O “obreirismo” no PCB
Trabalhadores leem o jornal A Classe Operária
Muniz Gonçalves Ferreira1
Se, na primeira metade da década de 1920, o caráter contestador e antissistêmico do PCB contribuiu para a confluência em torno dele de um segmento representativo, apesar de pequeno, do mundo da cultura e das artes na virada da década de 1930, as condições que haviam favorecido tal aproximação conheceram um momento de deterioração.
Lembremos que, diferentemente de boa parte de seus congêneres em várias partes do mundo, este partido comunista não se originou da cisão de uma social-democracia previamente existente no Brasil, nem se beneficiou de uma experiência de cultivo da reflexão marxista anterior, seja no mundo da política ou na vida intelectual. Materializado por iniciativa de militantes oriundos, preponderantemente, do movimento anarquista, o PCB tem os primeiros anos de sua existência marcados pelo esforço de assimilação dos postulados teóricos e políticos do comunismo internacional pelos seus fundadores e de obtenção do reconhecimento do Komintern. Tal circunstância contribuiu para que se confirmasse uma tendência à subordinação dos processos de formulação e execução da política dos comunistas brasileiros às diretivas emanadas de Moscou, sobretudo em seus três primeiros congressos, em 1922, 1925 e 1928/1929. Não obstante, mesmo neste período, são também perceptíveis algumas iniciativas voltadas para uma tentativa de apreensão autônoma da realidade brasileira, como a apresentada no trabalho Agrarismo e Industrialismo no Brasil, de autoria do dirigente Otávio Brandão, farmacêutico alagoano, considerada pelos historiadores como a primeira tentativa de uma análise marxista do Brasil2.
As limitações teórico-políticas desta primeira geração de militantes e dirigentes comunistas incidiram no relacionamento muitas vezes tortuoso com outras forças político-sociais dos anos 20. No relacionamento com outras correntes do movimento operário, tem-se um momento inicial de acirradas disputas entre os primeiros ativistas do partido (eles mesmos, em sua maioria, originários do anarquismo) e militantes libertários em torno de temas como organização do partido, participação na política e preservação do Estado no processo revolucionário, seguida da proposta de um “bloco unido das organizações operárias” (versão brasileira da política de “frente única operária” aprovada no 5º Congresso da IC em 1925), consubstanciada na organização do Bloco Operário e Camponês em 1927.
Não obstante as aparentes aspirações unitárias dos comunistas neste momento, seus apelos por uma ação comum convocavam as demais correntes à participação nos pleitos eleitorais, em flagrante contradição com o ideário anarquista, reivindicando a liderança para o PCB, à revelia das intenções de seus potenciais aliados. Porém, mesmo este ensaio frentista não prosperou na atividade comunista, sendo abandonado por determinação da Internacional em 1929 e formalmente dissolvido na sequência da “revolução” de 3 de Outubro de 1930.
A resolução política aprovada no III Congresso do PCB, realizado entre 28 de dezembro de 1928 e 04 de janeiro de 1929, em Niterói (RJ), definia o Brasil como um país semicolonial, economicamente dominado pelo imperialismo, ainda que politicamente independente. Entendia que: “A burguesia nacional, até certo momento [revolução de 1924], capitulou completamente ante o imperialismo, aliando-se aos grandes proprietários de terra que estão no poder.”(DEL ROIO, 1990, p.72)
Por outro lado,
Em virtude mesmo da capitulação da burguesia ante o imperialismo, agravando-se cada vez mais a opressão desse último, acentuou-se mais e mais a exploração econômica e conseqüentemente a radicalização política das massas laboriosas do campo e da cidade, inclusive das camadas mais pobres da pequena burguesia.
[…] Dessa maneira certas camadas da pequena burguesia constituem um fator revolucionário da maior importância no atual momento, tendendo a aliar-se às forças revolucionárias do proletariado. (DEL ROIO, 1990)
Era uma sinalização clara no sentido de que o partido deveria buscar aliados fora do marco restrito da aliança operário-camponesa, como se verificara até então. Esta apreciação representava a aplicação programática das teses defendidas por Octávio Brandão em seu já citado Agrarismo e Industrialismo no Brasil, publicado cerca de dois anos antes (1926). Neste livro, Brandão enunciava a definição da etapa da revolução brasileira como sendo “democrático pequeno-burguesa”, na qual a expressão política da pequena burguesia, os tenentes, desempenhariam um papel proeminente, mas só conseguiriam atingir os objetivos democrático burgueses almejados caso o proletariado, através de seu partido de vanguarda, o PCB, assumisse a direção do movimento.
Apesar de suas limitações, estas elaborações representavam um esforço original de compreensão da realidade brasileira sem subordinar-se a fórmulas importadas, mas iam na contramão das resoluções que vinham sendo produzidas na mesma época pela Internacional Comunista, a qual, pouco atenta ao que ocorria na América Latina, desenvolveu, ao longo do ano de 1929, ações no sentido de subordinar as formulações teóricas e as ações políticas dos PCs ao programa aprovado em seu Sexto Congresso.
O sexto Congresso Mundial da Internacional Comunista, realizado em Moscou entre julho e setembro de 1928, aprovou, no bojo de suas deliberações, a tese de que a conjuntura internacional política mundial ingressara em uma nova fase revolucionária. Tratava-se da aplicação da teoria do 3º período, segundo a qual, após o primeiro ciclo revolucionário que se seguira à deflagração da 1ª Guerra Mundial e à Revolução de Outubro, o mundo capitalista passara por um 2º período de estabilização temporária, marcado pela reorganização das relações entre as grandes potências imperialistas e o esmagamento das insurgências revolucionárias na Alemanha, na Áustria e na Hungria.
Naquele novo momento, porém, inaugurava-se um 3º período revolucionário, no qual as forças revolucionárias do proletariado mundial, sob a direção do Komintern e de suas seções nacionais, assaltariam as cidadelas da burguesia internacional, dando continuidade ao processo inaugurado pelo Outubro Russo de 1917. Para que esta futura ofensiva revolucionária não viesse a fracassar, seria necessária a eliminação de qualquer forma de conciliação entre as forças revolucionárias do proletariado e as forças reformistas e/ou veladamente contra revolucionárias, não apenas no âmbito geral da sociedade, mas também no seio do movimento operário e do próprio partido comunista. Uma das decorrências práticas destas formulações foi o rompimento de qualquer aliança com a social-democracia estigmatizada como uma agência da burguesia no seio da classe operária e “irmã gêmea do fascismo”. Tal orientação isolacionista e sectária produziu, como seu resultado mais trágico, a inviabilização de uma aliança política entre comunistas e social-democratas na Alemanha, franqueando o acesso do nacional-socialismo ao poder em 1933.
Repercutindo as resoluções de seu VI Congresso e os desdobramentos da luta pelo poder na cúpula do PCUS, as ações da IC, na transmissão de suas novas diretrizes aos partidos comunistas do mundo, foram realizadas sob a bandeira do combate aos “desvios de direita”. Tais diretivas aportaram na América Latina em setembro de 1929, sob a forma de uma “Carta Aberta aos Partidos Comunistas da América Latina Sobre os Perigos da Direita”. Este documento apresentou um repertório de críticas aos movimentos de aproximação dos PCs a agrupamentos socialistas, reformistas, democrático-burgueses e nacional reformistas, equiparados à social-democracia europeia e liminarmente definidos como potenciais bases de apoio de um eventual processo de fascistização das classes dominantes da América Latina. Neste documento, a política de alianças, até então praticada pelo PCB, fora diretamente atacada. (DEL ROIO, 1990, p.123)
O passo seguinte foi a publicação, em fevereiro de 1930, de uma Resolução da IC sobre a Questão Brasileira, na qual as definições do II Congresso do PCB sobre a economia e a sociedade do país eram igualmente criticadas, concluindo com uma convocação para que fossem depurados do partido os “quadros de direita”. Esta orientação foi reiterada na Reunião do Secretariado Sul Americano da Internacional Comunista, realizada em Buenos Aires nos meses de abril e maio de 1930, sob a presidência do lituano August Guralsky, alto dirigente da IC e contou com a presença de Astrojildo Pereira e Otávio Brandão, os dois principais dirigentes do partido naquele momento. Violentamente censurados, foram forçados à autocrítica, Astrojildo Pereira, devido ao teor das resoluções do III Congresso do PCB, do qual era secretário-geral, e Octávio Brandão, pelas ideias contidas em seu livro.
As concepções contidas nestes dois registros foram caracterizadas como “mencheviques e direitistas”. As tentativas feitas, desde 1928, pela direção do PCB no sentido de buscar um acordo político com Luiz Carlos Prestes foram completamente desautorizadas. Para os dirigentes da IC, Prestes e seus seguidores (o “prestismo”) constituíam a mais cristalina manifestação do “social-fascismo” na América Latina e no Brasil, qualquer contato com eles deveria ser encerrado e os responsáveis expulsos do partido. Porém, a diretiva mais contundente aprovada naquela reunião preconizava, conjuntamente com o expurgo dos elementos “mencheviques” e “direitistas” do partido, a sua completa proletarização”. Nos meses que se seguiram, as orientações da IC foram obedecidas sistematicamente. O diálogo com os tenentes foi interrompido, o Bloco Operário e Camponês (BOC) foi dissolvido, os órgãos de direção foram reconstituídos, com a exclusão de quadros intelectuais como Astrojildo Pereira, Octávio Brandão e Leôncio Basbaum, abrindo espaço para a ascensão aos postos de direção de quadros de origem proletária, sem responsabilidade na aplicação da política vigente até então (DEL ROIO, 1990, p.144).
A adoção desta política deu início à fase obreirista da história do PCB, caracterizada pelo seguidismo às determinações da IC, pelo estreitamento de sua política de alianças (com o seu conseqüente isolamento político) e pelo cultivo de preconceitos contra os intelectuais, tanto no interior do partido quanto na sociedade. Este surto obreirista afastou do partido um segmento da intelectualidade brasileira, produzindo uma atmosfera amplamente desfavorável à aproximação e permanência em suas fileiras de artistas e agentes culturais. Tal processo pode ser observado nas preciosas descrições memorialísticas deixadas por Leôncio Basbaum e Patrícia Galvão, entre outros.
Do Obreirismo ao Aliancismo
Os prejuízos provocados pela natureza isolacionista e excludente da política obreirista foram agravados pelos efeitos repressivos contra a atuação do PCB e do movimento operário, como resultado da situação de excepcionalidade política e institucional que se seguiu à chamada Revolução de 1930. O apogeu do obreirismo se verificou justamente no intervalo situado entre a ruptura institucional de 3 de Outubro e a chamada “Revolução Constitucionalista de 1932”. Esvaziado e isolado, obedecendo a uma orientação política sectária e ultraesquerdista, o PCB foi implacavelmente perseguido e golpeado pela repressão, o que provocou uma intensa rotatividade em seu corpo dirigente e a acentuação da mentalidade persecutória e autofágica em seu interior, sobretudo no período 1930-1933.
Porém, os dias do obreirismo no PCB estavam contados, assim como os das formulações políticas internacionais que o engendraram: a teoria do “3º período” e a política de “classe contra classe”. Entre o final de 1933 e meados de 1934, após colher os frutos amargos daquela política na Alemanha, a Internacional Comunista efetuou um movimento de revisão programática, que conduziria a IC a mudanças profundas em seu enfoque, substituindo a política de “classe contra classe”, aprovada em seu sexto congresso, pela política de frentes populares, aprovada no VII congresso de agosto de 1935. Contudo, antes mesmo desta redefinição oficial, a principal agência do movimento comunista internacional, sob o influxo do desastre alemão de 1933, já redefinia, na prática, sua tática e sua política de alianças, sinalizando a possibilidade de reaproximação com a social-democracia e outras forças de centro-esquerda. Estas sinalizações foram percebidas e assimiladas em alguns países onde os partidos comunistas, já no ano de 1934, iniciaram as negociações para a formação de frentes populares e alianças políticas de caráter policlassistas3.
Estas modificações incidiram sobre a política do PCB. Com elas, o partido se vira, uma vez mais, empurrado para uma aliança com aquele que fora considerado anteriormente como o único setor potencialmente revolucionário da sociedade brasileira fora do âmbito da aliança operário camponesa, a esquerda tenentista, personificada por Luiz Carlos Prestes.
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1 Professor de História Contemporânea da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e membro do Comitê Central do PCB.
2 BRANDÃO, Octavio. Agrarismo e Industrialismo: Ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil – 1924. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2006.
3 As vicissitudes deste processo de redefinições teórico-politicas foram examinados detalhadamente por Marta Dassú em seu capitulo “Frente única e frente popular: o VII Congresso da Internacional Comunista”, inserido na coletânea História do Marxismo, vol. 6, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.