Democracia e liberalismo: entre o sonho e a realidade
(Foto: Matthias Müller)
Frente às contradições e limitações da democracia liberal expostas em sua contra-história, ergue-se a democracia mitológica.
Por Pedro Marin | Revista Opera
A palavra “democracia” tem sua origem no grego δημοκρατία, junção de δῆμος (demos, ou povo) e κράτος (kratos, ou poder). No dicionário Oxford, há duas definições: 1 – governo em que o povo exerce a soberania. 2 – sistema político em que os cidadãos elegem os seus dirigentes por meio de eleições periódicas.
Vemos logo que, ao longo da história, a segunda definição sobrepujou a primeira, de forma que a democracia, no mundo contemporâneo, acabou se caracterizando mais como um regime da representação do que de soberania; a soberania só existe de jures, de forma que a legitimidade de sua transição do povo para representantes é delgada, o que torna sua sustentação coercitiva.
Trata-se de um fenômeno global e , olhando a história, é certo que o domínio político dos poderosos sobre o povo, com legitimidade questionável, é mais regra do que exceção. Mas a época em que vivemos tem algo de especial, já que a partir do fim da Guerra Fria e da derrocada do bloco soviético o mundo foi inundado por sentimentos e ideias segundo as quais os grandes conflitos, as guerras e a instabilidade ficavam no passado. Este novo mundo, do último homem e seu fim da história, viveria agora uma integração global nunca vista antes, regida pelos princípios do livre mercado e realizada através da democratização e da libertação contínua das sociedades. Os povos emergeriam da tristeza da terra para uma grande metrópole perfumada e de telas brilhantes, na qual os humanos se integravam, de Nagasaki a Manágua, por meio do consumo e das telecomunicações. A sociedade estaria libertada, empoderada, com indivíduos capazes de tomar decisões e influir em seu destino. O primeiro mundo encontraria o terceiro – agora “em desenvolvimento” – numa grande Pangeia dos mercados. A legitimidade seria autoevidente, à medida que todos os problemas fossem, pouco a pouco, deixados ao passado. Mas depois de aproximadamente duas décadas, até o mais aguerrido ideólogo pôde ver a olhos nus as amplas rachaduras; na terceira década, as promessas já viraram pó.
Em nossa região houve também um cenário singular. Saímos de ditaduras militares, sustentadas à força e mistificadas pela Guerra Fria, e embarcamos rapidamente no expresso democrático. Alguns países mais duros com seu passado, outros mais frouxos; fato é que se podia suspirar aliviado com a perspectiva de decidir o futuro. Primeiro vimos emergir as lideranças desse novo sistema, global, liberal, brilhante. Depois, uma onda progressista, a chamada “onda rosa”, com seus diferentes tons ao longo do continente. Apesar dos percalços, vivia-se a ilusão de que a legitimidade popular bastava como alavanca de força contra a reação; a despeito das pressões, acordos e concessões, o tempo dos golpes, das guerras e dos pronunciamentos já tinha passado nesse mundo integrado e globalizado. A América Latina logo seria America. E na segunda década víamos a olhos nus as amplas rachaduras; na terceira década, as promessas já tornavam ao pó.
Tivemos também algo de especial em nível nacional. Em contraste com outros países da região, historicamente temos um baixíssimo nível educacional, uma cultura política rebaixada – com uma memória apagada, por vezes à bala – e um raso nível de participação popular na política, que se pode testemunhar (e ignorar) em aspectos tão básicos como os crescentes níveis de abstenção eleitoral. Mas com o ciclo petista o povo agora teria lugar, ascenderia numa grande corrente, se qualificaria, e o país cresceria em meio à comunhão das classes, com lucros espetaculares para bancos e universidades para os pobres. “Brazil takes off” (O Brasil decola), estampava a revista The Economist em 2009, com um Cristo Redentor se elevando como um foguete. Quatro anos depois, a capa se perguntava: “Has Brazil blown it?” (O Brasil estragou tudo?), com o mesmo Cristo voador agora desgovernado. Era a segunda década, quando se viam a olhos nus os rasgos das rachaduras; na terceira, as promessas já viraram pó.
A ascensão do capitão e a reabilitação de um cadáver
Mas hoje, a dois anos da posse de Jair Bolsonaro, vemos, advinda de muitos lados, a glorificação e a reabilitação moral da “democracia” liberal, imediatamente após sua maior crise desde a redemocratização. O fenômeno é tão amplo e permissivo que até aqueles que ontem se esforçavam por eleger o capitão, ou que consideravam tarefa demasiadamente árdua escolher entre ele e seu oponente, hoje posam sob os holofotes com seus escudos prateados, prontos a defendê-la. Os repetidores contumazes de “como as democracias morrem” parecem transformá-la em um sentimento; repetem, se vestem de amarelo, e logo a democracia não é mais modelo organizativo-político, mas fenômeno sentimental; não cabe mais ao cérebro, e sim ao coração. Enquanto murmuram em seu nome e aquecem seus corações, creem que ela está viva. Antes olhassem no espelho, remexessem nos arquivos de seus jornais, nas operações policiais, nas atuações de juízes, nas injustiças que ignoraram e apagaram, nas reformas impedidas; aí veriam como ela morria, pouco a pouco, enquanto se glorificava a ditadura do formalismo.
As palavras dos que hoje querem reabilitar o liberalismo e defender o democratismo formal – um liberalismo “verdadeiro”, “puro”, “original”, diferente daquele do presidente; uma democracia limitada, contraditória, violada, mas defendida sempre e entendida como princípio – logo encontram acolhida nos corações conservadores e forma-se a grande corrente na qual o conservador, antigo defensor dos enviados de Deus para governar contra a burguesia rebelde, se vê defendendo a gradual e progressiva transformação da sociedade, em pequenos passos, pelas forças de mercado – sinal de que ele é seu novo Deus, sua moral, sua cultura – e o liberal, arcaico revolucionário e aríete das transformações, se vê obrigado a se equilibrar na defesa da esperança de mudanças tímidas contínuas. Não trato dos toscos hayekianos ou dos “conservadores morais” dos quais fala Wilson Gomes em artigo na Cult. São liberais e conservadores de fato, que dizem coisas como “a pobreza diminuiu nos últimos séculos, somos hoje todos mais ricos”, sem esconder as vergonhas de ignorar que hoje testemunhamos, ao contrário, o aumento da pobreza, ou “o favelado hoje vive melhor do que vivia há 20 anos”, frase de um democrata tão comprometido que, frente à matança de um Estado dito democrático contra seus próprios cidadãos, se dispõe a sugerir que esperemos mais algumas décadas para ver se alguns dez passam a deixar de morrer. É ou não sinal de que o lucro, antes de uns senhores feudais que submetiam humanos a seu domínio, sobrepujou a moral humanista dos liberais e que a vida sob a liberdade, antes formalmente defendida para todos, logo tornou-se a liberdade de fato de permitir a morte de alguns? Os direitos naturais devem ser progressivamente garantidos (um tipo de natureza que se deve conquistar!), a Constituição pode não só ser violada, como se auto-violar, na medida que os milhares que sentam em prisões sem terem sido julgados são uma “falha” a ser resolvida, e as reformas econômicas – que atentam contra os direitos sociais da Carta Magna – são defendidas; os liberais parecem crer que a Constituição pode permitir o contrário daquilo que ela prescreve sem que isso constitua nenhum tipo de erosão. Depois das democracias na Grécia e em Roma e, frente às limitações de uma puramente representativa, nossos liberais erguem agora a democracia mitológica, na qual os guerreiros se põem contra os pobres e os bons rezam aos deuses, que do panteão dos tempos devem resolver, pouco a pouco, as sangrentas contradições e limitações de seu sistema. Que há de democrático nisso? Naturalmente, só o mito, mas de mitos vivem muitos.
Leonardo Laurindo nos revela cristalinamente o porquê de tal atitude ser não só moralmente incompatível com a defesa democrática, mas também prática e estrategicamente, ao comentar a decisão (ignorada) do STF de não permitir operações policiais durante a pandemia: “A forma jurídica, porém, não comporta a desnaturalização de uma instituição de repressão como a polícia. Por isso, escondido de olhos inocentes, naquele espaço que não cabe nas manchetes das notícias online, vinha que as operações poderiam sim acontecer, desde que ‘excepcionais’ e com autorização do Ministério Público. O mesmo Ministério Público que sempre pede o arquivamento de assassinatos cometidos a sangue frio, com bala na nuca de cima para baixo. Um belo critério. […] O ministro Fachin disse ainda que, caso seja realmente necessário fazer uma operação durante a pandemia, que seja feita com ‘cuidados especiais para preservar a saúde dos moradores’. A morte se aproxima com balas esterilizadas com álcool em gel. Ou seja, uma decisão fraca. Fadada a ser ignorada e mostrar debilidades ao inimigo. […] É como se o Supremo Tribunal assinasse a berros para todos ouvirem que é um tribunal pífio, débil, carcomido, capenga, mequetrefe, em definhamento… E me faltam adjetivos que não sejam passíveis de processo. Os dois que votaram contra, na votação de 05 de agosto, foram Alexandre de Moraes, recém tornado querido de um certo ‘progressismo’ por ‘combater o bolsonarismo das redes’, e Luiz Fux, que em maio deste ano disse que o Tribunal está ‘vigilante’ contra ‘agressões às instituições’ da democracia, além de estar empenhado em construir ‘uma visão republicana de país’. Na visão das excelências, nossas instituições estão a salvo”, escreve.
É importante se perguntar porque estes nossos liberais-conservadores, ou conservadores-liberais, se esforçam tanto em reabilitar sua cadavérica concepção de democracia. Há duas explicações. Primeiro, foram ultrapassados em seu próprio jogo. Os velhos motes, que durante as últimas décadas ergueram dia após dia contra os governos petistas – ora para denunciá-los, ora para mobilizar votos para si – deram seus frutos. Não só em um fenômeno como o presidente, cuja ascensão eleitoral os humilhou, mas no próprio tecido social, onde foi formada uma certa demanda por uma direção radical das tão propagandeadas premissas liberal-conservadoras. Se a corrupção é um problema, e o PT é seu signo, que fuzilemos a petralhada. Se o aborto é indefensável, um tabu para virar votos, que Messias esteja no trono. Se a ditadura foi branda, se há um “revanchismo esquerdista”, uma farsa atuando, um passo à frente e tragamos o candidato dos militares. Se os sem-terra em movimento são motivo de escândalo, que tal um candidato afinado com os jagunços? E assim vamos indo; os pais dando voltas a renegar o filho deformado. “Os velhos dirigentes intelectuais e morais da sociedade sentem o chão faltar-lhes sob os pés, se dão conta de que as suas ‘prédicas’ tornaram-se exatamente ‘prédicas’, isto é, coisas estranhas à realidade, forma pura sem conteúdo, espectro sem espírito”, escreveu Gramsci.
Em segundo lugar, há a percepção, até certo ponto acertada, de que em resposta ao bolsonarismo há uma tendência favorável ao aparecimento de uma esquerda mais radicalizada e combativa do que aquela representada e por vezes contida pelo petismo. Assim, com um governo de extrema-direita no poder, os liberais tentam rearticular um pacto político que assegure a aplicação de seu programa econômico numa forma política que cause menos comoção e acirramento, ainda que assentada nas mesmas bases. Para tanto, é necessário aproximar os setores mais moderados da esquerda – aqui está a defesa de uma “frente democrática” e a tentativa de forçar uma “autocrítica à direita” – ao mesmo tempo que se afasta e rejeita os setores mais radicais, recuperando-se a fórmula do “autoritarismo” para fazer comparações descabidas.
Em suas conhecidas notas sobre Maquiavel, Gramsci escreveu que a ascensão do cesarismo costuma ocorrer quando há uma luta total entre dois agrupamentos políticos (A contra B) que, sendo insolúvel, acaba na destruição mútua. Neste contexto é que emerge um César, que se beneficia da destruição precedente dos dois grupos. O comunista italiano também separou o cesarismo em dois tipos: um meramente quantitativo, que preserva a forma de organização da sociedade e um qualitativo-quantitativo, que a altera. Identifica em Napoleão I e em César o primeiro tipo (que classifica como “progressivo”, pois assentado nas forças progressistas) e Napoleão III no segundo tipo (classificado como “regressivo”, pois servindo à reação).
A despeito de qualquer polêmica quanto ao cesarismo, é indiscutível que Bolsonaro emergiu precisamente de um conflito insolúvel entre dois grandes agrupamentos – prova maior é que seu inimigo principal durante as eleições foi o Partido dos Trabalhadores, mas o principal derrotado foi o Partido da Social Democracia Brasileira, que ficou reduzido a umas poucas cadeiras no parlamento enquanto o partido do presidente à época, o PSL, crescia. Também parece claro que, se há um tipo de cesarismo de Bolsonaro, é de tipo meramente quantitativo – ainda que haja uma tendência a uma mudança da esfera da organização política, chamada por alguns de “fechamento da democracia”, ele preserva todas as bandeiras do agrupamento reacionário derrotado, mudando somente sua forma de mobilização. Em certo sentido, Bolsonaro é mais “tradicional” do que todos os vencidos, na medida que traz de volta, de vez, um partido histórico sem sigla, fundador de fato da República e verdadeira reserva da ordem e da conservação.
Um liberal poderia esclarecer – e há muitos que tentam – que a ascensão de Bolsonaro é mais uma fatalidade histórica para a lista; uma culpa compartilhada entre os dois agrupamentos em disputa, que insistiram em sua guerra. Mas cabe se perguntar, então, qual foi a posição de cada um dos agrupamentos; qual deles mobilizou as bizarrices jurídicas contra o outro, e especialmente quais foram as posições destes mesmos liberais à época, a qual grupo se alinhavam e defendiam; quem eram, naquele contexto, os democratas?
Vaso ruim que não quebra
A polêmica liberal ganhou impulso com a recente entrevista de Caetano Veloso ao jornalista Pedro Bial. Frente à afirmação do cantor de que mudara suas perspectivas sobre o liberalismo ao ler a obra do marxista italiano Domenico Losurdo, por intermédio do comunicador Jones Manoel, uma trupe se pôs em movimento, se desdobrando para demonstrar as falhas na obra do pensador, ressuscitar os crimes do socialismo, e se pôr a defender, afinal, o regime democrático-liberal.
Na maior parte das críticas, e normalmente com base no livro Contra-história do liberalismo, a obra de Losurdo é resumida a uma tentativa de apontar contradições entre as ideias dos pensadores liberais e sua prática “individual”. Isto é, a obra do italiano seria meramente uma demonstração da hipocrisia individual dos pais do liberalismo.
Mas, como bom marxista, e acima de tudo dedicado hegeliano, Losurdo observa a ascensão do liberalismo não a partir da exposição de suas ideias e princípios, mas sim historicamente, como desenvolvimento prático. Constata, assim, que ele era produto de um deslocamento da servidão, antes realizada em escala nacional, por senhores de terras, agora realizada de forma mais abrangente no resto do mundo. Revela que é por meio da exploração escravocrata e do colonialismo que se criam as condições materiais para, na Europa, uma burguesia ascendente declarar seus princípios de liberdade e igualdade; as correntes que foram quebradas na Europa foram antes postas em pernas na África, Ásia e Américas.
Não se trata portanto, para Losurdo, de uma “hipocrisia individual”, mas antes de uma contradição que se manifesta de fato e que é sustentada ideologicamente ao longo da história – cá está a importância em fazer uma contra-história.
O pensador tampouco pensa em termos de uma violência “do bem” e outra “do mal”, como sugere porcamente Contardo Calligaris em sua coluna na Folha. Via, de novo, a contradição em seus termos práticos, materiais: descrevera a ascensão do fascismo e especialmente do nazismo na Alemanha como uma contrarrevolução colonial, isto é, uma tentativa de uma antiga potência decadente em recuperar seu status por meio de um projeto colonial na Europa, que tinha entre seus alvos a União Soviética. Losurdo observa como Hitler se esforçava por alcançar seu “faroeste” no Leste Europeu; como o ideólogo nazista Alfred Rosenberg descrevera os Estados Unidos como um “maravilhoso país do futuro”, que formulou a “ideia de um Estado racial”; como Hitler dissera “sustentar uma doutrina similar [à Doutrina Monroe]” para a Europa. Quando Losurdo diferencia a violência do colonizado da do colonizador, quer seja na União Soviética, quer seja no Haiti, não parte do bem e do mal – mas da constatação óbvia, ainda que tão ignorada, de que uma força busca colonizar enquanto a outra busca se libertar ou impedir seu cárcere. Essas contradições se manifestariam também depois da derrota nazista. No funeral da intelectual, jornalista e militante radical da Fração do Exército Vermelho (RAF), Ulrike Meinhof, o editor Klaus Wagenback discursou dizendo que o responsável pela morte de Meinhof tinha sido “o extremismo daqueles que chamavam de extremistas os debates sobre a mudança das condições [da Alemanha pós-hitlerista]”. Na ponta da caneta dos liberais e democratas, Meinhof e seu grupo passaram à história como terroristas desalmados e atrozes. Mas aquela Alemanha, subjugada ao domínio norte-americano, com um governo infestado por ex-oficiais nazistas – incluindo Reinhard Gehlen, major-general de Hitler, que seria líder da Organização Gehlen, uma agência de inteligência afiliada à CIA para combater o comunismo, e posteriormente fundaria e presidiria o Serviço Federal da Inteligência da Alemanha Ocidental – seria chamada de democrática.
O regime democrático, neste caso subjugado pelo domínio estrangeiro, erguia seu sistema de inteligência e seu combate aos comunistas com os mesmos homens que ergueram o nazismo. Os militantes da RAF, crianças nos tempos nazistas que se revoltavam com aquela nova normalidade, foram feitos “terroristas”, não só em sua época, nas manchetes de jornais, mas para a história. No encontro dessa “democracia” com aquele “terrorismo”, a democracia matou e os terroristas foram os mortos; os laudos sobre a morte de Meinhof diziam “suicídio por enforcamento”, história que ouviríamos de novo, aqui no Brasil, três anos depois, em condições similares. Compreender que a violência da RAF e a do estado alemão eram diferentes, ainda que se queira fazer odes à paz, é primordial. Compreender que o estado alemão se assenta nessa história também.
Assim como são coisas diferentes que um certo agrupamento no Brasil tenha insistido em “fazer a presidente sangrar”, em revistar as urnas, em usar do apoio tácito de juízes e jornais, e por fim em seguir para um processo golpista, enquanto o outro tentava conceder, recompor, ignorar, sonhar. Mesmo que guerreassem mutuamente, não seriam iguais – porque não estavam em posições iguais, tampouco partiam do mesmo ponto. Em toda guerra há um primeiro disparo, e os objetivos são sempre distintos – caso contrário, guerra nenhuma haveria.
Felizmente, a história não acabou em 1991 e, ao invés de olharmos ao liberalismo e à democracia no passado, podemos olhá-los hoje. Antes feitas sob o Destino Manifesto, o “Fardo do Homem Branco” e a civilização de povos bárbaros; hoje feitas pela “liberdade” e pela “democracia”, pela segurança nacional e internacional, contra o terrorismo: as guerras seguem sendo as mesmas. E, acima de tudo, não variam muito de acordo com as subjetividades políticas de seus líderes: desde o final da Segunda Guerra, os Estados Unidos tiveram seis presidentes democratas e sete republicanos; ao menos 16 guerras cabem aos primeiros e 14 aos últimos. Que liberdade têm os novos escravos da Líbia? Em quem votam os mortos no Iraque? Com que boca grita a soberania do Haiti? Quão democrático foi o golpe na Bolívia? São liberais os carabineros no Chile? As perguntas podem se estender ao território de qualquer favela das grandes metrópoles brasileiras, sem que nossos liberais e democratas se acanhem em falar em democracia, invocando a fórmula mágica das coisas que “vão melhorar aos poucos”. Além de tudo, reivindicam para seu deus a premissa de decidir o ritmo da história – não cabe a ele, então, a soberania de fato?
Não é justo observar que aspectos fundantes do totalitarismo nazista podiam ser encontrados na “maior democracia do mundo” por até 20 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, com as leis Jim Crow? É verdadeiro observar algum tipo de “igualdade do mal” entre o Partido dos Panteras Negras e o FBI, ou ainda a Ku Klux Klan? Não é certo dizer que há uma continuação da Jim Crow no democratíssimo sistema prisional norte-americano, este sim o maior do mundo, onde os negros são maioria absoluta apesar de serem uma minoria nacional e onde prevalece o trabalho forçado? A expressão máxima da validade da contra-história de Losurdo não está precisamente na 13ª Emenda norte-americana, que assegura que “não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado”? Não fica clara a contradição real quando, na própria letra da lei, a escravidão e o trabalho forçado são rechaçados a não ser como punição por um crime, que convenientemente atinge desigualmente os filhos e netos dos que ontem sofriam o suplício da escravidão? O gulag soviético acabou, quando acabará o norte-americano? E o brasileiro? Se o primeiro serve para os discursos liberais sobre o autoritarismo, por que os dois últimos são reconhecidos no máximo como “falhas” que o tempo deve apagar?
Pedro Marin
24 anos, é editor-chefe e fundador da Revista Opera. Foi correspondente na Venezuela pela mesma publicação, e articulista e correspondente internacional no Brasil pelo site Global Independent Analytics. É autor de “Golpe é Guerra – Teses para enterrar 2016” e co-autor de “Carta no Coturno – A volta do Partido Fardado no Brasil.