Marielle, uma voz
“Hoje dizemos Marielle. Uma voz coletiva que tem nome, que se ocupou em lutar contra a noite, que carrega no seu corpo negro todas as mulheres assassinadas, todos os corpos e todo o sangue, todos os nomes expropriados de seus donos, todos os sonhos, toda a vida que a morte carregou para o oco da noite. Que diz alto os nomes dos assassinos e os acusa. A voz tem um nome, Marielle. E Marielle foi morta outra vez. Mas esta morte tem um nome, porque carregava muitas vozes, porque nunca estava sozinha nunca será esquecida, porque através dela é que lembramos dos esquecidos.”
Por Mauro Luis Iasi.
“Quando é abatido o que não lutou só,
o inimigo
ainda não venceu.”– BERTOLD BRECHT.
A chuva caia torrencialmente sobre a cidade. Iansã mandava seus raios e os clarões tentavam negar a noite que insiste em suas sombras. Os corpos não se viam, a pele negra se confunde com a noite, os rios de sangue fluem para a vala, de todas as feridas abertas, dos navios descarregando sua carga humana acorrentada, no verde dos canaviais, nas favelas, nas ruelas da velha cidade, das flechas de São Sebastião.
O sangue, ferro vermelho, rio que tanto carrega a vida como se esvai para fora dela, também dá cor as bandeiras que a defende. Na noite as cores se amam no negro, o vermelho, o lilás o preto. Iansã manda seus raios.
Outro corpo cairá. Na noite não saberemos seu nome, dos sonhos que carregava, dos braços que o esperavam no vazio da volta. No porão do navio negreiro se contará a carga faltante. No mar escuro o esquecimento fará parte da memória dos peixes. São muitos e diários, aqueles que partem sem deixar seu nome para que gritemos, para que nossas lágrimas de dor e raiva alcancem seu corpo, para que o abutre do esquecimento não dilacere sua memória.
Os índios e as montanhas guardarão suas almas, das senzalas se ouvirão cantos incompreensíveis, o bater dos pés no chão para que a terra acorde de seu pesadelo de morte. O ar da noite gelará por um instante e cada gota de chuva brilhará como uma estrela.
Nunca saberemos todos os nomes. Algumas vozes, no entanto, carregam a magia de falar por todas as vozes esquecidas, sei lá por que razão, rolam de sua face lágrimas de outras gentes, sentindo em seu corpo o açoite e o tiro, a dor e a falta. A voz da memória é que fala nelas e com sua força rompe o tecido do tempo e a pretensão da noite, revolve a terra numa agricultura reversa, desplantando o oculto. Nessas vozes cantam cânticos ancestrais, contam-se histórias de nossos avós, que lançam faíscas de luz na noite do esquecimento. Iansã manda seus raios.
Tal magia se adquire ao se comer o mesmo pão do sofrimento, quando se vive na noite ao lado dos explorados, quando se nasce onde não se pode viver, quando se vive ali onde a regra é morrer. É a voz de quem sobreviveu aos seus e levou suas almas costurados no vestido, no lenço preso na cabeça, na bandeira que leva com seus mortos para marchar nas avenidas que levam nomes de seus assassinos.
São vozes que brotam do fundo da terra, das covas rasas, das valas e que se servem da boca de pessoas vivas, no sentido mais vivo da palavra viva. Dos lábios e línguas no prazer dos beijos, dos açoites de verdades que rasgam os véus escuros da noite que insiste. Iansã manda seus raios e o clarão mostra o que a noite oculta.
Por conta dessas vozes vivas sabemos dos outros que a noite esconde. Sua voz tem nome e corpo, mas sua estatura projeta algo muito além do portador da voz, porque foi buscar seu tamanho na memória dos índios e das montanhas, das senzalas e favelas, da força dos pés que acordam a terra. Por isso podemos dizer seu nome e ao dizê-lo acordar os mortos que carrega, devolvê-los aos braços que esperavam, ao caminho interrompido que trilhavam. Iansã nos ilumina com seus raios.
Hoje dizemos Marielle. Uma voz coletiva que tem nome, que se ocupou em lutar contra a noite, que carrega no seu corpo negro todas as mulheres assassinadas, todos os corpos e todo o sangue, todos os nomes expropriados de seus donos, todos os sonhos, toda a vida que a morte carregou para o oco da noite. Que diz alto os nomes dos assassinos e os acusa. Esta voz tem um nome e dizemos: Marielle. Iansã ilumina seu corpo com seus raios. A voz tem um nome, Marielle. E Marielle foi morta outra vez. No navio negreiro, no canavial, nas ruas estreitas do Rio de Janeiro, na favela, na fábrica, em casa, agora no carro. Mas esta morte tem um nome, porque carregava muitas vozes, porque nunca estava sozinha nunca será esquecida, porque através dela é que lembramos dos esquecidos. Seu nome é Marielle, seu nome é mulher, seu nome é negra, seu nome é justiça, seu nome é luta, seu nome é socialista, seu nome é Marielle.
Iansã chora tempestades.
Cada gota de chuva lava nossa cidade, cada raio a ilumina. Cada gota de sangue que cai na terra renasce em nossa luta… que nunca termina… nunca… nunca termina.
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