Os comunistas e as revoltas populares na América Latina

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Os países da América Latina vêm de uma história recente que inclui períodos de ditaduras – como nos casos do Brasil, Chile, Uruguai, Argentina e Bolívia – , de intervenções políticas, econômicas e mesmo militares dos Estados Unidos, na defesa dos seus interesses na região. Em sua grande maioria, mesmo com estruturas econômicas e sociais e trajetórias políticas diferentes, os países latino-americanos mantêm uma relação de integração subalterna ao sistema financeiro internacional, ao mercado mundial, marcada por exportações de produtos agropecuários e pela presença predominante, em todos os países, de empresas multinacionais, tendo havido alguns períodos em que determinados governos tiveram posturas políticas e econômicas mais independentes ou autônomas, ainda que nos marcos do capitalismo.

Nos últimos anos, nações como Argentina, Chile e Colômbia tiveram governos de corte autoritário (e fascista, no caso da Colômbia), que impuseram políticas econômicas ultraliberais, com a privatização de empresas públicas, a redução dos gastos em áreas sociais, a retirada de direitos trabalhistas e sociais e outras ações. Em contrapartida, há em curso, atualmente, um processo de intensa mobilização popular e também de mudanças políticas contra os efeitos das políticas liberais ou ultraliberais e também contra as estruturas políticas.

Observa-se hoje, também, na região, um cenário complexo de ameaças a experiências reformistas-progressistas estabelecidas no início do século, com destaque para as da Venezuela e a Bolívia. Nestes países os avanços e conquistas populares atingiram patamares mais elevados que no restante dos países capitalistas do continente. Na Venezuela, ao longo dos governos Chávez e Maduro, falam por si os números referentes às ações de oferta de novas moradias populares – dois milhões e setecentas mil unidades habitacionais, atendendo a mais de onze milhões de pessoas em uma população de trinta e dois milhões –, às milhares de vagas criadas nas universidades públicas, às inúmeras e fortes estruturas de proteção social, com instrumentos de participação direta da população, entre muitas outras ações. O país, no entanto, não superou a condição de monoexportador (petróleo) e multi-importador (importa quase tudo, inclusive a metade dos alimentos que consome), há problemas e contradições na formação do governo, na condução das empresas públicas e no principal partido de apoio ao governo, o PSUV.

Na Bolívia, marcaram os governos de Evo Morales a construção do Estado boliviano plurinacional, com a conquista de cidadania plena pelas comunidades e nações indígenas, os avanços na saúde, educação e outros setores sociais, a desprivatização da água e a nacionalização de diversas empresas, com destaque para as que exploram as riquezas minerais, que haviam sido privatizadas. O crescimento econômico e a maior distribuição de renda foram marcantes, com forte impacto positivo junto à população, principalmente os setores mais pobres. No entanto, além da contraposição dos setores burgueses, há desgastes e insatisfações acumuladas ao longo dos governos de Evo, como no caso dos indígenas que moram em cidades.

Bolívia e Venezuela, mesmo mantendo a estrutura capitalista, afastaram-se da órbita econômica direta dos Estados Unidos e de sua influência política. Em grau menor, avanços importantes foram obtidos no Equador, nos governos de Rafael Correa, e na Argentina, nos governos Kirchner. No Uruguai, um país de economia agrária privada, após três governos da Frente Ampla, composta por partidos de esquerda, como o Partido Comunista do Uruguai e o Partido Socialista Uruguaio, e partidos de centro, em que houve conquistas sociais e políticas para os trabalhadores, como na oferta de empregos, na estrutura universal da previdência social, nos serviços públicos em geral, na Saúde, na Educação e nos direitos civis, a direita liberal voltou ao poder ao vencer as últimas eleições presidenciais. O desgaste acumulado pelos governos progressistas ao longo de três governos sucessivos, os limites do próprio processo reformista e a forte ingerência política externa – do Brasil, da Argentina e dos EUA, estão entre as causas da derrota (por uma pequena margem de votos) da Frente Ampla, que enfrentou uma forte aliança composta pelos setores conservadores, com a presença de elementos de extrema-direita.

Na Argentina, os efeitos da aplicação, pelo governo Macri, de um conjunto de políticas ultraliberais, que incluíram o corte de gastos com saúde, educação, previdência e outras áreas sociais, bem como a liberação da economia e outros “ajustes” em favor dos interesses dos monopólios e do imperialismo, levaram a uma situação de severo empobrecimento da população em geral e mesmo de desespero, que resultaram em grandes manifestações populares contra o governo, as quais reverteram em votos na chapa peronista Fernandez – Cristina Kirchner, de oposição à esquerda, sem pertencer ao campo da esquerda socialista. O novo governo Fernandez se propõe a reverter as características conservadoras, repressivas e autoritárias e os aspectos mais selvagens da política econômica do governo Macri como o desemprego. Haverá, certamente, mais espaço para as lutas organizadas dos trabalhadores e muda a correlação de forças no cenário latino-americano, contribuindo para fragilizar ainda mais a articulação regional, dirigida pelos EUA, contra a Venezuela e os demais processos progressistas da região. Em seu primeiro pronunciamento, o novo presidente argentino anunciou medidas populares, solidariedade à Venezuela e oposição ao golpe operado na Bolívia, isolando o governo Bolsonaro na região. Em seguida, Fernandez comunicou o aumento da taxação sobre a propriedade privada e as exportações agrícolas.

Um processo semelhante foi vivido pelo México, em que López Obrador – liderando uma coalizão progressista (não socialista, embora apoiada por setores socialistas) – , derrotou o governo liberal anterior e adotou algumas posturas e medidas antiliberais e anti-imperialistas, tendo apoiado a Venezuela de forma decisiva, no auge da recente ofensiva dos Estados Unidos e de setores da direita interna venezuelana contra o governo Maduro. Entretanto, por não ter como meta o combate ao capitalismo, incorre em ações antipopulares, como nos casos do apoio à política anti-imigração de Trump e da assinatura recente do tratado de livre comércio na região que substitui o NAFTA, o T-MEC, de fato um acordo interestatal imperialista que beneficia apenas os monopólios capitalistas, em prejuízo dos trabalhadores do Canadá, EUA e México.

Recrudesceram nos últimos tempos as ações imperialistas e dos segmentos de direita e ultradireita internos, em cada país, contra as experiências reformistas-progressistas, com destaque para os casos da Venezuela e da Bolívia. Na Venezuela a massiva mobilização popular derrotou as tentativas de desestabilização do governo Maduro, que incluíram manifestações de oposição nas ruas patrocinadas por Washington e mesmo ameaças de agressão militar contra o país, motivadas pela clara intenção dos EUA de voltar a controlar as reservas de petróleo e outras riquezas minerais venezuelanas e de pôr fim ao chamado processo bolivariano que trouxe importantes avanços democráticos e sociais para os trabalhadores daquele país, em que pesem suas muitas limitações e contradições internas. Ressalte-se a importância da solidariedade política e econômica prestada por Rússia e China, que em muito contribuiu para a superação da crise.

Na Bolívia, o golpe de Estado organizado pela burguesia de Santa Cruz de La Sierra e outras cidades, que foi claramente apoiado pelo imperialismo estadunidense, com colaboração de governos de ultradireita como o de Bolsonaro, explorou insatisfações existentes na população e desgastes dos governos de Evo. O objetivo principal é promover a total submissão do país aos interesses das grandes corporações, que desejam o controle absoluto sobre as riquezas naturais bolivianas, associado à intenção de impor forte derrota aos avanços sociais consolidados ao longo das duas últimas décadas, com destaque para as conquistas quanto ao reconhecimento e à representação política das nações indígenas. O golpe logrou impedir a posse de Evo Morales, que havia vencido as eleições presidenciais, mas enfrenta grande mobilização de trabalhadores e indígenas pela legalidade e em defesa dos ganhos sociais.

No Equador, a traição operada pelo presidente Lenin Moreno, que havia sido o vice de Rafael Correa, e se materializou na adoção de um programa liberal com aumento de impostos e outras medidas antipovo, foi enfrentada com grande mobilização popular, de indígenas e trabalhadores, com manifestações e greves, que conseguiram reverter algumas medidas e resgataram o protagonismo das massas no processo político. Na Nicarágua, o governo de Daniel Ortega, de corte reformista-progressista, conseguiu derrotar, com forte mobilização popular, as tentativas de desestabilização insufladas pelos EUA, que se aproveitaram de insatisfações resultantes do não enfrentamento aos interesses burgueses. Importantes mobilizações populares vêm ocorrendo, também, na Costa Rica e no Haiti. Em Porto Rico, onde um governador geral, representante direto do imperialismo, foi deposto pela mobilização popular.

Na Colômbia e no Chile, a eclosão de massivas manifestações de rua e greves manifesta a revolta com os resultados da aplicação, por sucessivos governos, de políticas econômicas e sociais ultraliberais, combinando-se com a insatisfação generalizada frente ao caráter autoritário e conservador dos governos atuais. No caso do Chile, e explosão social põe em xeque a herança da ditadura de Pinochet representada na Constituição atual. No caso colombiano, amplos setores sociais começam a se pôr em movimento contra a presença do paramilitarismo, a repressão generalizada e o não cumprimento dos acordos de paz firmados com as FARC. Se, na Colômbia, o movimento de massas mostra-se forte e crescente, no Chile, dado o grau mais elevado de organização presente, há a perspectiva de vitórias concretas na reconquista de direitos sociais, visando a reestatização da previdência social, cuja forma atual, privada, levou à miséria e ao desespero centenas de milhares de trabalhadores aposentados, e a convocação de uma Constituinte livre e soberana, desde que a mobilização nas ruas consiga se impor contra as tentativas de promoção de um “Acordo de Paz” por cima, articulado no Congresso pelos partidos da ordem, com reformas cosméticas na atual Constituição.

A natureza reformista-progressista (e não socialista) dessas experiências está entre as principais causas das dificuldades enfrentadas pelos respectivos governos, dado que não aprofundaram os enfrentamentos com o capital, não elevaram os patamares de organização popular no nível necessário para a superação do capitalismo. Não houve, também, no volume necessário, o trabalho político e ideológico para a construção contra-hegemônica da proposta socialista.

Aos comunistas cabe fazer a leitura crítica das experiências reformistas-progressistas e das mobilizações de massa na América Latina para delas extrair todas as lições, a fim de que suas ações favoreçam o caminho da construção revolucionária do Socialismo na América Latina. Os Partidos Comunistas desses países são, em geral, ainda pequenos, embora estejam em franco crescimento. As ideias socialistas e comunistas, presentes em todos os processos, não são ainda hegemônicas, mas estão de volta à pauta política. É preciso ter clareza dos limites das possibilidades de avanços em direitos sociais para os trabalhadores e setores populares sob o capitalismo, para que não se caia na armadilha da aceitação da tese de que é possível superar o capitalismo de forma gradual, e se supere o ciclo de governos cuja marca é a política de conciliação de classes. É preciso, finalmente, que todos os Partidos Comunistas da região estejam no centro dos processos de luta em curso, deixando clara sua formulação socialista e revolucionária, atraindo novos militantes, preparando-se para as novas possibilidades de mudanças de fundo que se apresentam e apontando para a pavimentação, desde já, de um caminho de ruptura revolucionária rumo ao Poder Popular e ao Socialismo em futuro não distante.

Secretaria de Relações Internacionais do Partido Comunista Brasileiro (PCB)