Veneno na mesa pra servir o capital

imagemO uso de agrotóxicos no Brasil: tragédia social nas tramas do capital imperialista

Por Marcela Pereira Rosa*

O Brasil ocupa hoje a posição de maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Nesse ranking não há nada a ser comemorado. Somos responsáveis pelo consumo de 18%, ou seja, quase 1/5 de todo agrotóxico comercializado mundialmente [1][2].

Um relatório publicado no mês de abril pela ONG Public Eye, apontou que 32% dos produtos classificados como “extremamente tóxicos” produzidos pela Syngenta são consumidos no Brasil, que não por acaso é também o país que mais compra essa classe de venenos [3]. A multinacional tem sua sede na Suíça, país que não autoriza o consumo interno dos pesticidas aí incluídos.

Em 1990 o Brasil consumia 3% dos agrotóxicos no mundo, o que significa que de lá pra cá houve um aumento de 9 vezes nesse consumo. Um atlas do uso de agrotóxicos no Brasil, publicado em 2017 pela geógrafa Larissa Bombardi, aponta que o Brasil saltou de um consumo de cerca de 170.000 toneladas de agrotóxicos no ano 2000 para 500.000 toneladas em 2014, um aumento de 135%. Do total consumido, 52% são utilizados no cultivo da soja [2].

O principal agrotóxico comercializado no Brasil é o glifosato, um herbicida aplicado em diversos cultivos, como o de soja, milho e algodão, que figuram entre os principais produtos produzidos no país. Pesquisas realizadas com animais apontaram que o glifosato pode causar câncer e é também um potencial causador de alterações na estrutura do DNA e nas estruturas cromossômicas das células humanas. Ainda assim, no ano de 2014 a venda desse herbicida no Brasil foi de 194.877,84 mil toneladas, mais da metade do volume total de agrotóxicos comercializados no país [2].

No ranking de 2016, as citadas Monsanto e Syngenta figuram, ao lado de outras quatro, entre as principais empresas do setor, que lideram e concentram o mercado mundial de agrotóxicos e sementes. O oligopólio dessas seis empresas – Syngenta (Suíça), Bayer (Alemanha), Basf (Alemanha), Dow (EUA), Monsanto (EUA) e DuPont (EUA) – respondem a cerca de 75% do mercado mundial de agrotóxicos [2]. Recentemente esse quadro sofreu algumas alterações devido à compra e fusão de algumas dessas empresas. A Monsanto foi comprada pela Bayer, a ChemChina comprou a Syngenta e Dow e DuPont se fundiram, aumentando ainda mais a concentração e o oligopólio dessas empresas no setor. Vale lembrar que esse monopólio não ocorre apenas com os agrotóxicos, mas também com as sementes produzidas por essas mesmas empresas.

No Brasil e em outros países do mundo, vemos a agricultura capitalista avançar sobre o campo a passos largos e, com ela, o uso massivo de agrotóxicos. Os efeitos desse uso são danosos e incalculáveis: incluem a devastação da natureza, a contaminação dos solos e da água, a morte de animais, a aniquilação da diversidade produtiva, a intoxicação e morte de milhares de pessoas, prejuízos ao desenvolvimento físico e cognitivo e o aumento do número de doenças.

Entre os anos de 2007 a 2014, os casos de intoxicação notificados junto ao Ministério da Saúde corresponderam a uma média de 3.125 por ano, ou seja, diariamente ocorrem no Brasil 8 casos notificados de intoxicação por agrotóxicos. Calcula-se, no entanto, que para cada caso notificado, há outros 50 não notificados, o que eleva em níveis descomunais os índices de intoxicação por agrotóxicos. Do total anual, 148 levam à morte, o que significa que a cada dois dias e meio uma pessoa morre no Brasil intoxicada pelo uso de agrotóxicos agrícolas. Na maioria dos estados brasileiros, 20% das intoxicações notificadas dizem respeito a crianças e adolescentes [2].

Estas preocupantes cifras também atingem bebês de 0 a 12 meses de idade. De 2007 a 2014 tivemos uma média de 42 bebês intoxicados por ano. Se levarmos em conta que para cada caso notificado há 50 casos não notificados, temos um número de 2.100 casos de bebês intoxicados por agrotóxicos anualmente no Brasil [2].

Cabe destacar que uma das principais causas de contaminação do meio ambiente e de intoxicação das populações é a “deriva”, fenômeno que se refere à quantidade de agrotóxicos que não atinge o cultivo-alvo no caso da prática de pulverização aérea, prática proibida na União Europeia desde 2009. Os gastos com a saúde pública decorrentes de todas as consequências geradas pelo uso de agrotóxicos não são contabilizados na cadeia do agronegócio e, ao fim, quem paga a conta é a própria população.

Outros índices alarmantes referem-se à quantidade de resíduos de agrotóxicos permitida nos alimentos pela legislação brasileira. A quantidade de glifosato permitido no café é 10 vezes maior do que a permitida na União Europeia; na cana-de-açúcar é 20 vezes maior; e na soja é 200 vezes maior. No feijão, o Brasil permite um resíduo máximo de melationa – inseticida – 400 vezes maior e no brócolis 250 vezes maior, também comparados à União Europeia [2].

Um relatório publicado em 2017 pelo Greenpeace apontou que 60% das amostras de alimentos analisadas pela ONG continham resíduos de agrotóxicos e que 36% apresentavam irregularidades – como a presença de algum tipo de agrotóxico não permitido para aquele alimento específico ou presença acima do limite máximo permitido por lei. Dentre os alimentos testados estavam o tomate, a couve, o pimentão verde, o café, arroz integral, arroz branco, feijão preto, feijão carioca, mamão formosa, laranja pera, banana prata e banana nanica [4].

Em 2018, a Anvisa analisou em torno de 2.500 amostras de 18 tipos de alimentos, apontando que cerca de 1/3 dos vegetais mais consumidos no Brasil apresentam um nível de agrotóxico acima do permitido – note-se aí que estamos falando da legislação brasileira, que, como vimos, já permite níveis altamente elevados. Na lista dos alimentos que mais apresentaram problemas estavam o pimentão (91,8% das amostras), o morango (63,4%), o pepino (57,4%), a alface (54,2%) e a cenoura (49,6) [5].

O problema estende-se também à água. Na água potável brasileira são permitidos um limite máximo de resíduo de atrazina – herbicida – 20 vezes maior do que na União Europeia; de 2,4-D – herbicida, segundo agrotóxico mais vendido no Brasil – 300 vezes maior; e de glifosato 5 mil vezes maior [2]. Dados recentes do Ministério da Saúde apontaram que 1 a cada 4 municípios brasileiros têm sua água contaminada com agrotóxicos. Entre os agrotóxicos encontrados em mais de 80% dos testes realizados, cinco são classificados como prováveis cancerígenos pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos. Do total dos 27 pesticidas encontrados na água brasileira, 21 estão proibidos na União Europeia devido aos riscos de seu uso e consumo [6].

Todos esses dados nos revelam um cenário catastrófico, surgido no bojo da agricultura capitalista. Fica claro que o agronegócio é um modelo insustentável a longo prazo, incentivado, no entanto, pelo próprio aparato estatal, que cumpre zelosamente sua função de serventia aos interesses da classe dominante. No Brasil, o plano Safra de 2017-2018 disponibilizou cerca de R$200 bilhões para o agronegócio e apenas R$30 bilhões para a agricultura familiar, uma diferença de 75%. Um dos resultados dessa opção política é o fato de que o Brasil tem posto mais ingredientes nocivos no prato da população, cenário que vem se agravando ainda mais ao adentrarmos em um processo desenfreado de autorização de novos agrotóxicos, como já vem ocorrendo.

Ainda no governo Temer, no ano de 2018, 450 novos produtos foram liberados, ano em que também foi colocado em pauta o Projeto de Lei 6299/02, conhecido como o PL do Veneno [7]. A proposta é de Blairo Maggi, que foi ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento durante o governo Temer e é um dos principais acionistas do grupo Amaggi, fundado pelo seu pai, André Maggi. A Amaggi está entre as 20 maiores exportadoras de commodities do Brasil. Somente no Mato Grosso, o grupo é responsável por administrar 252,3mil hectares de terras para agricultura. Também conhecido como o “rei da soja”, Blairo já foi o maior produtor individual de soja do mundo [8]. A PL do Veneno proposta por Blairo pretende facilitar a produção, venda e uso de agrotóxicos no Brasil, propondo alterações em diversos pontos, como produção, importação e rotulagem.

Em 2019, com o governo Bolsonaro, a perspectiva para esse cenário não é nada animadora. Atualmente à frente do Ministério da Agricultura, temos a ruralista Tereza Cristina. Apelidada como “musa do veneno” por seu amplo apoio à PL do Veneno e por ter chefiado a comissão que aprovou o projeto de lei, Tereza possui ligações indiretas com a Syngenta. Sua campanha ao cargo de deputada federal nas últimas eleições teve como um de seus maiores financiadores o empresário Celso Grieseang, que doou R$37,5 mil à candidatura da ministra. Celso é um dos proprietários da Sementes Tropical, empresa que comercializa fungicidas em parceria com a Syngenta [9].

Nos três primeiros meses de governo Bolsonaro tivemos um registro recorde de agrotóxicos. Somente nos cem primeiros dias de governo foram aprovados 121 novos agrotóxicos e outros 31 já foram incluídos na fila de registro [10]. As corporações por trás desses agrotóxicos têm em comum históricos de conflitos agrários, processos e denúncias de contaminação. Entre as campeãs em novas certificações despontam velhas conhecidas, como a Syngenta e a Adama, sétima maior produtora de químicos agrícolas do mundo [9].

A flexibilização do registro de agrotóxicos no Brasil serve como mais uma das artimanhas do mercado. Dado que a legislação de países como os da União Europeia, por exemplo, tem sido cada vez mais rígida, o afrouxamento na legislação nos países periféricos, como o Brasil, permite a recuperação do mercado internacional de agrotóxicos. As empresas tendem a realocar sua produção em mercados menos restritivos. Dados de 2017 apontam que 30% dos agrotóxicos permitidos no Brasil, dentre os quais figuram dois dos mais vendidos em terras brasileiras, são proibidos na União Europeia [2]. Como apontou Pedro Serafim, coordenador do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, trata-se de fazer do Brasil um celeiro ou um cemitério de agrotóxicos [9].

É preciso destacar ainda que no Brasil há redução de 60% do ICMS e isenção total da contribuição para a Seguridade Social (PIS/COFINS) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para a produção e comércio de agrotóxicos. O Estado, portanto, subvenciona o capital dessas grandes indústrias de agroquímicos e, com ele, o avanço da degradação ambiental e da saúde humana [2]. Tudo é feito em nome do lucro das empresas privadas.

O mercado mundial de agrotóxicos movimenta atualmente US$ 57 bilhões por ano [11]. Nesta longa cadeia do agronegócio, o alimento é destituído de seu valor enquanto forma de alimentação humana e transforma-se em commodity, mercadoria a ser negociada no mercado como qualquer outra. A produção alimentar deixa de ser questão estratégica nacional e passa a ser mercadoria adquirida no mercado mundial [12], minando, portanto, qualquer possiblidade do que chamamos de soberania alimentar. A soberania alimentar envolve o direito dos povos decidirem sobre sua própria política agrícola e alimentar de modo que a população tenha controle direto e democrático de elementos importantes de sua sociedade, como do que e como se alimenta e como usa e mantém a terra, a água e outros recursos no seu entorno para o benefício das gerações atuais e futuras [13].

O uso massivo de agrotóxicos é um dos elementos centrais da trama que permite a conversão da produção agropecuária em commodities. O que vemos ganhar contornos nesse cenário é mais uma das muitas faces do imperialismo. O lugar de maior consumidor mundial de agrotóxicos que ocupamos desde 2008 está diretamente ligado ao modelo econômico mundial, que coloca o Brasil no lugar de produtor e exportador de commodities, produtos primários com baixa tecnologia agregada. Dos dez principais produtos de exportação brasileira sete são de origem agropecuária. São eles: soja, açúcar, carne de frango, farelo de soja, carne bovina, celulose e café em grão [2]. Nessa longa história de submissão, os interesses externos do capital se sobrepõem aos interesses de desenvolvimento e de uma verdadeira soberania nacional, construída pelos trabalhadores e trabalhadoras. Nas tramas do imperialismo seguimos alijados da perspectiva de nossa autodeterminação enquanto povo brasileiro.

Parte central de toda esta engrenagem, as multinacionais do veneno, com suas sedes em países de capitalismo central, despejam toneladas de agrotóxicos em terras brasileiras, já que em seus próprios países a comercialização desses produtos não é permitida. Fazem do Brasil e da América Latina o quintal para onde escoam sua produção e de onde retiram seus lucros. Atualiza-se aí a mesma lógica colonial de outrora, agora com novas roupagens, novos mecanismos e novos mitos: “o agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo”. Como dissera Eduardo Galeano, “na alquimia colonial e neocolonial o ouro se transfigura em sucata, os alimentos em veneno” [14].

Se queremos transformar o catastrófico cenário da exploração imperialista, é preciso olhar com muita atenção para a questão da agricultura brasileira. Nosso projeto de uma nova sociedade, liberta da exploração e da expropriação dos trabalhadores, só se tornará viável a partir de táticas e estratégias políticas que tenham clareza das relações indissociáveis existentes entre o campo e o urbano. A tragédia do uso de agrotóxicos é a tragédia humana e ambiental de toda a sociedade. Os riscos e consequências desse uso não atingem apenas os trabalhadores rurais, mas também os trabalhadores urbanos, já que estamos falando da possibilidade de contaminação por exposição direta, da contaminação pelo consumo de alimentos e água com agrotóxicos, da contaminação do próprio ambiente e, portanto, da produção e reprodução da vida humana.

Os desdobramentos desse uso são hoje marcas da vida cotidiana no campo e no urbano, que trazem impactos irreversíveis para a saúde e o meio ambiente. Estamos frente a um genocídio cotidiano e silencioso que arrasa terras e águas, precariza nossa alimentação e violenta a própria vida humana. É preciso ter clareza de que a luta contra os grilhões do imperialismo é também a construção e a luta por um projeto de soberania alimentar e nacional, que passa necessariamente por um novo projeto de produção agrícola.

* Militante do PCB em São Paulo; psicóloga social e pesquisadora de temas relacionados ao campesinato brasileiro

[1] https://deolhonosruralistas.com.br/2019/04/22/brasil-consome-18-dos-agrotoxicos-no-mundo/
[2] BOMBARID, L.M. Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia. São Paulo: FFLCH, USP, 2017.
[3] PUBLIC EYE. Highly hazardous profits: how Syngenta makes billions by selling toxic pesticides. Lousanne: Public Eye, 2019.
[4] http://greenpeace.org.br/agricultura/segura-este-abacaxi.pdf
[5] https://www.hypeness.com.br/2016/07/anvisa-divulga-lista-de-alimentos-com-maior-nivel-de-contaminacao-por-agrotoxicos/
[6] https://apublica.org/2019/04/coquetel-com-27-agrotoxicos-foi-achado-na-agua-de-1-em-cada-4-municipios-consulte-o-seu/
[7] http://contraosagrotoxicos.org/agrotoxicos-os-interesses-economicos-nao-podem-se-sobrepor-aos-interesses-da-vida/
[8] https://pcb.org.br/portal2/11082/blairo-maggi-um-barao-da-soja-no-ministerio-da-agricultura/
[9] https://deolhonosruralistas.com.br/2019/03/28/conheca-as-empresas-que-pediram-os-novos-pesticidas-extremamente-toxicos/
[10] https://deolhonosruralistas.com.br/2019/04/01/governo-concede-em-marco-mais-35-registros-de-agrotoxicos-ja-sao-121-produtos-liberados-no-ano/
[11] CUT. Rotas do veneno: mercado de agrotóxicos, desafios e propostas para o mundo do trabalho. São Paulo: CUT, 2017.
[12] OLIVEIRA, A.U. A mundialização da agricultura brasileira. São Paulo: Iandé Editorial, 2016.
[13] https://viacampesina.org/en/wp-content/uploads/sites/2/2018/02/Food-Sovereignty-a-guide-ES-version-low-res.pdf
[14] GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&M Pocket, 2011.