A formação do PCB e as lutas emancipatórias no Brasil

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Imagem: Comício de 1º de Maio de 1927, realizado na Praça Mauá, Rio de Janeiro, contando com ativa participação do PCB

Muniz Gonçalves Ferreira *

“Muitos e graves erros de orientação e de ação foram cometidos desde os primeiros dias de atividade do Partido; mas este sobreviveu a tudo, crescendo muito lentamente, todavia crescendo sempre e sempre”. (1)

Astrojildo Pereira

A formação do PCB no dia 25 de março de 1922, na cidade de Niterói (RJ), não foi um acontecimento isolado. Repercutiram no Brasil eventos de grande significação internacional como a vitória bolchevique na Revolução de Outubro de 1917, a tentativa de constituição de uma república de conselhos na Baviera em 1918, a ascensão e queda da Comuna Húngara de 1919 e a instauração da Internacional Comunista (Komintern) neste mesmo ano na cidade de Moscou. Tais processos tiveram como corolário uma grande intensificação das lutas operárias que atingiram o seu apogeu na greve geral proletária de 1917 em São Paulo, na insurreição anarquista de 1918 no Rio de Janeiro e na greve geral soteropolitana de 1919. No plano político-cultural, o advento do Partido Comunista no Brasil ocorreu no mesmo ano da Semana de Arte Moderna de São Paulo e do Levante do Forte de Copacabana na então capital federal, todos em 1922.

De acordo com o historiador britânico Eric J. Hobsbawm, o século XX se desenvolveu à sombra do embate econômico, político e ideológico que contrapôs as forças do capitalismo ocidental e o sistema soviético (2). Ainda segundo este autor, tal contraposição balizou os próprios limites inicial e conclusivo do século e diferenciou sua extensão cronológica de sua delimitação propriamente histórica. Versão novecentista da disputa sócio-política que, a partir da revolução francesa, opôs direita e esquerda, o conflito entre o movimento comunista e seus antagonistas contribuiu decisivamente para o delineamento do perfil da centúria passada.

Neste sentido, a revolução bolchevique redefiniu os pilares sobre os quais a política do século XX fora assentada. A partir dela, foi se forjando uma nova composição de forças no panorama político internacional que, ainda de acordo com o historiador britânico, marcou o século passado: “com a significativa exceção dos anos de 1933 a 1945, a política internacional de todo o breve século XX após a Revolução de Outubro pode ser mais bem entendida como uma luta secular de forças da velha ordem contra a revolução social”.

A vitória dos bolcheviques aliada à destruição e crise provocadas pela Primeira Grande Guerra acendeu a esperança de que era possível um mundo alternativo ao caos que se vivenciava – trabalhadores de outros países europeus e sul-americanos passaram a se organizar e tentaram seguir o caminho trilhado pela classe operária russa.
Conforme demonstraram Moniz Bandeira, Clovis Mello (3) e Astrogildo Pereira (4), a imprensa brasileira – tanto a chamada grande imprensa quanto a imprensa operária – não foi indiferente a Outubro, tendo veiculado reportagens, análises e controvérsias a seu respeito. Seria no bojo destas abordagens acerca do evento russo que se delineariam os primeiros contornos de uma representação acerca do bolchevismo, antecessor conceitual direto do comunismo na imprensa e no imaginário brasileiros.

Tais processos tiveram como corolário uma grande intensificação das lutas operárias, que atingiram o seu apogeu na greve geral proletária de 1917 em São Paulo, na insurreição anarquista de 1918 no Rio de Janeiro e na greve geral soteropolitana de 1919.

Os debates sobre o Outubro Vermelho nas origens do PCB

Sob a influência direta ou indireta destas circunstâncias, o período situado entre os anos de 1917 e 1922 (com desdobramentos posteriores) testemunhou a aproximação de alguns setores da intelectualidade brasileira em direção ao núcleo de ativistas sindicais, publicistas e militantes operários que formaram o PCB em 1922. A instituição deste partido, por sua vez, foi antecedida por um intenso debate no seio da liderança operária acerca da natureza e desdobramentos do processo revolucionário russo, da validade ou não da estratégia e da tática dos bolcheviques, da pertinência ou não da criação, no Brasil, de um partido calcado no modelo organizativo proposto pela Internacional Comunista.

Expressa a relevância desta discussão ideológica e política o fato de que todo o processo de edificação do novo partido foi ancorado na publicação de uma revista teórica, voltada para a difusão das concepções e diretrizes do nascente comunismo mundial e engajada na defesa da Rússia Soviética. Tratava-se da revista Movimento Communista, editada por Astrojildo Pereira no Rio de Janeiro. Esta publicação, intencionalmente ou não, acabou por cumprir uma tarefa compatível com aquela preconizada por Lenin ao defender a proposta de criação de um jornal social-democrata único para toda a Rússia.

Movimento Communista funcionou como uma espécie de organizador coletivo em torno do qual aglutinaram-se diversos grupos locais, em diferentes lugares do Brasil, geralmente dissidentes anarquistas, que se esforçavam para assimilar os elementos teóricos e políticos oferecidos pela Internacional Comunista e a partir daí empreender a fundação de um partido comunista no país. Nos treze números tirados entre janeiro e dezembro de 1922 foram lançadas as bases de uma cultura comunista que buscava se diferenciar do anarquismo no plano nacional e da socialdemocracia no âmbito mundial. Apesar das limitações e dos tropeços, a revista constitui uma espécie de certidão de nascimento do comunismo brasileiro.

Portanto, diferentemente de boa parte de seus congêneres em várias partes do mundo, este partido comunista não se originou da cisão de uma social-democracia previamente existente no Brasil nem se beneficiou de uma experiência de cultivo da reflexão marxista anterior, seja no mundo da política ou na vida intelectual. Materializado por iniciativa de militantes oriundos preponderantemente do movimento anarquista, o PCB tem os primeiros anos de sua existência marcados pelo esforço de seus fundadores no sentido de assimilarem os postulados teóricos e políticos do comunismo internacional e obterem o reconhecimento do Komintern.

Os Modernistas e o PCB

Além daquela camada de intelectuais orgânicos do movimento operário marginalizada política e culturalmente na sociedade oligárquica da República Velha e já inseridos anteriormente na militância política e/ou social, outro contingente de intelectuais e artistas também manifestaram interesse pelo partido recém-criado: tratava-se de alguns participantes do também emergente movimento modernista, cujo advento ocorreu quase concomitantemente à formação do PCB. Em pouco tempo, um segmento minoritário, mas altamente representativo de modernistas, ingressou ou gravitou em torno do novo partido, manifestando níveis de engajamento e tempo de permanência variáveis.

Desde aproximações transitórias até relacionamentos orgânicos e duradouros, passando por ligações de duração e importância intermediárias, estiveram próximos ou integraram o PCB modernistas como Mário de Andrade, Di Cavalcanti, Djanira, Oswald de Andrade e Patrícia Galvão, entre outros. O caso de Patrícia Galvão (Pagú) merece uma referência especial, não apenas devido a sua expressiva densidade artística e cultural, de resto comum a todos os nomes arrolados, mas também pela riqueza dos registros de seu engajamento legados por ela. Incluem-se nesta categoria o romance Parque Industrial, considerado por alguns estudiosos como um dos primeiros romances proletários escritos no Brasil e os registros memorialísticos de sua militância comunista contidos em um diário publicado na última década.

O que explica a atração de artistas e intelectuais procedentes, em sua maioria, de classes dirigentes da sociedade brasileira por um pequeno partido clandestino, proletário e marginal? Talvez a identificação com a convergência entre a contestação político-social apresentada pelo PCB ao sistema de poder oligárquico vigente na Primeira República e a rebeldia estético-comportamental da vanguarda cultural modernista parecem oferecer pistas para a compreensão e solução deste enigma. Ou talvez o desafio anteposto pelos comunistas ao sistema latifundiário, antidemocrático e dependente imperante naquele Brasil encontrasse uma contrapartida estético-cultural no inconformismo dos modernistas com os padrões formalistas, beletristas e elitistas então em vigor.

O PCB enquanto força atuante junto aos mundos do trabalho e da cultura

O fato é que, no curso de sua trajetória, o Partido logrou estabelecer um relacionamento especial com a intelectualidade e o mundo da cultura, notabilizando-se pelos laços que seus artistas e intelectuais mantiveram com a sociedade, prioritariamente, em seus âmbitos específicos de atuação. A complexidade de suas interpretações da realidade brasileira e das soluções propostas para o enfrentamento de seus problemas resulta na contribuição, mesmo que periférica, de personalidades seminais do pensamento e das artes brasileiras como Caio Prado Jr., Edison Carneiro, Clóvis Moura, Walter da Silveira, Alex Vianny, Vianinha, Ferreira Gullar et alii. É importante observar a persistência deste magnetismo sobre segmentos representativos da intelectualidade do mundo da cultura e das artes em nosso país: de Astrojildo Pereira a Paulo Leminsky, de Octávio Brandão a Vianinha, passando por nomes como, Solano Trindade, Mario Schemberg e Candido Portinari, poucas formações partidárias no mundo podem exibir um portfólio tão expressivo de personalidades relevantes da vida espiritual de seu país quanto o PCB.

Outro aspecto distintivo do percurso seguido pelo PCB na sociedade brasileira ─ não obstante o tempo de clandestinidade e ilegalidade, recordista absoluto entre os partidos brasileiros, e quase seis décadas de perseguição implacável pelas forças de repressão do Estado ─ é o fato de esta agremiação partidária ter sido capaz de não apenas sobreviver, mas intervir e influenciar, em maior ou menor medida, a vida política, social e cultural do Brasil e produzir interpretações e programas para a sociedade brasileira, os quais, em que pesem os equívocos e imperfeições, possuem traços de um esforço cognitivo complexo e original. Como afirmou Octávio Brandão, um de seus primeiros dirigentes:

O PCB cometeu erros ideológicos, políticos e orgânicos. Teve muitas debilidades. Caiu em desvios, recuos e retrocessos. Apesar de tudo, realizou uma obra admirável de pioneiro, batedor, abridor de picadas. É uma de suas glórias! (5)

[1] PEREIRA, Astrojildo. Ensaios Históricos e Políticos. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979, pg. 43.

[2] HOBSBAWN, E. Era dos Extremos – o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

[3] BANDEIRA, Moniz e MELLO, Clóvis. O Ano Vermelho – A Revolução Russa e Seus Reflexos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

[4] PEREIRA, Astrojildo. Construindo o PCB (1922-1924). São Paulo: Livraria Editora de Ciências Humanas, 1980.

[5] BRANDÃO, Otávio. Combates e batalhas: memórias. São Paulo, Alfa-Omega, 1978. Pag. 214.

* Muniz Ferreira é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e membro do Comitê Central do PCB