Em defesa da filosofia, contra a fuga da história
Todo discurso filosófico tem uma dupla historicidade. E toda análise da história carrega conceitos e categorias de base filosófica.
Por Jones Manoel
Revista Opera
Marx e Engels, no seu clássico A ideologia alemã, fazem uma importante reflexão, “mas não apenas em suas respostas, mas já nas próprias perguntas havia uma mitificação” (2017, p. 83). Perguntar qual a relação entre filosofia e história pode pressupor uma separação auto constituída entre ambas. Nessa ideia, pergunta-se qual a influência ou contribuição da filosofia na história e vice e versa. A pergunta contém uma mitificação.
Para explicar essa mitificação, é preciso fazer um breve desvio de rota. Podemos lembrar das mitogêneses da sociedade sobre o “estado de natureza”. Mais do que um mito laico de explicação do surgimento da sociedade, a ideia do “estado de natureza” funcionava como uma categoria filosófica central a partir do qual se desdobrava uma série de reflexões concatenadas. Não faz sentido debater com John Locke, Thomas Hobbes ou Jean-Jacques Rousseau sobre a existência ou não um “estado de natureza” a partir da pesquisa histórica. A categoria de “estado de natureza” é metafísica, idealista.
Podemos debater apenas se o conjunto das reflexões derivadas da categoria idealista de “estado de natureza” guarda coerência imanente, interna, com a totalidade do discurso filosófico do autor. Assim como não faz sentido debater a partir da pesquisa histórica o que Marx chamava de “robinsonadas” – em poucas palavras, as explicações literárias, metafóricas e idealistas para o surgimento do capitalismo.
Esse idealismo filosófico, contudo, é coisa do passado. Imagino que ninguém sério busque debater algum conceito central da vida contemporânea, como a noção de democracia ou liberdade, a partir de um conto literário de dois seres humanos numa ilha ou de um mítico estado primitivo para a partir disso operar um conjunto complexo de reflexões que não tocam na história.
Na nossa visão contemporânea, não existe filosofia nem conceitos filosóficos sem lastro histórico. A grande questão é que o sujeito pode não ser consciente do lastro histórico e da historicidade que usa. Quando Theodor Adorno e Max Horkheimer escreveram o seu célebre Dialética do Esclarecimento, eles operavam com uma noção histórica de modernidade, ainda que essa historicidade não fosse explícita ou, talvez, até consciente. Um exemplo do debate sobre a historicidade inconsistente pode ser encontrado no livro Revolução Africana, onde fiz uma crítica a uma célebre frase de Adorno em que dizia que “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro”.
Nessa simples frase está contida uma noção histórica central e com vários usos políticos no mundo hodierno e uma série de teses derivadas. A noção central é que Auschwitz é o ápice da barbárie humana, e as várias teses derivadas transitam desde a ideia do Holocausto contra os judeus como uma excepcionalidade histórica (nada parecido tinha acontecido antes) até um menosprezo ou ocultamento total da questão colonial na modernidade.
Quando fiz esse debate não pressupus que Adorno era um racista que odiava africanos e asiáticos e, por isso, ocultou de propósito os massacres dos quais eles foram vítimas na modernidade. Muito menos deixo de considerar o contexto sociopolítico e pessoal-afetivo embutido na reflexão do pensador alemão. Debater e criticar a historicidade oculta (ou explícita) em toda reflexão filosófica é apenas um meio de buscar fazer o que Antonio Gramsci chamava de crítica: compreender um fenômeno em sua totalidade e historicidade complexa e multidimensional.
Alguém pode dizer que eu estou reduzindo a filosofia à análise histórica. Obliterando as legalidades específicas de cada área do saber. Essa crítica é errada. Sei e considero as especificidades da filosofia e da história, porém, como disse um poeta: não são iguais, mas não vivem separados. Todo discurso filosófico tem uma dupla historicidade (historicidade em si do discurso filosófico e do objeto que o discurso filosófico busca apreender). E toda análise histórica carrega conceitos analíticos e categorias de base filosófica que alteraram a própria percepção do objeto estudado (e influencia na própria formulação do problema: lembre-se que as perguntas são tão importantes quanto as respostas).
Toda essa introdução, antes de passar para o tema central, tem um único e simples objetivo. Defendo que só é aceitável um discurso filosófico que se afirme fora da história se ele operar como um idealismo de tipo antigo, reivindicando categorias metafísicas estilo “estado de natureza” ou as “robinsonadas” dos primeiros economistas políticos. Caso contrário, todo debate filosófico será mergulhado na história e banhado de historicidade (o que não significa, friso, tomar a análise histórica per si como crítica filosófica).
Feita essa introdução, posso comentar a questão central. O estimado professor Filipe Campello, meu conterrâneo e pessoa com quem já tive o prazer de debater, escreveu um texto intitulado “Em defesa da filosofia”. Nesse instigante escrito, Campello realiza em dois momentos o que eu considero uma fuga da história imaginando uma filosofia – ou reflexão filosófica – de costas para história.
Antes de entrar nesses dois momentos de fuga da história, uma pequena questão. É um erro de Campello afirmar que eu encontrei em Losurdo “uma espécie da prova que procurava para fundamentar sua crítica ao liberalismo”. Losurdo, sem dúvidas, é o mais qualificado autor que conheço na produção de uma crítica sistemática – no sentido de Antonio Gramsci de crítica – ao liberalismo, mas, antes de Losurdo, eu conhecia as obras de Marx, Engels, Lenin, Antonio Gramsci, Rosa Luxemburgo, Loïc Wacquant, Nicos Poulantzas, etc. E basta abrir as páginas d’O Capital de Marx, em especial o capítulo sobre a acumulação primitiva de capital, para ter uma potente crítica do liberalismo (ou então, a continuidade das reflexões marxianas realizadas no campo da criminologia por Dario Melossi e Massimo Pavarini em seu clássico Cárcere e fábrica).
Agora indo ao principal. Campello parece reduzir o livro de Domenico Losurdo Contra-história do liberalismo a argumentos que se referem a “fatos históricos”. Implícito é a ideia de um ajuntamento de fatos históricos separados da reflexão filosófica. Nesse ponto, creio que Campello expressa um baixo domínio das reflexões losurdianas. O livro de Losurdo não é um amontoado de fatos aterrorizantes sobre o liberalismo – como andou dizendo um professor da UnB –, mas uma reflexão filosófica, à luz da história, sobre o liberalismo enquanto projeto ético, político e filosófico. O que Losurdo faz é tirar o debate sobre o liberalismo do reino das robinsonadas filosóficas.
No Brasil, por exemplo, é comum ouvir que o liberalismo não é uma ideia bem aclimatada, dado que os liberais nacionais defenderam por muitos anos a escravidão e historicamente convivem muito bem com o autoritarismo, compreendido como a negação da liberdade. O pressuposto dessa leitura que tem intenção de ser “histórica” (e crítica) é uma visão falseada, sem lastro real, da história do liberalismo na Europa Ocidental e Estados Unidos. Quando está elevada a nível de conceito filosófico a historicidade real da relação do liberalismo com a escravidão, fica impossível considerar a harmonia entre liberalismo e escravidão nos Trópicos uma espécie de anomalia frente à doutrina em sua pureza ou sua origem.
Assim como elevada a nível conceitual e filosófico a relação orgânica do liberalismo com o colonialismo, temos que debater que há no jusnaturalismo e no debate liberal sobre o homem como portador natural da liberdade e da razão, uma múltipla conceituação filosófica da ideia de homem. Quando John Stuart Mill, no seu famoso livro On liberty, defende, ao mesmo tempo, a liberdade e a colonização da China, a pesquisa caminha para pensar os variados conceitos de humano e seu negativo na obra do famoso pensador britânico. E não se trata de fazer uma espécie de leitura sintomal do texto buscando sentidos ocultos no intratexto, mas de pensar a historicidade inscrita na reflexão filosófica que só é revelada na própria crítica filosófica com uma acurada leitura histórica.
Quando um liberal diz que sua doutrina sempre defendeu a liberdade, a democracia, os direitos humanos e do indivíduo, isso é um pouco mais que mentira e uma tosquíssima análise histórica. É um empobrecimento da reflexão filosófica sobre liberdade, democracia, direitos humanos e do indivíduo, que nega sua historicidade, conflitividade, enriquecimento conceitual. Hoje afirmar-se como defensor da liberdade é antagônico com a defesa da escravidão. No século XVIII, ao contrário, não. Não considerar esse dado histórico é fazer uma filosofia pobre em todos os sentidos possíveis no debate sobre liberdade!
A pergunta que abre o livro Contra-história do liberalismo é “O que é o liberalismo?”. No primeiro capítulo do livro, da página 13 a 46, Losurdo busca mostrar que as respostas correntes para essa pergunta estão erradas à luz da história. A conclusão do autor, contudo, não é que o liberalismo seja hipócrita ou que exista uma espécie de dualidade do liberalismo no “mundo das ideias” e no “mundo real”, mas repensar, em nível filosófico, a doutrina liberal lastreada na sua historicidade concreta.
Não há nada próximo das preocupações de Campello como a de que “refutar uma teoria apenas com base em fatos históricos significa incorrer em uma falácia genealógica”, ou que “é ingênuo culpar Adam Smith pelo fato de os Estados Unidos terem entrado em guerra com o Vietnã ou por ter invadido o Iraque” ou então esse procedimento: “se se quer criticar o liberalismo, ao invés de reduzi-lo à história das democracias ocidentais, a questão deve ser, antes: qual o problema das ideias liberais?”.
Campello, na busca por evitar reducionismos, faz uma crítica que se for direcionada a Losurdo é totalmente injusta e não roça no tipo de reflexão do autor. E, nessa busca por tentar elevar o debate, acaba operando uma fuga da história na tentativa de negar uma historicidade vulgar.
A segunda fuga da história – essa bem mais grave – são os comentários de Campello sobre a obra da pensadora alemã Hannah Arendt. Primeiro, meu conterrâneo afirma que Arendt defende que “o potencial transformador da Revolução Francesa foi esvaziado quando a ação política dos revolucionários é substituída pela promessa de uma marcha irrefreável da história”. Nesse primeiro ponto, não posso de forma alguma concordar com Campello. Ainda que Hannah Arendt critique realmente o que chama de uma filosofia da história que pensa em termos de “necessidade histórica”, uma teleologia em que não existe propriamente ação humana, mas a materialização dos desígnios próprios da História, esse não é nem de longe o centro da sua crítica à Revolução Francesa.
O centro do argumento de Hannah Arendt é de que na Revolução Francesa a questão social, e não a criação de um novo corpo político, é que cumpriu o papel central, ao contrário da Revolução Americana. Isso fica patente, por exemplo, nesse trecho:
“A pobreza é mais do que privação, é um estado de carência constante e miséria aguda cuja ignomínia consiste em sua forma desumanizadora; a pobreza é sórdida porque coloca os homens sob o ditame absoluto de seus corpos, isto é, sob o ditame absoluto da necessidade que todos os homens conhecem pela mais íntima experiência e fora de qualquer especulação. Foi sob o império dessa necessidade que a multidão se precipitou para ajudar a Revolução Francesa, inspirou-a, levou-a em frente e acabou por conduzi-la à ruína, pois era a multidão dos pobres. Quando apareceram no palco da política, a necessidade apareceu junto com eles, e o resultado foi o poder do antigo regime se tornou impotente e a nova república se mostrou natimorta; a liberdade teve de se render à necessidade, à premência do processo vital em si […]. Foi a necessidade, a carência premente do povo, que desencadeou o Terror e condenou a revolução à ruína.” (ARENDT, 2011, p. 93-94 – grifos nossos).
Esse argumento central de Hannah Arendt foi debatido por mim e Gabriel Landi no prefácio do livro Raça, Classe e Revolução: a luta pelo poder popular nos Estados Unidos. No referido prefácio é mostrado que o argumento de Hannah não se sustenta na coerência interna do seu discurso (crivado de contradições e incoerências irreconciliáveis) e no plano histórico. Ainda podemos fazer um exercício: vamos imaginar que Campello esteja certo e que o centro da crítica de Hannah Arendt à Revolução Francesa seja a “promessa de uma marcha irrefreável da história”. De novo, à luz da história, é um argumento insustentável.
O que é a história dos Estados Unidos – lembrem-se que Hannah contrapõe de forma positiva a Revolução Americana à Francesa – senão, também, uma sucessão de “promessas de uma marcha irrefreável da história”? Primeiro, a missão universal do cristianismo, que não era bem ação humana, mas somente a materialização dos desígnios de Deus no mundo dos homens, conquistando a terra dos índios pagãos e os exterminando. Depois, baseado em um mito teológico de aparência laica do excepcionalíssimo americano, levar a liberdade e a democracia ao mundo todo (igualmente uma “marcha irrefreável da história”, missão inscrita na essência do povo americano e confiada por Deus, sendo os humanos apenas instrumento de sua realização). Poderia provar esse ponto citando à exaustão os trabalhos de Perry Anderson, Domenico Losurdo, Immanuel Wallerstein, Moniz Bandeira, José Luís Fiori e tantos outros.
Além de insustentável na base histórica de todas as categorias principais da reflexão de Arendt – guerra, revolução, violência, liberdade, questão social, etc. – a autora, na busca de tentar resolver as contradições internas gritantes do seu discurso filosófico, simplesmente mente ao dizer:
“Tanto para os europeus quanto para os americanos, a escravidão não fazia parte da questão social, de modo que a questão social, estivesse genuinamente ausente ou apenas oculta nas sombras, era inexistente para todas as finalidades práticas, e com ela fazia-se inexistente também a paixão mais forte e talvez devastadora que motivava os revolucionários: a paixão da compaixão.” (ARENDT, 2011, p. 107).
Esse trecho é usado pela autora para mostrar que os Pais Fundadores dos EUA, mesmo que proprietários de escravos e defensores da escravidão, eram sim defensores da liberdade (os melhores da modernidade), já que argumenta no sentido de que, naquela época, todos defendiam ou naturalizavam a escravidão. Remove da história a abolição da escravidão no período jacobino da Revolução Francesa (e a concepção de ser humano bem mais universalista dos jacobinos que dos Pais Fundadores dos EUA), a Revolução Haitiana e como o governo dos EUA tentou esmagar a república de negros livres (que acabou com a escravidão!) a partir de embargos econômicos ou ainda como a escravidão foi reintroduzida (onde já havia sido abolida!) em territórios tomados do México e anexados pelos Estados Unidos.
Eric Hobsbawm afirma que a contribuição de Hannah Arendt para pensar a Revolução Francesa é “nula”, classifica a exposição da autora como “metafísica e normativa” e diz que se combina com um “antiquado idealismo filosófico, às vezes plenamente explícito” (HOBSBAWN, 2015, p. 260), para concluir dizendo que “haverá leitores, sem dúvida, que acharão a obra de Hannah Arendt interessante e proveitosa, mas é improvável que, entre eles, se incluam os estudiosos das revoluções” (Idem, p. 267). Eric não estava cobrando (ou jogando) fatos históricos de uma análise filosófica, mas mostrando que a análise filosófica da autora, que tem como base uma análise histórica, é um pouco mais que ruim: caminha na raia da falsificação.
A análise histórica de Hannah Arendt sobre a Revolução Francesa e Americana e suas categorias filosóficas derivadas só ficam de pé se considerarmos a história como um simples detalhe e resolvermos que, por ser um discurso filosófico, qualquer coisa pode ser dita. Em suma, estaremos na presença de robinsonadas filosóficas (nesse caso, é possível substituir Revolução Francesa e Americana por Céu e Inferno, e o resultado é o mesmo). Campello consegue transformar uma autora com desleixo ímpar pela análise histórica em uma defensora da historicidade concreta ao dizer: “desprender-se das ilusões desse necessitarismo de traços metafísicos significaria levar a sério o jogo de interesses dos que escrevem a história”.
Em sequência, Campello argumenta: “mas a própria Arendt se viu vítima de sua posição, passando a ser interpretada como principal culpada desse imbróglio da equiparação entre nazismo e stalinismo”. Quanto a esse ponto, é até difícil de argumentar. Está escrito com todas as letras, no livro As origens do totalitarismo, a equiparação do nazismo com o stalinismo. Negar que a autora é culpada por algo que ela escreveu é ser mais Hannah Arendt que Hannah Arendt. E na sequência a esse trecho citado, continua a argumentar o autor que “o que se esquece é que a análise de Arendt não é histórica, mas filosófica. Como ela interpreta as revoluções e o totalitarismo não deve ser lido como lemos livros de história, mas de filosofia”.
Aqui, novamente, uma brutal fuga da história. O que significa dizer que uma análise é filosófica e não histórica? Isso significa dizer, por exemplo, que não posso afirmar que a tese de Hannah Arendt de que Stálin confiava em Hitler e que o Pacto de Não-Agressão Germano-Soviético de 1939 foi fruto de atração ideológica entre dois sistemas irmanados é uma mentira sem qualquer sustentação histórica? Ou não posso fazer uma crítica histórica das análises… históricas de Arendt sobre a União Soviética? E às omissões e erros nesse balanço histórico que assemelha nazismo e socialismo soviético?
Aliás, por qual motivo a crítica histórica e filosófica devem estar separadas? Elas podem e devem andar juntas, como mostrou brilhantemente Domenico Losurdo no seu artigo “Para uma crítica da categoria de totalitarismo”. Aliado a isso, foi a ausência dos [bons] livros de história que permitiu que absurdos completos – como a noção de que o liberalismo por essência sempre é antagônico a escravidão, colonialismo e apartheid – se popularizassem como verdade absoluta.
Louvo e muito a contribuição de Filipe Campello ao debate instalado desde a fala de Caetano Veloso no Programa do Pedro Bial. O problema da reflexão do meu conterrâneo é que , no seu caminho, ele derrapa muito para fora da história. E, se Lenin disse que “fora do poder, tudo é ilusão”, posso refazer sua frase para dizer “fora da história, tudo é mitificação”. E onde existe mitificação, a crítica não guarda morada.
Referências:
MARX, Karl; FREDERICH, Engels. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2017.
LOSURDO, Domenico. Contra-história do liberalismo. São Paulo: Ideias e letras, 2006.
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
HOBSBAWN, Eric. Revolucionários. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
Jones Manoel é historiador, mestre em Serviço Social, educador popular e militante do PCB. E-mail para contato: manoel_jones@hotmail.com