Decisiva batalha em defesa da água e do saneamento básico
Em meio à conjuntura de crise e de intensificação dos ataques dos governos aos direitos mais fundamentais, um desses ataques tem passado quase despercebido pela população, em que pese sua extrema gravidade: a Medida Provisória MP-868/2018, chamada de “novo marco legal” do saneamento básico (basicamente, o tratamento de água, esgoto e resíduos sólidos), que visa escancarar o setor para a entrada do capital privado com uma agressividade e profundidade jamais vistas, podendo levar no médio prazo ao aumento de tarifas, à piora nos serviços, à queda nos investimentos e à completa privatização do saneamento básico no Brasil.
Histórico do projeto
O dito novo marco do saneamento entrou em pauta inicialmente em junho de 2018, ainda durante o governo Temer, que publicou a então MP-844. Por conta da pressão de entidades do setor, somada às fragilidades internas do governo, esta MP acabou por vencer em novembro, sem ser ratificada pelo Congresso, deixando assim de ter efeito legal. Porém, em 28 de dezembro, num de seus últimos atos como presidente, Temer relançou esta MP com o mesmo conteúdo, apenas com o novo número de 868, deixando evidente a obsessão do governo com o tema. Três aspectos trazidos por esse projeto inicial saltam aos olhos: a obrigatoriedade da privatização dos sistemas municipais de saneamento que se demonstrarem lucrativos, quando da renovação dos contratos destes, o fim dos planos municipais de saneamento, que estabelecem metas de qualidade dos serviços prestados, e a remoção de entraves legais para permitir a privatização de companhias estaduais de saneamento. Em suma, objetiva-se o ganho fácil, sem absolutamente quaisquer contrapartidas em termos de qualidade do serviço prestado, o que só tende a piorar o deplorável cenário atual do saneamento básico no Brasil, em que somente metade da população tem acesso à coleta de esgoto [01] e o índice de perdas de água chega a 37%, beirando os 50% em certas regiões [02].
Momento decisivo
Com a chegada de 2019, a nova MP foi integralmente encampada pelo governo Bolsonaro, demonstrando o quanto a agenda do capital perpassa governos. De fato, alguns dados demonstram o porquê do afã do capital privado em tomar de assalto o setor de saneamento. Trata-se de um dos últimos ramos no mundo, e especialmente no Brasil, no qual o capital ainda não predomina. Em 2017, apenas 6% dos serviços de tratamento de água e esgoto dos municípios eram controlados por empresas privadas [03]. Isso num país que detém, sozinho, 12% das reservas de água doce do mundo [04], o que em uma conjuntura de crise ambiental e crescente escassez global, torna a água um bem cada vez mais precioso e alvo estratégico. Isso, somado à crise econômica, que intensifica a pressão em busca de novos espaços para despejar capitais excedentes e extrair mais-valia, faz do saneamento um dos alvos prioritários do capital privado. O pretexto das deficiências do atual sistema (aguçados pela omissão e incompetência de governantes, mas também pelo bem planejado processo de “criar dificuldades para se vender facilidades”), aliado à crise fiscal dos Estados, que compromete temporariamente os investimentos, completa as condições econômicas e políticas para a maior ofensiva de toda a história do capital sobre o setor de saneamento.
No início deste mês de maio, a questão da defesa do saneamento ganhou urgência extrema com a aprovação do texto da MP, com alterações, na Comissão Mista do Congresso Nacional. O relator das mudanças foi o senador Tasso Jereissati (PSDB), um dos principais articuladores da recente “reforma” trabalhista e autor de projeto de lei diverso que pretendia instituir o “mercado das águas” no Brasil. Não por coincidência, Tasso é sócio da Solar, subsidiária da Coca-Cola no Brasil, que doou R$ 1,5 milhão à sua campanha eleitoral [05]. Com o conhecimento de causa que possui, Tasso foi capaz de realizar mudanças cirúrgicas no projeto (agora rebatizado de PLV-8/2019), que contornam muitas falhas evidentes do texto original sem perder seu objetivo central. Por exemplo, de forma a garantir “isonomia” entre o setor privado e as empresas públicas estaduais, a obrigatoriedade da privatização dos sistemas lucrativos foi substituída pela obrigação de todos os novos contratos serem firmados unicamente através de licitação.
O detalhe é que, na prática, companhias estaduais não conseguem participar de licitações, seja por causa de entraves legais, seja por conta do ônus de terem de sustentar o serviço na maioria de municípios pequenos e deficitários, o que impede que a tarifa das estatais seja mais “competitiva” do que das empresas privadas, que têm a vantagem de só gerir sistemas lucrativos. Em outro ponto, contorna-se a total destruição do subsídio cruzado com mais uma jogada precisa. Praticado largamente pelas companhias estaduais, o subsídio cruzado consiste em garantir que o lucro de sistemas de menor custo compense o relativo prejuízo de sistemas mais caros, de forma que seja possível investir e fixar tarifas iguais para diferentes sistemas e, portanto, não prejudicar ninguém.
O projeto original estimularia como nunca as chamadas municipalizações, na qual empresas privadas controlam sistemas por município, deixando nas mãos das companhias estaduais somente as cidades que dão prejuízo, de onde resultaria o fim do subsídio cruzado. A nova redação contorna isso estabelecendo a “prestação regionalizada” através de “blocos sustentáveis”, integrados por municípios maiores, lucrativos, junto com outros menores, não lucrativos, de forma que torna-se “sustentável” lucrar com esses blocos. Trata-se de um fórmula mágica para o capital, pois lhe possibilita tomar todos os municípios, mesmo os pouco atrativos. Já para o setor público, tais blocos significam sua completa destruição, pois os titulares de tais blocos não são mais nem os municípios nem o Estado, mas sim “estruturas de governança interfederativas” que, pela MP, deverão também licitar os serviços.
Liquida-se assim não só com as companhias estaduais, mas também com as poucas companhias municipais que ainda restam. E continua-se a comprometer a prática do subsídio cruzado, que por uma questão de escala, precisaria concentrar os serviços em diversos blocos, numa escala estadual, para ser funcional – o que deixaria de ocorrer por conta do loteamento dos blocos entre diferentes empresas privadas. Além disso, o Estado ainda pode ver-se obrigado a continuar sustentando blocos menos atrativos, o que sem companhias estaduais fortes, seria um fardo aos cofres públicos e um tormento ao povo trabalhador. Caso emblemático do que pode ocorrer com a disseminação da privatização e da imposição da lógica do lucro sobre o setor é o da Companhia de Saneamento do Amazonas (Cosama), que se encontra em fase de extinção desde a privatização do saneamento de Manaus no ano 2000, não podendo porém fechar as portas por ainda ser responsável pelo atendimento de doze municípios do interior. Como resultado, a população recebe um serviço de péssima qualidade, enquanto os trabalhadores da estatal convivem com contratos temporários e condições de trabalho precaríssimas [06].
O risco é enorme
Se aprovado da forma como se apresenta, o “novo marco do saneamento” levará a uma queda brutal na arrecadação de companhias estaduais como Sabesp, Cedae, Sanepar, Corsan, Copasa, Casan, Compesa, Embasa e outras, e consequentemente, ao definhamento e colapso dessas empresas, com reflexos desastrosos na qualidade do serviço prestado, conduzindo no longo prazo à destruição das empresas responsáveis pelo atendimento de quase 80% dos brasileiros. Já os trabalhadores, serão forçados a aceitar perdas extremas nas suas condições salariais e de trabalho, sendo compelidos a deixar seus empregoa, quando não demitidos, apenas para serem recontratados pelas novos empreendimentos privados a um salário menor, aumentando assim a exploração do trabalho em benefício do capital.
Assim, não há qualquer retórica em afirmar que o “novo marco” levará à destruição do pouco que há em termos de saneamento básico no Brasil. Isso se dará por conta do sério golpe que impõe ao subsídio cruzado, vital para possibilitar a prática de tarifas acessíveis, a expansão e melhoria da cobertura de tratamento de água e esgoto em regiões mais pobres e, por fim, a busca pela tão necessária e tão adiada universalização do saneamento básico. Entidades do setor, como ABES, AESBE, FNU e ASSEMAE também apontam diversas ilegalidades no projeto, de forma que sua aprovação poderá trazer ainda mais insegurança jurídica ao setor. Tal risco não impedirá o capital de se apoderar das águas brasileiras mas, certamente, será usado como pretexto por parte dos novos donos privados para não investirem na expansão e melhoria dos serviços…
Não há tempo a perder
Apesar da pauta do Congresso estar trancada por uma dezena de outros projetos, o empenho do governo Bolsonaro em aprovar a MP é evidente. Se nada for feito, o desastre poderá ser consumado bem antes do prazo de vencimento da MP, que é 3 de junho. Com sua aprovação, em questão de anos o capital privado conseguirá se apoderar por completo das águas brasileiras, colocando de vez este recurso essencial à vida e à saúde de todos a serviço do lucro de poucos. Para evitar tal retrocesso, no qual só quem tem a ganhar são os donos do capital, é fundamental uma mobilização que envolva trabalhadores, população e entidades do setor, numa luta sem tréguas até que o governo lacaio dos grandes empresários seja dobrado e sua MP do fim do saneamento seja derrotada.
[01] https://g1.globo.com/economia/noticia/saneamento-melhora-mas-metade-dos-brasileiros-segue-sem-esgoto-no-pais.ghtml
[02] http://www.tratabrasil.org.br/saneamento-no-brasil
[03] https://oglobo.globo.com/economia/negocios/empresas-privadas-de-saneamento-atendem-6-dos-municipios-brasileiros-21258549
[04] http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2015/08/com-12-da-reserva-de-agua-doce-do-mundo-brasil-sofre-com-escassez.html
[05] https://www.revistaforum.com.br/tasso-jereissati-critica-estatais-de-saneamento-e-e-acusado-de-querer-privatizar-agua-senador-coca-cola/
[06] http://amazonasatual.com.br/auditoria-do-tce-recomenda-ao-governo-do-estado-que-faca-estudo-sobre-o-futuro-da-cosama/
Imagem: Sindicato dos Urbanitários de Alagoas
*Eduardo Grandi é trabalhador em saneamento e militante do PCB