Trabalhadores marítimos e luta de classes

imagemUma estratégia de desenvolvimento das forças produtivas e da consciência de classe como construção do poder popular no Brasil

Marcelo Schmidt – militante da Unidade Classista e do PCB-RJ

Este artigo, tão especial para mim, fala da epopeia dos trabalhadores do mar, fala dos marítimos, fala da história da luta de classes no Brasil no centro do problema da organização revolucionária, fala de grandes militantes trabalhistas, socialistas e especialmente comunistas, fala da importância do controle estratégico das forças produtivas a partir dos trabalhadores estratégicos, fala do controle obreiro e do poder popular. Fazer este artigo foi uma grande alegria, pela crítica do trabalho de base!

“Silêncio nos navios, vibração nos sindicatos”. Assim noticiava o jornal “A Voz Operária” durante a grande greve dos cem mil marítimos de 1953. Nela, o comandante Emílio Bonfante Demaria trabalhador náutico, à frente dos ‘trabalhadores do mar’ discursou para uma assembleia gigantesca, dizendo que a greve de seis dias conquistou muito mais do que três anos de negociações com patrões e pedidos ao governo. Ao lado, os Operários Navais Marítimos, iniciavam “a época dos operários navais”, colocando o líder Irineu José de Souza à frente do SONRJ, sindicato dos operários navais do Rio de Janeiro; começava uma série de gestões combativas sob influência comunista, com enfrentamento diferenciado e classista na classe até o golpe de 1964. Começamos desta forma nosso estudo sobre a organização histórica dos trabalhadores marítimos no Brasil.

O comandante Bonfante Demaria e o operário naval Irineu José de Souza foram lideranças de uma época, mas ambos constituíam uma vanguarda que era parcela de uma classe em expansão, cuja força coletiva e o modo organizativo por lutas imediatas, mas também políticas gerais, precisam ser estudadas por todos aqueles que se dedicam a compreender as estratégias de construção do poder gestor, direto e popular da classe trabalhadora. Nesta época, o operário naval marítimo era como um martelo pesado, quente e acabado ali mesmo na forja da luta de classes dos anos 50 e 60; nos marcos da indústria pesada e logística do país, geralmente estatais, que constituíram o núcleo do chamado velho sindicalismo. Os trabalhadores marítimos náuticos eram e continuam sendo estratégicos, nas artérias do sistema mundial e nos caminhos e veias do Brasil.

Um presidente operário que expressa a vontade da massa: “Eram seis mil trabalhadores e foram eles que me fizeram líder, eu fui levado diretamente por eles à presidência do sindicato”. Quando Irineu assume o sindicato, este se torna instrumento da luta, uma ferramenta unitária e participativa do marítimo para o enfrentamento de toda a classe. “Eu busquei unidade, e a greve de 1953 foi bonita pela unidade que teve, todos do setor no mesmo movimento. Sabíamos que já havia luta antes de nós, mas o objetivo era construir um enfrentamento maior do que o de 1935 no setor, e foi isso que fizemos”.

Na greve de 1953 o comandante Bonfante assume o papel da vanguarda no comando geral de greve dos 100 mil marítimos. Para entender a importância do seu legado à beira do cais, que inspirou força e coragem na ação coletiva dos trabalhadores da época, mas também para novas gerações de marítimos, escutemos a avaliação de Severino Almeida, atual presidente da Confederação do setor: “o Bonfante foi uma liderança extremamente reconhecida por todos, inclusive por aqueles que tinham uma ideologia divergente. Ele impunha respeito pelo exemplo de como se comportava no mundo real”. O próprio Bonfante sintetizou os motivos da grande greve: “Deflagrada a greve porque não foi cumprido o acordo” para ‘o jornal última hora’ em 16 de outubro de 1953. No jornal “a orla marítima” de sua autoria, lia-se: “protesta o povo contra o alto custo de vida” e “voltaram à greve os operários navais”, esta era a mistura explosiva da época.

Os marítimos tradicionalmente transportam tudo que podemos pensar na navegação de longo curso. No Brasil mais modernamente, eles estão concentrados no setor de “offshore” ligados a indústria do petróleo, no transporte de cargas, de passageiros na navegação interior e de grandes rios do país; e nas grandes regiões metropolitanas, como no transporte de massa entre Rio de Janeiro e Niterói. Para pensar o trabalhador marítimo historicamente precisamos pensar naqueles que reparam, fabricam e conduzem seu instrumento de trabalho. Operários e condutores do mundo aquático na cadeia de produção e circulação, controle e desenvolvimento das forças produtivas; na organização do setor, na infraestrutura nos marcos da unidade da classe trabalhadora.

No coração dos setores estratégicos está a possibilidade do debate sobre a manufatura, mas principalmente sobre o transporte dela por caminhos intercontinentais, oceânicos, de ligação com o mundo; e na redistribuição disso até o centro do nosso país. Este setor é fundamental para o funcionamento da cadeia logística global do sistema capitalista, que pode ser desenvolvido, disputado e paralisado localmente. Toda máquina, bens de produção e mercadoria passa por um porto, e dele para estradas, de caminhos de ferro, de transporte rodoviário pesado, e de águas interiores. Pensar o Brasil a partir da integração dos modais de transporte e dos trabalhadores estratégicos é pensar a união de toda a classe trabalhadora, a partir da união dos trabalhadores estratégicos. Controlar este processo, desde a manufatura até a circulação de mercadorias e pessoas; e a sua distribuição interna pelas hidrovias, ferrovias e rodovias, está no centro do problema da construção e do exercício do poder popular no Brasil, para a revolução brasileira.

Mas qual seria o poder dos trabalhadores marítimos no contexto dos trabalhadores estratégicos organizados historicamente? É importante não nos esquecermos, que estes trabalhadores já se organizavam desde tempos imemoriais, antes mesmo de o Brasil existir; lutando por pagamento justo, pelo fim de castigos corporais a bordo, para chegar ao destino e voltar para suas famílias. Mundialmente foram pioneiros: na fundação da federação internacional dos trabalhadores em transportes, a ITF; na federação sindical mundial, a FSM; construindo mecanismos para uma legislação mundial e na luta contra a precarização do trabalho em navios de bandeiras de conveniência, as FOCs. No Brasil, eles passam por diferentes sínteses e formas organizativas: a corporação militar, mutualismo, anarquismo, anarcossindicalismo, até 1953 sob a influência dos trabalhistas de esquerda, dos socialistas em geral e principalmente dos comunistas, disputando o controle da estratégia do desenvolvimento do país a partir do seu próprio senso comum.

Todas estas formas organizativas criam acúmulo organizacional clássico nas categorias de transportes. Marítimos, portuários e ferroviários, após muita preparação, acumularam forças para um enfrentamento direto, massivo e completo. A partir dos anos cinquenta patrões e governos veriam greves de magnitude no setor, tamanha a ousadia de parar completamente o abastecimento do país. Tal enfrentamento gera um efeito pedagógico nas fileiras da classe trabalhadora, na base organizada, refina a revolta e a compreensão do papel do conjunto destes trabalhadores como vital no funcionamento da cadeia produtiva. O inimigo tenta retirar trabalho, renda e espaço de poder da classe, com fortes impactos locais na vida de cada um; mas a consciência do posicionamento vital contra o ataque e a exploração permanente nas estruturas mundiais do sistema, reforça a consciência da criação do poder direto no setor que move o mundo.

A categoria ciente da sua posição, historicamente organizada e pacientemente enfrenta o poder privado do controle dos meios de produção da burguesia, seus governos, suas forças de segurança, e forças armadas procurando dividir este bloco. Aproveitando os momentos de expansão logística dos governos mais nacionalistas, acumulando experiências de organização, e coesão estratégica. O inimigo sempre procurou quebrar o exercício de poder, o elo entre a fabricação de navios e o conhecimento logístico do setor, os vínculos históricos de camaradagem, a assimilação crítica na luta de classes, a união do nacionalismo de esquerda com as forças armadas, a alta taxa de sindicalização, o apoio popular na sociedade, a unidade na luta dos trabalhadores, a continuidade.

A ruptura do golpe de 1964 foi muito profunda, mas as lutas não se interromperam. Os marítimos procuraram preencher o espaço geracional entre a época de ouro e a nova realidade concreta com novas perspectivas buscando um sentido organizacional na sua própria tradição diante da ditadura. Os patrões queriam destruir a identidade profissional e política dos marítimos, que responderam com a sua tradição classista. Mas a partir de 1968 houve um aperto no regime, e até a sindicalização na prática ficou proibida até 1977. Ao mesmo tempo, os sucessivos planos de construção naval visavam “modernizar as relações de trabalho” afastando a ‘formação mestre e contramestre’ para a formação empresarial. Mesmo com automação, no fim da década de 70 os estaleiros tinham mais de 40 mil trabalhadores, de novo perfil, não mais marítimos, mas metalúrgicos à força pela organização patronal-militar, sem “sindicalismo para fora”, sem conselhos de base.

Neste sentido, a tradição marítima foi fundamental para continuar influente sobre o conjunto do setor, o objetivo era “contar o poder”: Como tudo começou com a greve de massa dos 300 mil em São Paulo, influenciando sua greve dos 100 mil em 1953; greves econômicas e políticas, para empossar presidente da república, a da paridade de 1960 para igualar o salário de civis com militares cujo salário era muito maior, que contou com o apoio de funcionários públicos civis, mas também de policiais; o presidente era Juscelino Kubitschek e quatro ou cinco ministros caíram por conta da greve, nos testemunha o Comandante Bonfante. Greves para influir na logística do país, pelas reformas estruturais de base da sociedade brasileira, a greve dos 700 mil de 1963, e para resistir ao golpe em 1964. O aprendizado, onde ele continuou forte, foi “aprendido com o mais antigo”. O trabalho de massa da velha guarda fortalece o elo geracional e a tradição no coração dos marítimos mais jovens, preparando a grande greve que viria.

Na visão do comandante Bonfante, o motivo de não haver mais mobilizações expressivas como as da década de 50 e 60: “É que a ascensão das greves foi estancada pelo militarismo. O movimento grevista não parou senão no golpe de estado de 1964, que, em minha opinião, foi deflagrado exatamente por isso, para barrar o avanço da organização e da luta dos trabalhadores do Brasil”. O golpe, patronal e militar, é fortemente apoiado pela classe média. “Eu acho que foi um golpe promovido pela burguesia brasileira, que por ter esgotado sua liderança, seus métodos políticos de atuação, apelou para o seu braço armado, que são as Forças Armadas”.

Por outro lado, registra-se que havia uma possível união cívico-militar no pré 1964, através do testemunho do próprio exemplo do comandante Bonfante, que registra este belo episódio: “Eu estava preso no Centro de Armamento da Marinha (CAM), em Niterói. Da janela da cela avistei o almirante Frazão, então vice-comandante do Corpo de Fuzileiros Navais, que fora detido depois de ter se recusado a assumir o lugar do comandante, que também fora preso. Frazão se dirigia a uma lancha, acompanhado por um oficial. Ao chegar ao fim do cais, deu meia-volta e seguiu em direção à minha cela. Apresentou-se, prestou continência e me fez votos de liberdade. Ele me disse: ‘Eu estava preso aqui e estou sendo posto em liberdade por força do Superior Tribunal Militar, de modo que desejo o mesmo para o senhor. Que o senhor seja solto dentro desses breves dias. ’ O oficial que o acompanhava ficou boquiaberto. Quanto a mim, me senti muito honrado e muito reconfortado por receber esse tipo de solidariedade”.

Emilio Bonfante Demaria foi um agitador de boas causas e leal aos seus pares. Em duas das várias vezes em que foi preso, engoliu as listas com os nomes dos companheiros de militância antes de ser levado pela polícia. Durante os anos do regime militar, até a Anistia em 1979, ele foi detido e torturado quatro vezes, teve o registro profissional cassado, e foi privado do convívio familiar ao se exilar na Rússia’. Depois outra geração de lutadores se forja, ela veria a crise do setor nos anos 80 e 90. E ambos os comunistas, o operário Irineu e o comandante Bonfante na fala abaixo, expressam a necessidade de ‘passar o bastão’ para que a luta se perpetue, sendo cultivada geração após geração. “Agora, nós mais velhos temos que ceder espaço, abrir caminho para a juventude. Por isso que eu me sinto muito envaidecido com a posse do companheiro Severino na diretoria do nosso Sindicato. Eu, na posse dele, disse que havia sido eleito em 1954 e não tinha tomado posse, mas tomei posse quando o Severino tomou posse.”

Nos marcos dos anos 80, a greve de 1987 é a referência do setor marítimo, e no conjunto da classe, uma das paralisações de maior repercussão após o fim da ditadura. “Essa greve foi dirigida pelo Areias, pelo Severino e pelo companheiro Ponce, radiotelegrafista. Essa greve, que a meu ver formou uma unidade bastante sólida entre os oficiais de Marinha Mercante, é uma greve histórica. Ela foi a greve mais importante ocorrida com a redemocratização do país”, afirmou o comandante Bonfante. Nos anos 80, foi uma conquista da constituição de 88 a proteção da Marinha Mercante brasileira, a influência dos trabalhadores no setor, com a garantia de marítimos nacionais em nossa cabotagem. Mas a chegada de FHC ao poder inicia um processo de destruição sem paralelo, via mudanças no Congresso Nacional, através da Emenda Constitucional nº 7.

Paralelamente, a crise atingiria muito fortemente a indústria naval e com ela todo o setor. Os 40 mil trabalhadores dos anos setenta chegam a 2 mil no final dos anos noventa. Este número voltaria a crescer nos anos dois mil. Sabe-se que onde não existe logística não há trabalho nem possibilidades de poder. No coração do setor naval, a vitoriosa greve dos marítimos de 1987, de certa forma repete a greve de 1953, une o que sobra do setor em torno de reivindicações concretas depois de anos de ditadura.

A luta foi por salário e direitos, por trabalho, por autoestima e para manter a produção, a cabotagem e a logística brasileira com a possibilidade do controle direto dos trabalhadores brasileiros. Quando o governo FHC retirou as garantias de 1988, houve muita luta e esforço para que estas garantias retornassem parcialmente com a Lei 9432/1997 garantindo que nos navios com nossa bandeira devessem ser nacionais o comandante, o chefe de máquinas e 2/3 da tripulação. A RN 72/2006 do Conselho Nacional de Imigração (transformada na RN 6 em 2017) estabeleceu o emprego de marítimos brasileiros em navios estrangeiros na cabotagem, porém, em quantidade inferior aos 2/3 de brasileiros em parte das embarcações autorizadas a operar em nossas águas. Um esforço institucional, atuação internacional, e luta sindical contra os patrões.

Os marítimos seguem nesta disputa porque aliam uma estratégia de poder direto com as lutas institucionais e internacionais; ao mesmo tempo, os ‘agora’ metalúrgicos navais tinham obtido ganhos substanciais nos anos 2000, mas isso se perde, a estratégia dos marítimos mostrou-se superior no longo curso, o novo sindicalismo metalúrgico no setor foi mais imediatista. Foi neste cenário que líderes como os comandantes Areias e Severino Almeida, reinventam a luta. O setor sofre uma sucessão de golpes que acompanham os golpes no país; no passado, presente e futuro são os mesmos, contra a estrutura logística e contra a organização dos trabalhadores. Para os liberais de todo tipo, com métodos fascistas muitas vezes, era preciso acabar com a força estratégica dos trabalhadores estratégicos, acabando com o seu trabalho, com a sua sindicalização, com a luta classista, com a possibilidade de participação e gestão direta nas forças produtivas e na logística do país. Destruir a capacidade logística como projeto de destruição per si.

Esta nova geração de marítimos se conectava com a velha, nela a luta pela grande meta específica está conectada a grande meta geral, que disputa as estruturas produtivas nos marcos da luta de classes, procura se inserir no correto tempo de maturação da consciência dos trabalhadores, protege o financiamento universal, a unicidade e trabalha a consciência do autofinanciamento, os vínculos de solidariedade no contexto dos trabalhadores da América Latina, e do mundo. Os trabalhadores brasileiros não precisavam renegar, nos marcos do novo sindicalismo, as formas organizativas para o poder direto, decorrentes da luta de classes no pré-64, no pré- 68, no pré-79. Porque isso corresponde a um conjunto de acúmulo, que uma vez renegado, também renega a construção da identidade classista de uma parte da classe, renegando o poder da classe.

O inimigo objetivou parar qualquer tentativa de controle das forças produtivas, parar o sonho do CGT sob a liderança dos ferroviários na cabeça do CGT até 1964, parar o setor na greve de 1987: impedir que os trabalhadores interfiram na linha logística de movimentação de mercadorias e de passageiros do mundo no Brasil, parar o poder. Por isso era tão importante dividir e destruir marítimos, portuários, ferroviários, aeroviários e aeronautas, os cinco principais sindicatos do CGT, e destruir qualquer possibilidade de uma possível aproximação classista com soldados da marinha, exército e aeronáutica. A partir da vitória de 1987, o objetivo inimigo será destruir onde ainda persistam os mesmos objetivos históricos da classe, nos que estão mais bem posicionados para isso.

Destruir o tripé da estratégia de controle estratégico nacional evidenciado na greve de 1987, porque quase a metade da carga do Brasil ainda passava pelo projeto de controle direto dos trabalhadores marítimos: Bens e passageiros pelo Lloyd, uma antiga estrutura da época do Brasil império, que chegou a ter uma das maiores marinhas mundiais. Das minas pela Docenave, para transportar minério e aço do Brasil para o mundo. E do petróleo e derivados pela Fronape, depois pela Transpetro; na luta junto com petroleiros pela Petrobras, e por tecnologias de exploração do petróleo no PRÉ-SAL. Aquilo que em 1987 era quase a metade das cargas transportadas no país, em 2020 não chega a 3%, fica clara a estratégia de ataque e destruição pela exploração. Vivemos um momento de defensiva dos trabalhadores, e por isso mesmo o esforço por mais controle direto é vital.

Os golpes burgueses de Fernando Collor e FHC destroem de vez a política de logística e a soberania econômica no transporte de cabotagem exterior, com a destruição do Lloyd brasileiro, de outras empresas estatais, e da política de conferência de carga (40/40/20, 40% para navios brasileiros, o mesmo percentual para estrangeiros, e o resto de mistos). De acordo com Luciano Ponce, líder histórico da categoria marítima, “a destruição do Lloyd brasileiro não foi apenas uma destruição dirigida ao trabalhador marítimo, mas atingiu cada trabalhador brasileiro”. Cada trabalhador sente no bolso o preço do frete.

Depois da greve de 1987, os capitalistas seguindo uma tendência mundial, procuram derrotar o sistema marítimo em si, com suas regras de abastecimento, de frete nacional, e de controle obreiro. A privatização da companhia Vale do Rio Doce destrói a Docenave no governo Fernando Henrique Cardoso. Os estaleiros, como foi dito, chegaram a ter 40 mil trabalhadores, passam para 2 mil e só voltam a subir para 100 mil nos governos Lula e Dilma. Isso evidencia a necessidade da estratégia da disputa pela produção, a geração de trabalho e o poder popular; se chegaram a 100 mil, imaginem quanto não chegariam se os três setores: o geral de mercadorias, de minérios e petróleo estivessem sobre controle obreiro. Fica clara no longo curso também a permanente associação do imperialismo com a burguesia nacional nos países periféricos para o seu poder: Hoje há menos trabalhadores na industrial naval do que no período FHC.

Se existe um projeto de poder dos marítimos, também existe um projeto de poder imperialista com a burguesia nacional, projetos que são incompatíveis. O aniquilamento da possibilidade da política de ligação estratégica com o mundo, e dentro disso, a própria destruição da indústria naval faz parte do projeto imperialista operado pela burguesia nacional. Nem a indústria, nem o controle, muito menos o poder dos trabalhadores pode ser exercido na cadeia de produção do setor porque não pode existir setor enquanto setor, apenas como fragmento. Todas as possibilidades de baratear e otimizar o frete das mercadorias, ou interligar a navegação interior, muito mais barata; ou ter uma política de hidrovias, com empresas para cabotagem interior a partir das de longo curso; ou mesmo de ferrovias; ou ainda de rodovias complementando o sistema se exaure no fatiamento, na privatização e na posterior destruição do sistema. A fragmentação dos trabalhadores também é um fator muito importante neste jogo mortal.

O fatiamento e a destruição do sistema logístico nacional através de extrema violência obrigam os trabalhadores marítimos a se agruparem e a se reinventarem no setor que sobrou, o de petróleo. A nova estratégia seria intensificar a unidade dos trabalhadores no setor, salvaguardar o que restou do controle dos trabalhadores neste sistema. A construção do sindicalismo unitário acontece em tordo de uma única federação, a FNTTAA, e uma confederação do setor de mar, portos e aeroportos, a CONTTMAF, na esperança que os demais setores façam o mesmo: juntar independentemente de divisões. Logrou-se vincular luta concreta na luta de classes, alternando greves, negociações e trabalho institucional. Em 2017, trinta anos depois da grande greve de 1987 e mais de 60 anos depois da histórica greve de 1953, os trabalhadores marítimos alcançam uma das suas maiores bandeiras: O um por um (1×1). Trabalhar 28 dias e folgar 28 dias, o que seria comparando com um trabalhador comum, como se este trabalhasse somente quinze dias do mês. Uma luta que começou com FHC e só terminou com Temer.

O novo ataque e novo golpe é através do governo Bolsonaro que tenta “modernizar” a cabotagem no Brasil, com fortes prejuízos para o trabalhador brasileiro. A tal da “BR do mar”. O sonho da patronal é acabar com a cabotagem brasileira, acabar com a possibilidade dos trabalhadores brasileiros exercerem poder sobre a logística brasileira. Uma radiografia do transporte mostra: 60% rodovias contra 16% de hidrovias (10% de navegação marítima costeira e 6% de hidrovias); então “modernizar” significa iniciativa privada pela boca. Os gigantes armadores da navegação formam um oligopólio mundial, no Brasil são três empresas dominando 99% do mercado. O transporte de containers no mundo é também um grande ‘clube privé’. No Brasil a cabotagem é operada por oligopólios estrangeiros ou por “empresas brasileiras” de capital estrangeiro.

Esta “nova BR do mar” não visa apenas retirar as garantias conquistadas no setor e rebaixar a legislação, se utilizando de uma errônea interpretação da MLC 2006 convenção internacional dos marítimos da OIT recentemente ratificada pelo congresso brasileiro; ela visa ‘entregar aos tubarões’ tudo que entra e sai do Brasil; a BR do mar é um ‘presente de grego’ para cada trabalhador brasileiro. Para Carlos Müller, atual presidente do Sindmar, “as nações não devem abrir mão de uma Marinha Mercante nacional forte e representativa, que possa contribuir como garantia de segurança logística, comercial e alimentar para sua população em época de paz e em momentos de conflito”, e afirma que somente a luta constrói o destino dos trabalhadores marítimos: “Não caiu do céu nem nos deram de presente, a luta sindical é responsável pelos marítimos brasileiros terem alcançado patamar muito acima das convenções da OIT”.

Além do ataque permanente, há a pandemia de Covid 19, impactando o setor aquaviário que respondem por 95% das cargas importadas e exportadas pelo Brasil, nele os níveis de trabalho e de fluxo de cargas seguem normais. Se segue normal, os salários precisam seguir normais, porque a taxa de lucro e de mais valia dos patrões também seguem normais. Mas existem armadores oportunistas, que baseados na lei de livre negociação solicitaram aos trabalhadores que aceitassem diminuir seu salário, os sindicatos agem para coibir este abuso. Existem termos aditivos assinados que impedem os patrões oportunistas de agir, mas se aproveitando da pandemia, existe pressão para que se façam acordos individuais que prejudicam os direitos estabelecidos. Por outro lado, se o transporte de containers está estável, existe uma diminuição no transporte de passageiros nos rios e no transporte metropolitano, mas até o momento isso não trouxe diminuição de salários para os trabalhadores. A prioridade é segurança já que a garantia de trabalho e 100% dos salários se encontra assegurada. Os sindicatos cobram medidas de evacuação de casos graves a bordo; segurança para manter os níveis de funcionamento da atividade e o abastecimento do país no enfrentamento da pandemia.

Outro grande exemplo de controle e poder dos marítimos é a história dos trabalhadores que operam a ligação na região metropolitana do Rio de Janeiro, que se organizam em torno de um dos sindicatos mais antigos do Brasil, o Sindfogo. Este sindicato foi um dos protagonistas da revolta e greve das barcas de 1959 junto com os operários navais. Também seria o grande protagonista da greve das barcas, nos marcos da greve geral de 2017. Trinta anos depois da grande greve de 1987, os trabalhadores marítimos das barcas, massacrados por privatizações e destruição de seus direitos, chegam ao impasse na campanha salarial. No dia 28 de abril de 2017 aderem à construção da greve geral unificando luta concreta à pauta política. As barcas que normalmente transportam 100 mil pessoas para o Rio a partir de Niterói por dia, neste dia transportaram apenas 10 mil.

A greve de 2017 também serviu para colocar no centro deste debate a questão do transporte metropolitano como questão da organização dos trabalhadores marítimos. A história da destruição da CONERJ, companhia pública de navegação do Estado do Rio de Janeiro significou um forte golpe para estes trabalhadores, mas não apenas para os marítimos. A destruição da navegação metropolitana “atinge em cheio” o transporte metropolitano. Foi por isso que os marítimos em 2017 se juntaram a juventude e os movimentos populares, e no seu piquete conversaram com a população que usa o transporte todo dia os motivos políticos daquela greve geral. Neste dia se conseguiu combinar política de transportes para a população, apoio popular, o poder e a vitrine da ação conjunta e popular dos marítimos no Rio de Janeiro; no debate do que poderia ser a ligação aquaviária mais prática e autossustentável para as massas trabalhadoras, se fosse público, estatal e do trabalhador, e se torna o pesadelo diário pela gestão privada.

Desenvolver as forças produtivas com possibilidades de exercício de controle e autogestão pelos trabalhadores contra o sistema capitalista. Do comandante Severino Almeida, hoje presidente da CONTTMAF é a frase: “Enquanto os patrões não inventarem uma máquina que passe milhões de toneladas de mercadorias e pessoas de um lado para o outro do mundo, nós temos poder, porque somos nós que transportamos tudo isso, então somos nós que temos que exercer este poder”. O protagonismo dos trabalhadores estratégicos organizados é absolutamente necessário para toda a classe.

Uma nova fase se inicia: desde o golpe de 2016 os marítimos exercitam novas formas de consulta da categoria, trabalham a comunicação virtual e institucional, melhoram sua infraestrutura organizacional e ousam ir além: a formação da frente de transportes do Rio de Janeiro (com marítimos, união intersindical portuária, aeroviários, rodoviários, caminhoneiros, metroviários e ferroviários) nasceu para construir a greve geral no ano de 2017, na forma de um pacto de unidade e ação no setor. No dia 28 de abril de 2017 esta unidade vai à prova: os trabalhadores do porto, das barcas em Niterói e do aeroporto Santos Dumont “cruzam os braços”; mas infelizmente caminhoneiros, rodoviários, metroviários, ferroviários e aeronautas não aderem à greve. A ausência destes setores foi mortal para a greve geral no Rio de Janeiro, apesar dos bloqueios de rua, dos esforços de outros sindicatos, do movimento popular, da juventude organizada.

Nesta disputa, os marítimos são um dos poucos a guardar um processo de formação autonomamente financiado, e ao mesmo tempo, operado em conjunto com a Marinha de Guerra. Isso significa dizer que para formar trabalhadores, os patrões precisam do Estado e do sindicato, neste sentido, formar também é poder. O trabalho organizativo e institucional se reverte na construção da união cívico-militar, quando cursos e palestras sobre conjuntura nacional, estudos brasileiros, desenvolvimento estratégico no setor dialoga com nacionalistas militares na disputa estratégica da realidade. Outra vinculação forte é com a academia brasileira: intelectuais orgânicos são chamados ao sindicato para refletir sobre a realidade brasileira nos marcos do controle desta realidade. Neste mesmo ano de 2017, durante a construção da greve geral, houve uma palestra de formação estratégica com Carlos Lessa, José Paulo Netto dentre outros pensadores brasileiros na sede da federação marítima: refletir sobre unidade, sindicalismo unitário, classista, combativo e internacionalista, criar um espaço de reflexão e lutas para os trabalhadores.

De acordo com o presidente da federação Ricardo Ponzi, especialista em estratégia de transporte na navegação aquaviária, fluvial e de interiores, a questão do poder que se coloca neste momento é como construir uma greve geral de tal magnitude que coloque o poder no centro, unindo marítimos e petroleiros com toda a cadeia do petróleo, que envolva também portuários, aeroviários, caminhoneiros e ferroviários. A questão do poder estratégico para parar a produção e a circulação de mercadorias é chave para o trabalhador marítimo, para os demais trabalhadores estratégicos, para o petroleiro, para a defesa da Petrobras, para o conjunto dos trabalhadores e o futuro do Brasil. É neste sentido que os marítimos trabalham desde o último golpe, em como retomar a grande agenda de luta dos trabalhadores no país: a partir da luta pela infraestrutura, que passa pelo controle da cadeia do petróleo e da logística das mercadorias estratégicas no Brasil.

Portanto, hoje, quais são as verdadeiras demandas dos trabalhadores marítimos? Definitivamente estão para além das demandas imediatas, elas estão na disputa pela cadeia logística e nela, pelo poder direto dos trabalhadores estratégicos nos marcos do poder popular. Passadas as grandes lutas do passado, ficou o acúmulo para refletir sobre o Brasil; a construção de um grande enfrentamento a partir da conscientização do povo brasileiro sobre o PRÉ-SAL, como se fez no passado pela campanha do petróleo; e por este caminho, de toda a cadeia produtiva no Brasil. O petróleo, que se tornou uma última trincheira para o trabalhador marítimo, neste longo momento de conjuntura de destruição de direitos dos trabalhadores desde os anos setenta, também pode ser a possibilidade do ascenso das lutas da classe trabalhadora nos setores estratégicos no primeiro quarto do século XXI. O controle direto é uma possibilidade real.

Além da estratégia brasileira, destaca-se uma experiência muito importante unindo mar e petróleo, é o sindicato de trabalhadores marítimos do petróleo argentino. O ‘sindicato naviero de hidrocarburos’. Este sindicato pratica ‘el controle obrero’: opera sua política sindical intervindo diretamente através de três estruturas. Os trabalhadores controlam uma empresa de navegação, uma cooperativa, e através do próprio sindicato, toda a cadeia produtora de petróleo desde a fabricação dos navios, toda a logística, até a entrega do produto do outro lado do mundo ou para as refinarias argentinas. O sindicato, segundo Daniel Ocampo, controla além da estrutura, os salários, a contratação e a demissão dos trabalhadores. Um poder de tal magnitude é raro, é único, e por isso mesmo deve ser, junto com o poder de intervir no controle do setor, o grande objetivo.

Existem experiências em curso. As experiências precisam ser estudadas e estimuladas. A tarefa de estudo para o controle da produção desde a feitura do navio até o frete e sua navegação no setor de petróleo pode ser um princípio na associação estratégica entre marítimos, petroleiros, e demais trabalhadores. Os marítimos nos ensinam que o exercício do controle para controlar o estado operário já começou, começa agora, contra as elites nacionais, pela disputa política dentro do estado burguês. Controlar a infraestrutura, controlar os trabalhadores (trabalhadores no exercício de autogestão pelo controle sindical classista), controlando pelo poder direto, quem é contratado, quem é demitido, quanto ganha de acordo com a produção, abrindo todos os livros patronais é um caminho para a eliminação dos patrões pelo exercício do controle direto e popular.

Se a luta prioritária é por trabalho, e a partir do trabalho, pelo controle da cadeia produtiva brasileira a partir da cadeia do petróleo; dela é possível disputar para retomar a cadeia do minério, do grão, e de todo o fluxo de mercadorias que entram pela importação e que saem pela exportação. O controle da cadeia produtiva do petróleo une marítimos, portuários, petroleiros, metalúrgicos que fabricam navios, caminhoneiros e ferroviários, e une aeronautas e aeroviários. Cada categoria pode, na estrada da greve de 1953 recuperar a sua mensagem, seu senso comum e construir consciência de classe.

Para os marítimos “contar a história do poder” significa “fazer navios para navegar e plataformas para explorar o petróleo”, cada setor a partir da estratégia de construção do poder popular pode interferir na produção: do aço, dos grãos, de todos os bens do país. Neste sentido estes esforços se casam à associação estratégica com rodoviários, metroviários, porque o controle das mercadorias e bens se completa no controle da circulação dos passageiros; e através dos movimentos populares e da juventude os bloqueios das ruas para protestar: isso é controle obreiro sobre a circulação de bens e mercadorias, mas também dos próprios trabalhadores e até da circulação da elite; um controle que finaliza no controle da cidade, das ruas, estradas, do transporte de massa e dos aeroportos. Um controle de novo tipo, anticapitalista, antiimperialista e antifascista.

Os trabalhadores não devem temer anunciar as suas intenções históricas; aprendizado e controle das políticas públicas da logística, da infraestrutura, do desenvolvimento das forças produtivas, no caminho do controle direto dos meios de produção e circulação de bens, mercadorias e pessoas. São os trabalhadores, pelo seu controle direto e exercício de poder popular, que devem ser os protagonistas dos locais de trabalho, de moradia, e das políticas que governam a comuna e a sociedade. Este poder precisa ser o poder estratégico da classe trabalhadora, discutido a partir dos setores estratégicos do trabalho.

A história da organização comunal dos bairros vermelhos e operários de Niterói, Rio de Janeiro, e São Gonçalo mostrou esta possibilidade. Cada trabalhador foi partícipe da construção da sua casa, do seu bairro e da política pública da cidade pensando o Brasil. A orientação política é determinante, porque sem o controle do Estado pelo poder obreiro, que começa nas pequenas coisas, passa pela logística e pela política, e o seu desenvolvimento; não pode existir nem desenvolvimento das forças produtivas, nem desenvolvimento econômico-social planejados pela classe, para a classe trabalhadora.

Através da boa orientação política, os trabalhadores da geração de 1953, de 1987, e porque não de 2017, podem e devem intervir criticamente neste mundo; a continuidade geracional das lutas e a tradição dos trabalhadores marítimos precisam ser estudadas pelo conjunto da classe trabalhadora. A história da oposição da consciência de classe à ideologia capitalista é a história da educação para organização, enfrentamento, inclusive insurrecional; podendo também ajudar a organizar a massa de trabalhadores precários e periféricos. E a partir de estruturas estratégicas, um guarda-chuva de sindicatos e movimentos populares, pode-se formar um grande fórum, por direitos e garantias democráticas, por trabalho, por moradia, por saúde, por educação, e pelo controle estratégico da logística e das forças produtivas. Um fórum de sindicatos, movimentos e juventudes. Os trabalhadores marítimos têm muito a contribuir para esta construção.

A história da luta estratégica do exercício de poder popular dos trabalhadores marítimos nos ensina que: trabalhadores estratégicos na disputa do controle do setor podem apreender a disputar a empresa operária, a cooperativa operária, o sindicalismo operário unitário, classista, combativo e internacionalista, pelo exercício de controle obreiro e direto, dentro, pelo, e pela superação do Estado capitalista. Na educação para o poder popular, nos lugares de moradia e de trabalho, durante breves momentos, mas que pode ressurgir e pode debater para além da questão concreta, com os trabalhadores a pauta mínima e a pauta máxima, o controle direto da infraestrutura, das forças produtivas, da tecnologia, da produção e da circulação de bens. O exercício de planejamento do Estado operário dentro da disputa pelo controle do Estado burguês. O exercício do poder popular, na luta concreta, na luta de classes, no tempo de maturação, o exercício crítico pela crítica do trabalho de base, da consciência de classe na classe.

Neste sentido, o projeto da construção de uma vanguarda histórica dos trabalhadores teve uma grande contribuição da vanguarda histórica dos trabalhadores marítimos, e grande parte da história e do projeto dos marítimos é o projeto histórico da classe trabalhadora. Unificar os trabalhadores para controlar a estrutura estratégica de desenvolvimento, para exercer o controle da fabricação e da circulação, para que cada um tenha trabalho para poder se somar na luta a partir do trabalho; e quando organizado se somar na produção e desenvolver as forças produtivas neste processo. O sonho de fazer navios para navegar, pode ser a realidade que entra por terra adentro; de marítimos a portuários, a caminhoneiros, a petroleiros, a metalúrgicos, a aeroviários e aeronautas;e a rodoviários e metroviários, de trabalhadores estratégicos a trabalhadores em geral, por solidariedade no conjunto da classe trabalhadora, para ter pão, paz, trabalho e liberdade.

O maior exemplo dos trabalhadores marítimos no seio dos trabalhadores estratégicos foi viver sua própria história como classe se opondo a classe patronal. Sair do pensamento individual e patronal e criar o seu próprio senso comum de solidariedade e compreensão do setor. Neste caminho poder desenvolver suas ideias a partir da experiência concreta de reflexões e poder exercido, fruto da solidariedade de classe que eles construíram para todos os trabalhadores; ideias sempre opostas à ideologia patronal, diametralmente opostas às ideias hegemônicas do sistema. Os marítimos nos ensinam que a possibilidade de superação da ideologia deste sistema no caminho de construção da consciência da classe só é possível com a disputa e superação das condições materiais que originam estas ideias dominantes. Por isso os marítimos se esforçaram tanto para controlar toda a cadeia produtiva do setor e se associam a outros trabalhadores para controlar as condições materiais de produção e circulação de bens e pessoas no Brasil.

Finalmente, a maior demanda, a maior lição que os trabalhadores marítimos podem nos dar é abrir a porta das possibilidades de organização da classe a partir da organização de trabalhadores estratégicos dentro do sistema capitalista. Pelo maior controle da produção e da logística, pelo exercício deste poder autogestionário e diretamente inserido no controle das forças produtivas nas massas. Quando se aumenta o número de trabalhadores, pode-se aumentar também, pela crítica do trabalho de base, o número de sindicalizados, e proporcionalmente o número de trabalhadores engajados na luta. Pode-se ainda aumentar o número de trabalhadores diretamente interessados pelo maior controle da produção e da logística sob o controle dos trabalhadores, como estratégia de construção do poder popular. O grande desafio da construção do poder popular que a história do poder marítimo evoca, é possibilidade de refletir no caminho de construção do poder gestor, do poder direto, do poder dos trabalhadores neste sistema, com um pensamento de superá-lo e de não reproduzir a sua maneira de governar este mundo.

Do operário naval Irineu que chegou a presidente e líder histórico é a frase: “Veja o que a formação e a luta fizeram por este velho militante, que não tinha nada o que comer e despejava maxixe na vala. Hoje eu olho para trás e posso dizer que sou feliz pela luta que eu participei, eu me completei na luta por dias melhores para o nosso país e para os nossos filhos”. Do comandante Bonfante: “A luta dos trabalhadores para não serem esmagados pelo capitalismo é uma luta sem tréguas. Eu prefiro as lágrimas da derrota à vergonha de não ter lutado. Amo a vida. É o maior bem que existe. O objetivo deve ser sempre melhorar a vida para que as pessoas possam usufruir desse bem”. O exemplo da tentativa de criar poder dos trabalhadores marítimos precisa chegar às novas gerações, para que elas possam através da consciência conhecer os heróis da classe trabalhadora.

Referências

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Gonçalves da Fonte Pessanha, Elina – Os operários navais do Rio de Janeirosob a ditadura do pós-64: repressão e resistência, Dossiê trabalhadores e ditadura, 2014
Navegadores de plantão: Biografia do excepcional comandante Emílio Bonfante Demaria, 2020
Montalvão, Ségio – Uma greve em dois tempos: O movimento nacional dos marítimos de 1953 no Rio de Janeiro, e os impasses da historiografia política, 2020
Montalvão, Ségio – A greve dos marítimos de 1953 nas lentes de outubro: uma revisão historiográfica,
A Voz Operária, 27 de junho de 1953
Revista UNIFICAR, Número 46, Sindmar, 2017
Revista UNIFICAR, Número 53, Sindmar, 2020
Pucu, Wollmann do Amaral, Luciana – Niterói operário: trabalhadores, política e lutas sociais na antiga capital fluminense (1942-1964)
Buonicuore, Augusto César – Os comunistas e a estrutura sindical corporativa (1948-1952) entre a reforma e a revolução, 1996
Buonicuore, Augusto César – Sindicalismo Vermelho: a política sindical do PCB entre 1949-1952, 2020
Badaró Mattos, Marcelo – Greves, sindicatos e repressão policial no Rio de Janeiro (1954-1964), 2004