O Partido do Trabalho da Bélgica (PTB) sacode a política belga
OLHAR COMUNISTA – 27/03/2018
Já há alguns meses, a cena política belga parece ferver com o crescimento recente do PTB, de tradição Marxista-Leninista, que quadruplicou o número de militantes nos último anos, elegeu dois deputados para o parlamento federal nas últimas eleições – além de dois na Valônia e quatro em Bruxelas – e tem uma presença forte nos movimentos populares e sindicais. As previsões apontam para um resultado, nas próximas eleições, entre 15 e 19%, na região da Valônia, ameaçando a hegemonia do Partido Socialista. Em entrevista à revista francesa Le Vent Se Lève, David Pestieau, vice-presidente do PTB, fala sobre o crescimento do Partido, o sucesso eleitoral recente e as perspectivas para as próximas eleições comunais e federais no país, em 2018 e 2019.
– O crescimento é o resultado de um trabalho de longo prazo iniciado em 2008, quando o PTB muda a estratégia de aproximação com as massas, com as palavras de ordem “As pessoas em primeiro lugar, não o lucro”, diz o vice-presidente.
O Partido vem sendo criticado por, supostamente, ter abandonado a análise de classes para construir o que é conhecido como “nova lateralidade”. Indagado sobre essa questão, Pestieau responde:
– Nós não abandonamos a análise de classes: quando você lê os documentos de nosso Congresso de Renovação, em 2008, e do Congresso de Solidariedade, de 2015, a classe dos trabalhadores está no centro do debate, é para nós a classe de todas as pessoas que vendem sua força de trabalho para viver. Na Bélgica, há 4 milhões de trabalhadores. Claro que a situação não é a mesma de 50 anos atrás, mas, em alguns aspectos, talvez surpreendentemente para alguns, a classe de trabalhadores é ainda maior do que antes, mais diversificada e dispersa. Nós já não estamos enfrentando apenas as grandes empresas do passado. Hoje, estas são grandes cadeias de produção com subcontratados e subcontratantes, daí a interdependência entre as empresas e um maior desmembramento de coletivos de trabalho. Basicamente, a contradição entre capital e trabalho está lá, mas é menos visível, menos concentrada.
Deste ponto de vista, nós nos definimos como um partido marxista. A questão colocada para a esquerda radical é como estimular a consciência de classe dos trabalhadores que estão dispersos e inseguros. Nós não concordamos com a ideia de que as classes desapareceriam em um conjunto chamado “o povo”. Por outro lado, concordamos que a classe trabalhadora não está ciente de que é uma classe ou que é capaz de mudar a sociedade. É, portanto, uma questão de reconquista, de fazer um trabalho de conscientização, de mobilização, de organização desta classe. Devemos vir com palavras que nos tragam de volta a essa contradição. Quando escolhemos o slogan “As pessoas primeiro, não o lucro”, colocamos as “pessoas” no centro e denunciamos o lucro. Nosso trabalho tem sido o de combinar uma comunicação que permita atingir a todos, e por isso não é uma linguagem de iniciados. Mas não queremos que as pessoas se limitem ao slogan: queremos que as pessoas pensem, para ir mais além. Nós estamos no processo de construção de um partido marxista moderno, que está tentando ver como hoje, no século 21, em um período em que as forças de esquerda estão na defensiva, é possível retomar a luta para conquistar novamente a hegemonia cultural sobre um número de conceitos, palavras, consciências.
O vice presidente segue em sua fala:
– Eu não sei se esse método é específico, mas é pelo menos um método desenvolvido a partir de nossa própria prática. Descobrimos que não éramos ouvidos o suficiente, apesar do fato de termos apresentado uma análise profunda da crise do sistema capitalista. Iniciamos uma reflexão sobre este assunto em 2008. Em particular, estudamos como realizar ações sociais capazes de envolver milhares de pessoas e como levar a nossa mensagem. Anteriormente, reuníamos um conjunto de ideias, conceitos, que lançamos para as pessoas, em vez de tentar apresentar essas ideias na medida em que elas podem ser digeridas. Nós temos uma mensagem, nós temos um fundo, temos uma análise global; e a cada passo, em cada período, tentamos ver o que podemos colocar na agenda política, quais os temas que impulsionarão o debate em um contexto particular.
Vejam, por exemplo, a questão da tributação das empresas e o fato de as multinacionais pagarem pouco imposto. Procuramos trazer o tema concreto em vez de generalizá-lo ou fazer grandes conceitos. Denunciamos, durante o fechamento de uma fábrica em Liège – a Arcelor-Mittal -, que a empresa havia pago apenas 476 euros em impostos no ano anterior. Existe então um confronto entre a injustiça das demissões em massa e o fato de uma grande multinacional pagar menos impostos do que cada um dos seus trabalhadores que são demitidos. A ideia não é fazer um curso de economia marxista, mas desencadear uma reflexão entre dezenas de milhares de trabalhadores. Também usamos muito tempo para consultar as pessoas, para descobrir com o que elas estão preocupadas. Se você fala sobre coisas que não despertam interesse, você pode falar o quanto quiser, não vai funcionar.
Perguntado sobre o sistema de reembolso adotado para o pagamento dos funcionários e parlamentares do PTB, o dirigente explicou que foi colocado em prática um sistema pelo qual todos são pagos ao nível do salário médio belga. Para David Pestieau, essa é visão do PTB e a sua ideologia. Se você ganha 6000 ou 10.000 euros por mês, que é o salário de um membro do parlamento ou um ministro, você perde a conexão com a realidade. Essa ruptura entre o sistema político e a população é muito grande. É necessário viver em bairros da classe operária, para ter o mesmo salário e para poder sentir as mesmas coisas. Todos os nossos líderes vivem com salário médio, o que também permite que o partido tenha alguma independência financeira, pois o excedente é devolvido aos cofres do partido. Nós não queremos ser totalmente dependentes das dotações públicas que recebemos há três anos.
Falando sobre o envolvimento do PTB nas lutas sociais, Pestieau diz que essas são “o DNA” do partido, e que, para uma grande mudança na sociedade, deve ser desenvolvido um importante equilíbrio de poder.
– São as pessoas, são as massas que fazem a história, disse Marx, lembra Pestieau, que prossegue:
– Através de movimentos sociais importantes, podemos provocar profundas mudanças e revoluções na história. Temos que investir em trabalho social, seja no nível sindical, no nível de associações, bairros, etc. Os trabalhadores, os jovens, os diversos atores do meio popular, devem aproveitar a coisa pública, a coisa política. Eles devem ser atores da política e não consumidores de política. Esta é uma visão muito diferente da visão tradicional de representação que é limitada a eleições a cada 4, 5 ou 6 anos, sem qualquer outra forma de participação democrática, onde se delega o poder aos representantes profissionais que, em seguida, o monopolizam e, na realidade, muitas vezes defendem outras aspirações distintas daquelas dos que os elegeram.
O segundo elemento é que se pensa que o desenvolvimento das lutas sociais também está em conjunção com a luta de ideias. Estamos investindo na Manifiesta, que é uma festa que criamos, a exemplo dos festivais mantidos por outros partidos comunistas do mundo, como a Festa do Avante em Portugal, que conseguiram fazer a conjunção da cultura popular com o debate político. O objetivo é criar uma contra-hegemonia cultural, seja na luta contra a injustiça social, contra o racismo, pela paz, o clima, direitos democráticos, os diferentes temas que estamos tentando trabalhar.
O dirigente falou também sobre o Movimento “Medicina para as pessoas”:
– Na Bélgica nos confrontamos com um remédio liberal: as pessoas iam ao médico, muitas vezes pagavam muito dinheiro e nem sempre eram bem tratadas. Quanto mais pacientes os médicos atendiam, mais dinheiro recebiam. Foi feita uma tentativa de botar em prática outro modelo, com médicos que foram chamados de médicos do povo. A primeira casa médica foi lançada em 1971 pelo PTB. Agora existem 11 casas localizadas em bairros populares. São médicos que decidiram fazer uma medicina social. Outras casas médicas também surgiram com outras pessoas que não estão no PTB, mas que têm princípios semelhantes. Hoje, existe um sistema que atende 250.000 pacientes, pelo qual se pode receber tratamento gratuito. Quanto aos nossos 11 lares médicos, aproximadamente 25.000 pacientes são tratados por médicos que são membros do PTB.
Sobre a questão do poder, Pestieau entende que os governos, em geral, não refletem o poder real no capitalismo, e que o poder estatal é um todo onde há governo, mas há também a massa extremamente grande de lobbies de multinacionais que estão direta ou indiretamente presentes nos gabinetes ministeriais. Na Bélgica, vemos a interferência do poder financeiro por Alexia Bertrand, chefe de gabinete do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Ela é filha de um dos maiores milionários da Bélgica. Temos representantes da subsidiária GDF-Suez na Bélgica que se sentam no gabinete do Ministro da Energia. Portanto, há laços muito profundos entre as multinacionais e o poder político.
Outro aspecto é que há um número de funcionários graduados que representam os interesses das organizações tradicionais, e toda uma série de serviços secretos, policiais superiores, militares que também defendem os interesses do sistema. O atual jogo eleitoral nos coloca em situações nas quais podemos estar no governo sem poder exercer o poder real. Isso é muito importante porque determina nossa estratégia como uma força de esquerda. A esquerda radical na Europa viveu essa experiência com a Grécia. Nós tínhamos um governo do Syriza que foi eleito com quase uma maioria absoluta em assentos, com um programa anti-austeridade relativamente radical, mas que não poderia colocar em prática sem confrontar os dogmas neoliberais. O resultado prático é que eles tinham o governo, mas não o poder. Nos primeiros dias deste governo, todas as decisões eram conhecidas pelo governo de Angela Merkel e pela Comissão Europeia. Teriam que sair da União Europeia ou aceitar os ditames e as inclinações de Angela Merkel, que foi o que fizeram, aplicando o programa oposto ao programa pelo qual foram eleitos. É a história de 2015.
Só podemos ver a realidade se quisermos ter uma estratégia que aborde as questões do nosso tempo, isto é, a grande crise do capitalismo, uma crise política, uma crise climática, uma crise democrática, uma crise das relações internacionais. Teremos que questionar o poder como um todo, ter um contrapoder forte, que não é simplesmente ter um bom resultado nas eleições, é também ter um movimento na sociedade e uma organização, uma capacidade de influenciar uma hegemonia ideológica, a fim de ter posições fortes nas ruas se houver chantagem econômica, sendo capazes de recorrer a meios alternativos aos meios de comunicação privados pertencentes ao bilionário.
Na Bélgica há um sistema de governo de coalizão e não vemos nenhuma mudança nas outras forças que afirmam estar à esquerda no momento. Temos um partido social-democrata que tem dominado o cenário político há décadas e um partido ecologista, que estão presos aos grilhões que seguiram por 30 anos. Há dois partidos socialistas na Bélgica, um partido de língua holandesa e outro de língua francesa. O de língua francesa ainda é bastante influente. Nas últimas eleições, alcançou 32% dos votos no sul do país, mas, como todos os partidos social-democratas de toda a Europa, sofre uma queda desta influência. Isso está ligado ao fato de que a social democracia fez sucesso na conjunção de dois fenômenos desde 1945: um movimento trabalhista muito importante que foi capaz de obter ganhos sociais, e o fato de que a burguesia europeia foi confrontada com uma outra realidade, o socialismo na URSS e no Oriente, que a obrigou a fazer concessões para evitar que a classe trabalhadora se voltasse para esse outro sistema. Enzo Traverso disse que, de certo modo, a social-democracia é um subproduto da Revolução de Outubro.
Nos anos 1990, a mudança para o liberalismo social permitiu que os partidos social-democratas mudassem por algum tempo, com a chamada política “menos malvada” (“sem nós, seria pior”). Então, com a crise de 2008, vimos que as pessoas procuraram a sua salvação nos partidos tradicionais (na França, Sarkozy, depois Hollande) que não deixaram as classes populares fora da crise e vemos hoje, há algum tempo, uma grande crise política dessas forças políticas tradicionais. Por isso, era lógico que esse fenômeno também afetasse a Bélgica.
Em seu último congresso, o PS reagiu claramente à presença do PTB. Ele nunca foi seriamente voltado para a sua esquerda, sempre teve uma base eleitoral de 25 a 40% dos votos. Hoje, parte dessa base é orientada para o PTB. O PS retoma ou até mesmo copia algumas ideias do PTB, mas, basicamente, não mudou seu foco de adaptação ao sistema atual. Eles dizem não quando perguntados se vão lutar contra as políticas da União Europeia, como na liberalização do transporte ferroviário de passageiros, prevista para 2023, ou seja, amanhã, e na não ação contra grandes empresas que não fazem nada sério sobre o aquecimento global.
Indagado quanto à dificuldade de haver na Bélgica três línguas oficiais, o holandês, o alemão e o francês, Pestieau responde que o PTB é o único partido nacional na Bélgica:
– Existe a mesma situação em outro país na Europa, a Suíça. A divisão linguística na Bélgica serve os interesses das classes proprietárias. possuidoras. Todos os grandes industriais falam todas as línguas, mas obviamente lhes interessa aplicar a divisão para melhor governar quando se dirigem às classes populares.
Pestieau descreve também o movimento nacionalista, que cresceu ao longo dos anos e desenvolveu-se em dois partidos: um partido “tradicional” e um movimento nacionalista de extrema-direita. A partir dos anos 1980, esse movimento nacionalista de extrema direita, o Vlaams Belang, foi um dos precursores de um fenômeno que tem sido visto em outros lugares da Europa, em que parte do voto popular se afastou dos partidos social-democratas para ir para a extrema direita, como em Flandres, onde o voto anti-establishment e o protesto contra as elites são capturados pela extrema-direita. Então, há uma batalha para reconquistar o voto popular contra partidos de extrema direita. Na Valônia é mais fácil trabalhar porque a extrema direita é mais fraca e dividida.
Para o dirigente comunista, o fenômeno do medo do vermelho que hoje se alastra na mídia belga deriva-se de dois fatores que se sobrepõem: o tradicional medo da imprensa de direita, que exagera de modo a caricaturar os comunistas para a luta política, divulgando todos os possíveis crimes imagináveis do socialismo real etc. Em segundo lugar, se você luta e questiona os dogmas neoliberais, você será atacado. Todos os líderes de greves e os movimentos sociais são, em um momento ou outro, difamados e caricaturados. Eu acho que um medo real do PTB está agora se manifestando além da caricatura usual. Tivemos o chefe dos patrões da Valônia que disse que era imperativo que o PTB não governasse ou influenciasse decisões políticas. O PTB está subindo e poderia influenciar outros partidos políticos.