A ingerência dos EUA na América Latina

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Silvina Romano, Arantxa Tirado, Tamara Lajtman e Aníbal García Fernández | CELAG

Tradução de Leonardo Igor para a Revista Opera

O golpe de Estado na Bolívia contra o governo do partido Movimiento al Socialismo (MAS) voltou a colocar em pauta o debate sobre o papel das embaixadas, a propósito do asilo político que vários funcionários bolivianos solicitaram ao governo do México. Considerando o contexto histórico e político, esses eventos também convidam a revisar o papel das embaixadas dos Estados Unidos na região e seu vínculo com os golpes de estado como parte de operações encobertas.

Após uma visita de cortesia de diplomatas espanhóis à Embaixada do México em La Paz, o atual governo denunciou uma suposta ingerência e violação às leis bolivianas, diante da suspeita de uma possível ajuda das autoridades espanholas para facilitar o translado dos exilados ao México – em um contexto de hostilidade sistemática e de negação em conceder permissão aos exilados. Entre esses exilados está Juan Ramón Quintana, ex-ministro da Presidência e fortemente envolvido no processo de mudanças no país. Seu trabalho de denúncia à ingerência estadunidense na Bolívia [1] o colocou na mira dos EUA por anos [2].

Que papel cumprem (ou deveriam cumprir) as embaixadas?
Uma embaixada é a sede da representação diplomática de um Estado acreditante em outro Estado receptor. Mas o termo “embaixada” também designa o cargo do embaixador, o pessoal contratado encarregado do embaixador, a residência de quem representa o dito Estado acreditante e, também, as mensagens que se enviam entre chefes de Estado. Essencialmente, se trata de uma missão diplomática permanente que representa os interesses do Estado acreditante em território de outro Estado receptor. Não obstante, as sedes das embaixadas tem um status extraterritorial ao aplicar entre suas paredes as leis do Estado de origem. Legalmente, as embaixadas são uma espécie de “enclave” territorial estrangeiro no território da nação que abriga a embaixada. Apesar disso, sua atividade e a de seus funcionários diplomáticos no Estado receptor está regulada por distintas convenções internacionais. A principal delas é a Convenção sobre Relações Diplomáticas, firmada em Viena em 18 de abril de 1961, também conhecida como Convenção de Viena.

Um dos direitos reconhecidos pela legislação internacional é a inviolabilidade das embaixadas. Nesse sentido, a Convenção de Viena é clara em seu artigo 22.1, quando estabelece: “Os locais da missão são invioláveis. Os Agentes do Estado receptor não poderão entrar neles sem consentimento do Chefe da missão” (ver também artigos 22.2 e 22.3). A inviolabilidade se estende, além disso, aos agentes diplomáticos no artigo 29: “A pessoa do Agente diplomático é inviolável. Não pode ser objeto de nenhuma forma de detenção ou prisão. O Estado receptor o tratará com o devido respeito e adotará todas as medidas adequadas para impedir qualquer atentado contra sua pessoa, sua liberdade ou sua dignidade”.

O papel das embaixadas dos EUA na América Latina (e os golpes de Estado)
Um ditado bastante conhecido na América Latina e Caribe (ALC) é o que diz que “nos EUA não há golpes de Estado porque lá não há embaixadas dos EUA”. É uma expressão que sintetiza o papel ativo de embaixadas estadunidenses em golpes de Estado (leves, convencionais, etc.) na ALC.

Embaixada dos EUA e o golpe no Paraguai
Um dos casos paradigmáticos de desestabilização do governo paraguaio e prelúdio do golpe que seria aplicado dois anos depois contra Fernando Lugo foi o julgamento político contra o então ministro da defesa, o general Luis Bareiro Spaini, em 2010, no qual a Embaixada esteve diretamente envolvida:

Em 19 de fevereiro de 2010, foi realizado um almoço organizado pela embaixadora Liliana Ayalde, com a presença de altos funcionários do governo paraguaio e generais do Exército dos EUA. Na ocasião, falou-se da “péssima gestão administrativa do presidente Fernando Lugo que o faz merecer um julgamento político urgente e inegociável”.
Após o ocorrido, Bareiro Spaini enviou uma carta à embaixadora Ayalde (22 de fevereiro de 2010), com uma cópia ao Comando Sul e ao Pentágono, pedindo explicações. A “ousadia” do ministro foi motivo para a Câmara dos Deputados aprovar uma “declaração de censura”. Em agosto de 2010, após a não aprovação do orçamento militar, Bareiro Spaini pôs seu cargo à disposição.
É essencial ter em mente que Bareiro Spaini defendeu uma aliança militar regional no âmbito da UNASUL como uma alternativa aos acordos de defesa e segurança com os EUA e Colômbia. Um exemplo disso foi a rejeição, em 2009, da entrada de 500 militares dos EUA para a operação Nuevos Horizontes, prevista para 2010.
Embaixada dos EUA e o golpe em Honduras
Antes do golpe de Estado em Honduras, o embaixador Hugo Llorens teve reuniões com congressistas hondurenhos, membros do sistema de justiça, empresários e com o então presidente Manuel Zelaya, em torno do chamado à consulta popular – postulado pelo governo – para convocar uma Assembleia Constituinte (a consulta teria de ser feita no marco das eleições presidenciais em novembro de 2009). Foi esse chamado à consulta que desencadeou o golpe de Estado. De fato, o mesmo embaixador disse à imprensa: “[…]Não se pode violar a Constituição para criar uma Constituição, porque seria como viver na lei da selva”.

Uma mensagem do Wikileaks menciona uma chamada entre Elvin Santos (que foi vice-presidente e era antigo conhecido do embaixador, porque estudaram juntos) com Vilma Morales, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que vê uma “polarização no país”. O comentário do embaixador posiciona Roberto Micheletti acima de Santos no conhecimento do país e em sua ligação com a elite política. Segundo o embaixador, Micheletti comentou que Zelaya cumprirá seu mandato “nem um dia a menos, nem um dia a mais”. Morales deixou claro que “ela era amiga dos EUA e que continuaria a desempenhar esse papel.”
Antes da consulta para a Assembleia Constituinte, Llorens reuniu-se na embaixada com o Presidente Zelaya, Roberto Micheletti, Elvin Santos e Porfirio Lobo Sosa. O chefe do Estado-Maior Conjunto, Romeo Vásquez Velásquez, também participou. Nessa reunião, Zelaya foi convidado a cancelar a consulta.
Outra mensagem do Wikileaks menciona uma chamada entre o embaixador Llorens e a fiscal geral, Leonida Rosa Bautista, em 29 de setembro de 2008. Se discutiu o apoio dos EUA ao Ministério Público hondurenho, destacando seu bom desempenho. A relação da fiscal com o embaixador era fluída.
Embaixada dos EUA e o golpe no Brasil
Existem diversas fontes que apontam o vínculo do setor público-privado estadunidense com o impeachment de Dilma Rousseff e o desenvolvimento do processo da Lava Jato, que implicou no encarceramento de Lula da Silva e na impossibilidade de concorrer às eleições. Em torno do papel da Embaixada dos EUA e ações diplomáticas concretas de apoio ao golpe contra Rousseff se destaca, em primeiro lugar, a presença casual de Liliana Ayalde como embaixadora dos EUA no Brasil; mas também a figura de Michel Temer como informante da embaixada dos EUA e a viagem do opositor Aloysio Nunes aos EUA no dia seguinte do golpe contra Rousseff.

A embaixadora dos EUA no Brasil, Liliana Ayalde, havia sido embaixadora no Paraguai durante a preparação do golpe de Estado contra Fernando Lugo (2012), um golpe que mantém características semelhantes às do Brasil, realizado por trás da fachada de julgamentos políticos.
Michel Temer (vice-presidente durante o governo de Dilma) foi um dos protagonistas do impeachment e assumiu o cargo de presidente, depois que a mandatária foi destituída de seu cargo. Este papel não é trivial. Durante anos, Temer serviu como um dos informantes privilegiados da embaixada dos EUA no país, fornecendo informações importantes. Em uma de suas reuniões com membros da embaixada, ele afirmou que o triunfo de Lula havia gerado grande esperança no povo brasileiro, mas que sua administração era decepcionante. Ele alertou que Lula tinha uma visão muito estreita e que prestava muita atenção em programas de seguridade social que não gerariam nenhum desenvolvimento econômico; ele temia uma guinada à esquerda. Ele também acusou o PT de corrupção e fraude eleitoral – acusações semelhantes às que foram usadas como pilar do golpe contra Dilma -, além de sugerir a remoção do PT do poder.
No dia seguinte ao impeachment na Câmara dos Deputados, o senador Aloysio Nunes, do PSDB (até então o principal partido opositor) e uma das principais figuras do impeachment que seria realizado no Senado, foi para os EUA por três dias. Nunes apoiou com sua presença as primeiras manifestações em São Paulo contra o resultado a favor de Dilma Rousseff nas urnas, acusando o PT de fraude. Em sua viagem, autorizado por Michel Temer (uma espécie de “visita oficial” na época), ele se encontrou com Bob Corker e Ben Cardin, do Comitê de Relações Exteriores do Senado. Também aproveitou o momento para ver o ex-embaixador dos EUA no Brasil, Thomas Shannon, e almoçar com o lobby do grupo empresarial Albright Stonebridge, liderado pela ex-secretária de Estado de Bill Clinton, Madeleine Albright e por Carlos Gutierrez, ex-secretário de Comércio de George Bush e ex-CEO da Kellogg.
Embaixada dos EUA e os golpes na Venezuela
As relações diplomáticas entre os governos da Venezuela e dos EUA foram conflituosas desde o triunfo da Revolução Bolivariana. Isso provocou a ruptura de relações entre ambos os países em vários momentos, no qual a respectiva representação diplomática se manteve mínima e, desde 2010, não houve intercâmbio de embaixadores. Isso significa que os planos golpistas dos EUA foram coordenados e executados diretamente de Washington. Ainda assim, se destacam alguns momentos da ingerência in situ com participação das embaixadas:

Após as denúncias de Hugo Chávez dos bombardeios americanos sobre a população civil afegã em outubro de 2001, a então embaixadora dos EUA em Caracas, Donna Hrinak, foi chamada para uma consulta em Washington e retornou com uma mensagem desafiadora e ameaçadora contra o presidente Chávez. As relações foram interrompidas até março de 2002, quando o novo embaixador, Charles Shapiro, chegou a Caracas carregando a experiência no Chile de Allende e na América Central dos anos 80. Em abril de 2002, Chávez sofreu um golpe de estado apoiado pelos EUA.
Durante a última tentativa de golpe iniciada em janeiro de 2019 contra Nicolás Maduro, liderado por Juan Guaidó, houve um episódio de interferência e violação sem precedentes da soberania nacional que pertence às embaixadas, ainda em território estadunidense. A embaixada da Venezuela em Washington foi hostilizada por semanas e finalmente invadida pela polícia dos EUA, para que fosse entregue aos representantes de Juan Guaidó.
Embaixada dos EUA e o golpe na Bolívia
A Embaixada tem sido historicamente ativa (intervencionista) na vida política boliviana, sendo o momento culminante a tentativa de um golpe cívico-provincial em 2008, que levou à expulsão do embaixador Philip Goldberg. Se destacam, por exemplo, os vínculos da embaixada com os membros do Comitê Pró Santa Cruz, como Rubén Costas e Branko Marinkovic.
Na conjuntura do 21F, foram denunciadas reuniões entre o então chefe de negócios da embaixada, Peter Brennan, e o diretor de Inteligência durante o governo do MIR, Carlos Valverde (preso por tráfico de drogas e que lança, pela primeira vez, denúncias que se articulam no chamado “caso Zapata”).
Em novembro de 2017, pouco antes de completar suas funções na Bolívia, Brennan se encontrou com Carlos Mesa. Segundo ambos, se tratou uma visita de “cortesia”, para a apresentação de novos funcionários da embaixada. O chanceler boliviano, Fernando Huanacuni, denunciou que a reunião violava as diretrizes da Convenção de Viena, que determina que a destituição ou apresentação de funcionários deve ser feita na Chancelaria.
Após o golpe, Erick Foronda Prieto, jornalista boliviano que trabalhou por mais de 20 anos na assessoria de imprensa da Embaixada em La Paz, tornou-se secretário particular da atual presidente Jeanine Añez.
Os tipos de atividades realizadas pela Embaixada coincidem com os mecanismos e inclusive os objetivos das operações encobertas, comumente associadas à espionagem no marco da Guerra Fria. Como se lê nos primeiros documentos que deram forma à institucionalização da CIA, essas operações implicam:

Embaixadas dos EUA e operações encobertas
As ações listadas, realizadas no âmbito das embaixadas estadunidenses na ALC, não apenas podem ser compreendidas como atos de espionagem, mas também como operações encobertas. No início da Guerra Fria, em um contexto de conformação do Estado de Segurança Nacional nos EUA, [3] organizou-se o aparato de inteligência e se definiu (entre outras questões) o propósito e alcance das operações encobertas. Atualmente, se reconhece ao menos três tipos de ações encobertas: ações políticas, ações econômicas, propaganda e ações paramilitares. [4] A forma como operam os diplomatas da embaixada dos EUA em processos de desestabilização política e econômica que, em alguns casos, como os mencionados, terminam em golpes de Estado, poderia ser considerada como parte de operações encobertas, principalmente no tipo de operação centrada em ações políticas (que implica em atividades variadas que vão desde apoio financeiro a grupos opositores até a criação de grupos insurgentes).

Notas:

[1] – Foi coordenador de duas obras-chave sobre o tema: Bolivialeaks (http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20160721111214/BoliviaLeaks.pdf) e Un siglo de intervención de EE.UU. em Bolivia (https://www.consuladodebolivia.com.ar/2017/05/30/descarga-los-6-tomos-del-libro-siglo-intervencion-ee-uu-bolivia/)

[2] – https://www.state.gov/reports/2016-country-reports-on-human-rights-practices/bolivia/ e https://www.state.gov/reports/2017-country-reports-on-human-rights-practices/bolivia/

[3] – Wills, G. (2010) Bomb power.The modern presidency and the national security state. New York: Penguin Books.

[4] – Stempel, J. (2007) “CovertAction and Diplomacy” International Journal of Intelligence and CounterIntelligence, 20:1, 122-135.

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