há 100 anos os/as trabalhadores/as russos/as ousaram “tomar o céu de assalto” e materializaram a revolução socialista, cuja elaboração teórica havia sido traçada durante o século XIX a partir das formulações de Karl Marx e Friedrich Engels e esboçada pelo movimento operário europeu, principalmente através da experiência da Comuna de Paris (1871), que teve curta duração.
Se os Soviets – ou Conselhos – de operários, camponeses e soldados, consolidaram o espaço fundamental da democracia operária e da organização da classe trabalhadora russa solidificando as bases da Revolução, foi o Partido Bolchevique – ou Comunista – quem cumpriu o papel de organizador das massas rebeldes, colocando a luta de classes no centro do debate, a partir de uma rica elaboração política baseada no marxismo e de um tipo de organização sustentada na concepção leninista de um partido classista, orientado para o enfrentamento contra o capital e estabelecido como vanguarda da classe tralhadora em movimento. Combinando, de forma dialética, uma profunda democracia interna com a unidade de ação e a disciplina partidária, bases do centralismo-democrático.
O sopro revolucionário que acalentou corações e mentes por todo o mundo, não traduziu-se apenas no desejo do avanço dos povos rumo ao socialismo. A Revolução de 1917, proporcionou uma ferramenta de elaboração política, organização e luta, que difundiu-se de forma extremamente rápida por todos os continentes, alterando substancialmente a luta de classes no cenário internacional e trazendo um novo protagonismo para a classe trabalhadora, em diferentes países. A criação de Partidos Comunistas, orientados pelos princípios do marxismo-leninismo foi como um rastro de pólvora que incendiou o mundo.
A influência da Revolução Russa na América Latina: a origem dos Partidos Comunistas
A recepção da Revolução de Outubro na América Latina consistiu em fenômeno político que ocorreu de forma rápida e consistente. No ciclo de dez anos pós-Revolução, os principais Partidos Comunistas latino-americanos já encontravam-se constituídos, organizados e com algum grau de inserção nas lutas sociais de seus respectivos países, o que representou um novo cenário para as forças revolucionárias da América Latina.
Segundo Fornet-Betancourt (1995) – em seu estudo sobre o desenvolvimento do marxismo na América Latina – os Partidos Comunistas (PC’s) surgiram no subcontinente a partir de duas grandes rupturas. A primeira, que originou a maior parte dos PC’s, foi a cisão que ocorreu no seio dos Partidos Socialistas, que pós-1917 passaram a conviver com o conflito entre tendências reformistas e revolucionárias, estas orientadas pelos princípios da Revolução de Outubro. Os setores revolucionários romperam com o reformismo e deram origem aos PC’s na Argentina, no Chile e no Uruguai. A segunda ruptura ocorreu no movimento anarquista, que havia conquistado grande profusão junto à classe trabalhadora em alguns países latino-americanos. Setores do movimento anarquista migraram para o bolchevismo e deram origem a criação dos PC’s em países como o Brasil e o México.
Entre 1918 e 1930 ocorreu um importante ciclo de criação de Partidos Comunistas na América Latina. Na Argentina, em 1918, surgiu o Partido Internacional Socialista, o primeiro inspirado diretamente pelo bolchevismo, criado antes mesmo do surgimento da III Internacional. No México, em 1919, surgiu o primeiro Partido Comunista, com esta nomenclatura, no contexto latino-americano. Logo após ocorreu a seguinte sequência de surgimento dos PC’s: Uruguai (1921), Chile (1921), Brasil (1922), Guatemala (1923), El Salvador (1923), Nicarágua(1923), Cuba (1926), Equador (1928), Peru (1928) e Colômbia (1930).
A III Internacional Comunista (IC), criada em março de 1919, cumpriu um papel fundamental para que o processo de criação dos PC’s ocorresse de forma tão rápida. A questão da América Latina foi um tema de preocupação da IC. Já no ano de 1921, o Comintern lançou o documento “A revolução americana: conclamação à classe operária da América do Norte e do Sul”, no qual sinalizava a importância da unidade do proletariado e do campesinato e a necessidade da luta de caráter anticapitalista e anti-imperialista.
Em 1922, o IV Congresso da IC elaborou um documento denominado “Aos operários e camponeses da América do Sul”, que reforçava as orientações apresentadas o ano anterior. No ano de 1924, constitui-se em Buenos Aires o secretariado sul-americano da III Internacional, dando um maior grau de institucionalidade ao movimento comunista no continente. Do ponto de vista da elaboração teórica, política e organizativa, a publicação pelo secretariado sul-americano da IC, da revista La correspondencia Sudamericana, compôs um elemento importante na consolidação dos PC’s na região.
Com a realização do VI Congresso da IC, em 1928, o debate sobre a revolução na América Latina ganhou relevância, pois neste evento foi debatido e tratado de forma detalhada a situação dos países latino-americanos, que passaam a ser incluídos pelo Comintern na estratégia da revolução socialista mundial.
Outros dois eventos foram importantes para a compreensão da relação da IC com os PC’s latino-americanos, no ciclo fundacional do movimento comunista na região. Ambos ocorreram em 1929. O primeiro foi a realização, em Montevidéu, do Congresso Constituinte da Confederación Sindical Latino Americana (CSLA) que permitiu a unificação de importantes setores do movimento sindical ao movimento comunista, representando a primeira organização de composição operária dirigida por sindicatos comunistas, na América Latina. O segundo evento foi a realização, em Buenos Aires, da Primera Conferencia Comunista Latinoamericana, da qual participaram delegados de 15 países (inclusive do Brasil), cujas principais pautas de debates giravam em torno de questões como: organização e estratégia, atuação sindical, questão agrária, questão racial e sobre o trabalho do Comintern na região.
Pouco mais de dez anos pós-1917, os revolucionários latino-americanos, a partir de um imenso esforço organizativo buscavam seguir o caminho trilhado pela classe operária russa. Inspirados pela perspectiva política de Lenin, em suas palavras: “Nós começamos a obra. Pouco importa saber quando, em que prazo e em que nação culminarão os proletários esta obra. O essencial é que se tenha rompido o elo, que se tenha aberto o caminho, que se tenha indicado a direção”.
O PCB e o seu ciclo fundacional (1922-1930)
O Brasil também foi atingido em cheio pelos ventos revolucionários que sopravam da Revolução de Outubro. Segundo Leandro Konder (1988:117): “A revolução russa de novembro de 1917, com a tomada do poder pelo partido bolchevista conduzido por Lenin, teve definitiva repercussão no Brasil; e isto de tal modo, que se pode dizer que com ela se inicia um novo período na difusão do pensamento de Marx entre nós.”
A partir de 1917, não só a difusão do pensamento de Marx projetou-se incrivelmente no Brasil, como também abriu-se um novo ciclo da organização e atuação da classe trabalhadora no cenário político nacional. A criação do PCB em 25 de março de 1922 é um os elementos fundamentais para compreender essa renovação.
Hegemonizado pelas correntes anarco-sindicalistas, o emergente movimento sindical e operário brasileiro das primeiras décadas do século XX, viveu uma ruptura drástica a partir da repercussão da vitória comunista na Rússia. O período pós-1917 vai ser marcado pela cisão e pelo embate no seio do movimento anarquista brasileiro. O conflito entre anarquistas e comunistas se expressou nos debates entre figuras como José Oiticica, pelo primeiro campo, e por Octávio Brandão e Astrojildo Pereira, pelo segundo.
O processo de ascensão das lutas operárias no país, que tiveram como grande momento a Greve Geral de julho de 1917 e os impactos da Revolução combinaram-se e impulsionaram a organização dos comunistas no Brasil. Em 1918, no ato do dia 1° de Maio, realizado na cidade do Rio de Janeiro, então capital da República, o operariado já fazia referências e prestavam solidariedade a Revolução Russa.
Entre os anos de 1918 e 1921, diversos coletivos referenciados no bolchevismo, surgiram em diversas regiões do país. Sendo que o Grupo Comunista do Rio de Janeiro, criado em 1921 e liderado por Astrojildo Pereira, foi o principal embrião para o surgimento do PCB. Março de 1922 representou a culminação desse acúmulo político e organizacional que se gestava no movimento operário brasileiro. A criação do PCB conseguiu unificar grande parte dos grupos e coletivos comunistas até então estabelecidos no país, dando uma direção unitária e nacional para o movimento.
O PCB nascia umbilicalmente ligado a Revolução Russa, ao se propor como uma Seção Internacional da III Internacional Comunista, e tendo como um de seus fundadores, Abílio de Nequete, integrante do Bureau da IC para a América Latina, que possuía ligações com o já criado Partido Comunista do Uruguai.
Nos anos subsequentes a sua criação o PCB estabeleceu as bases que o converteram em uma organização fundamental para as lutas do operariado brasileiro. Durante a década de 1920 o PCB passou por um ciclo organizativo dinâmico e criativo. Os comunistas brasileiros tiveram diante de si o desafio de criar um partido político de novo tipo, adaptando o modelo de organização leninista a realidade brasileira, sob condições adversas de repressão e perseguição ao movimento operário capitaneado pelos governos da República Oligárquica.
Os fundadores foram bem sucedidos em sua tarefa histórica. Em 1924, tiveram a incorporação do partido aceita na III Internacional, depois da frustrada tentativa de Bernardo Canellas, que durante o IV Congresso da IC, em 1922, atuou como representante do PCB , tendo como missão a inclusão do partido na Internacional. Devido suas posições confusas, que apresentavam elementos do reformismo e da ideologia anarquista, a inclusão não foi aceita naquele momento.
Entre 1922 e 1929, o PCB realizou três congressos, refletindo uma intensa dinâmica de debate político interno e de busca pela consolidação do partido. Em 1925 o PCB realizou seu II Congresso, onde colocava a necessidade de ampliar a atuação no movimento sindical, e intensificar a disputa contra os anarquistas e reformistas no interior do movimento. No mesmo ano foi criado e passou a circular o jornal A Classe Operária, importante mecanismo de agitação e propaganda do partido junto às massas.
Em 1927, o PCB criou duas estruturas políticas que o fazem aproximar e ampliar sua inserção na classe trabalhadora brasileira. Em janeiro, foi lançado o Bloco Operário e Camponês (BOC) uma experiência de frente eleitoral liderada pelos comunistas, que teve curta duração, mas que marcou a história como a primeira participação eleitoral da classe operária brasileira. De curta duração (o BOC durou até 1930) a experiência eleitoral teve como um dos seus principais momentos a candidatura de Minervino de Oliveira, primeiro candidato negro e operário à Presidência da República.
O dia 1º de agosto de 1927, marcou a fundação da União da Juventude Comunista(UJC), uma organização voltada para a juventude proletária brasileira e que foi incorporada a Internacional da Juventude Comunista no ano seguinte.
Os reflexos dos conflitos e embates que ocorriam no movimento comunista internacional, também atingiram o PCB, em seu ciclo fundacional. No ano de 1928, o embate entre Stalin e Trotsky sobre os rumos da Revolução Russa refletiu-se no Brasil. A rebelião da célula 13 do PCB, no Rio de Janeiro, liderada por João da Costa Pimenta e Hilcar Leite, culminou numa cisão partidária que representou o surgimento do trotskismo no Brasil (Coggiola, 2003).
Do ponto de vista da elaboração teórica, durante os anos 1920 ocorreram dois fatos importantes que contribuíram na afirmação e difusão do comunismo no Brasil. Em 1923, Octávio Brandão (um dos fundadores do PCB), realizou a primeira tradução brasileira do Manifesto do Partido Comunista, obra de Marx e Engels, o que representou um marco na difusão do pensamento marxista. O mesmo Brandão, escreveu em 1924 o clássico Agrarismo e Industrialismo, que foi um estudo pioneiro sobre a realidade brasileira, a partir de uma elaboração marxista.
Também foi na década de 1920 que o PCB forjou sua estratégia e tática para a revolução brasileira. Tal elaboração, desenvolveu-se a partir das resoluções dos congressos da IC, realizados em Moscou, e que marcaram profundamente a elaboração da linha política do PCB. Segundo Mazzeo (2003), as teses da IC, a partir do seu V Congresso (1924), consolidaram a hegemonia de um marxismo reducionista e arquetípico, que foi transposto de forma mecânica e reducionista para a análise do capitalismo brasileiro. O etapismo (que visava a revolução por etapas, focando primeiramente na etapa democrático-burguesa, prévia a revolução socialista) sustentava-se na teoria do feudalismo, que enfatizava a permanência da existência de relações feudais, a partir de um enfoque que priorizava os aspectos jurídico-políticos e não o aspecto concreto da realidade latino-americana e brasileira.
O sopro revolucionário de 1917, atingiu o mundo de forma irreversível. No Brasil, a criação do PCB foi um marco na organização e na formulação política da classe trabalhadora brasileira. Em um curto período histórico o comunismo passou de uma corrente minoritária e praticamente desconhecida do operariado, para o status de grande referencial político e organizacional da classe trabalhadora. No final do anos 1920, o PCB já havia conquistado a hegemonia junto às massas operárias.
Em 1930 o partido já estava consolidado. As mudanças na conjuntura nacional, com o fim da República Velha e no contexto internacional com o isolamento da União Soviética e o ascenso do fascismo na Europa, colocaram o movimento comunista internacional sob novos desafios. A ascensão do obreirismo como tática de atuação do PCB em 1930, que teve como um dos seus efeitos o afastamento de boa parte da antiga direção e a destituição de Astrojildo Pereira (um dos fundadores do PCB) da secretaria-geral do partido, em novembro daquele ano, estabeleceu um marco simbólico do fim do ciclo fundacional do PCB.
Referências Bibliográficas
COGGIOLA, Osvaldo. O trotskismo no Brasil (1928-64). MAZZEO, Antônio Carlos; LAGOA, Maria Izabel (orgs.) Corações vermelhos: os comunistas brasileiros no século XX. São Paulo: Cortez, 2003.
FORNET-BETANCOURT, Raúl. O marxismo na América Latina. São Leopoldo: Unisinos, 1995.
HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: breve século XX 1914/1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
KONDER, Leandro. A derrota da dialética: a recepção das ideias de Marx no Brasil, até o começo dos anos 1930. Rio de Janeiro: Campus, 1988.
MAZZEO, Antônio Carlos. O Partido Comunista na raiz da teoria da via colonial do desenvolvimento do capitalismo. In: MAZZEO, Antônio Carlos; LAGOA, Maria Izabel (orgs.) Corações vermelhos: os comunistas brasileiros no século XX. São Paulo: Cortez, 2003.
PACHECO, Eliezer. O Partido Comunista Brasileiro (1922-1964). São Paulo: Alfa-Omega, 1984.
https://blogdorodrigolima.wordpress.com/2017/10/13/