Jones Manoel: entrevista para AbrilAbril
Por Nuno Ramos de Almeida
ABRIL ABRIL
Tem 31 anos, é historiador, marxista, youtuber, professor de História, comunicador popular, escritor, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e conhecido pelo seu canal no YouTube denominado Jones Manoel. Nascido numa favela do Recife, chegou ao marxismo-leninismo a partir da vida e do rap. A conversa com o AbrilAbril começa com a questão do Estado e acaba nas redes sociais.
AA: Faz 150 anos que a Comuna de Paris foi derrotada depois da Semana Sangrenta. Há alguma razão comum que justifique esta derrota e todos os outros insucessos nas revoluções feitas pelos explorados?
JM: A Comuna Paris surge numa situação muito adversa, num contexto da guerra Franco-Prussiana em que o governo da França assumiu uma postura de traição nacional, entregou o país à Prússia e os operários de Paris resolveram tomar o poder. Marx tinha alertado, antes da Comuna, que seria um suicídio os operários tentarem tomar o poder. Quando eles o fizeram, Marx analisou objetivamente as razões que levaram à sua derrota. A esquerda ocidental tem um fetiche pela derrota e pelo martírio. Ela adora quem perdeu.
AA: Talvez porque nunca ganharam
JM: A ideologia dominante permite que a gente tenha referências, mas desde que elas sejam referências de martírio e não de exercício de poder. Para setores da burguesia e dos intelectuais democráticos, uma figura como Che Guevara é muito mais saborosa que uma figura como Fidel Castro. Che Guevara morreu enquanto exemplo de martírio, e Fidel Castro permaneceu enquanto líder e estadista do processo revolucionário. Há gente que gosta muito de assassinados, como Che Guevara, Rosa Luxemburgo e Gramsci, esvaziando-os da perspectiva comunista e apagando o que defendiam. Paralelamente, dirigentes revolucionários como Fidel Castro, Ho Chi Minh, Mao Ze Dong e Kim Il-Sung são quase sempre odiados, ostracizados e chamados de ditadores que traíram a revolução em algum lugar da história.
Mas voltando à Comuna, acho muito importante vermos o que são os ensinamentos da derrota. Marx e Engels apontam duas coisas: primeiro, os communards não tomaram o Banco da França, elemento fundamental que os colocaria numa situação de maior poder para pressionar e negociar com a burguesia francesa; segundo, usaram muito pouco a capacidade de repressão e de eliminação do inimigo de classe. Isso está muito bem documentado num texto de Engels sobre a autoridade. O ensinamento importante que a Comuna deixa é que a burguesia não tem ética, não tem pudor, e trata a luta de classes como uma guerra de classes, o que significa que elimina fisicamente o inimigo. Na esquerda, a gente pensa muito pouco em termos estratégicos e subordinamos a estratégia à ética. Não se devem perder as oportunidades de golpear o inimigo de classe o mais profundamente possível, para melhorar as nossas condições no enfrentamento. Caso contrário, vamos ficar chorando derrotas e a orgulhar-nos da pureza. Lembro quando aconteceu o golpe de Estado na Bolívia, em 2019, e o filósofo Slavoj Zizek lançou um texto em que se dizia orgulhoso pelo governo boliviano não ter sido um governo autoritário, e que mesmo quando veio o golpe de Estado não reprimiu os golpistas. Esse tipo de pensamento é tudo, menos marxista.
AA: Não pode haver a acusação inversa? No sentido de que a necessidade de defender a revolução exige muitas vezes uma permanente militarização dos regimes socialistas e a necessidade de usar meios policiais, deixando a certa altura de existir o socialismo, dado que se esvazia a participação popular e dos trabalhadores?
JM: Para mim, o maior problema das experiências socialistas no século XX foi não conseguir uma dialética que permitisse a defesa interna do processo revolucionário contra a pressão imperialista e, ao mesmo tempo, conseguir ampliar e fortalecer a democracia socialista. A União Soviética é um belo exemplo de que a defesa dos ataques do imperialismo acabou por conduzir à legitimação de um processo progressivo de esvaziamento da democracia socialista, levando ao enfraquecimento da base de consenso do projeto socialista ao ponto de ser destruído. Já no caso de Cuba, vai-se conseguindo defender do imperialismo, ao mesmo tempo em que conserva uma vitalidade e um nível de democracia socialista muito interessante. Isto é um problema real, considerando que os EUA têm mais de 800 bases espalhadas pelo mundo, o maior orçamento militar, o maior aparelho de espionagem, sabotagem e guerra suja do mundo, que é a CIA. Isso sem contar que estamos na era das redes sociais, o que permite um nível de vigilância e controle nunca antes possível.
A defesa da revolução pode acabar por criar processos de burocratização, mas isso não nos deve levar a subestimar a necessidade das revoluções se defenderem. A visão de Lênin da necessidade do povo em armas continua atual. É importante socializar ao máximo a defesa. Mas a questão é que, na era dos mísseis intercontinentais, o povo em armas não garante a defesa de qualquer país. Sem estrutura militar não é possível manter o segredo militar. A necessidade de defesa em relação à maior potência imperialista do mundo impõe restrições ao processo de democratização socialista. Enquanto não se fizer uma revolução no centro do império é um problema que vamos ter de enfrentar.
AA: Em Marx, a ditadura do proletariado era uma fase curta para cimentar o poder do proletariado. Em O Estado e a Revolução, Lênin defende que o Estado deveria imediatamente ir desaparecendo, que só será democrático quando puder ser dirigido pela empregada doméstica. Como é possível num contexto em que as revoluções são nacionais, defender o novo poder e democratizar ao mesmo tempo?
JM: Lênin alterou parcialmente a sua posição depois de O Estado e a Revolução. Muda de perspectiva com a experiência da revolução russa e compreende, a partir de 1920, que a temporalidade da transição socialista é muito maior do que a imaginava. Altera a sua posição em relação ao fenecimento do Estado, para fazer deste um aparelho alicerçado nos sovietes e que dê efetividade às reivindicações das massas. Lênin falava até em aprender com as melhores práticas de administração pública dos capitalistas. Cuba, Vietnã, Laos, China e Coreia do Norte não caíram, conseguiram sobreviver, uns com formas mais qualificadas do que outros, mas existe um histórico de experiências socialistas que não sucumbiram ao ponto de perderem o apoio da base da classe trabalhadora a esses regimes de transição. A primeira coisa é fazer um balanço sistemático, real e nosso de todas as experiências.
AA: Coloca a Coreia do Norte e Cuba no mesmo campo? Não lhe parece que existem aspectos da Coreia que têm muito pouco a ver com o socialismo, a sucessão quase dinástica, o culto exacerbado da personalidade, por exemplo?
JM: A ideia do culto à personalidade é um termo ocidental muito ligado à própria realidade da União Soviética que, a meu ver, não se encaixa na explicação da Coreia. Também não acho que haja passagem de poder de pai para filho, porque os cargos que exerciam Kim Il-Sung, Kim Jong-il, Kim Jong-un são diferentes. Eles são evidentemente um elemento de simbologia da revolução nacional, mas exerceram e exercem cargos diferentes. A representação da mídia de que Kim Jong-un é um ditador todo-poderoso, que controla tudo, é totalmente falsa. Existe pouca literatura e pouco estudo sistemático sobre a Coreia [do Norte] e há uma desconsideração sobre o estado permanente de agressão militar em que o país vive. Recorde-se que foi um país destruído pela guerra com os EUA, em que as forças norte-americanas destruíram todas as cidades da Coreia do Norte e mataram 30% da população. Os EUA mantêm, até hoje, mais de 50 mil soldados a cercar o país. E têm armas atômicas apontadas à Coreia [do Norte].
Vamos lembrar que o principal palco militar dos EUA, na segunda metade do século XX, foi a Ásia. Atacaram o Vietnã, atacaram o Laos, atacaram o Camboja, para além da Coreia [do Norte]. Usaram na guerra da Coreia mais bombas do que todas as que foram usadas na II Guerra Mundial. E até hoje, formalmente, a guerra da Coreia não acabou, foi apenas assinado um armistício, que significa, do ponto de vista do direito internacional, apenas uma pausa numa guerra.
A Coreia [do Norte] é uma experiência socialista que é olhada de uma forma muito preconceituosa e preguiçosa pela esquerda ocidental, que não estuda o país e tem aquela coisa com que começamos a conversa que é o fetiche da derrota. Veja, a Coreia [do Norte] foi invadida para ser liquidada, conseguiram resistir, consolidar um Estado, formar uma economia nacional. Têm um nível de industrialização considerável, constituíram um complexo industrial militar importante e, ao contrário do povo palestino, têm a capacidade de se defender. Um povo que consegue se defender já é olhado de lado pela esquerda ocidental. Para essa gente, uma criança com uma pedra contra um tanque israelense é heróico, quando para mim é uma coisa brutal e quase pornográfica. Mas essa esquerda gosta disso e de sofrimento, mas não gosta de países como a Coreia [do Norte] que têm mísseis intercontinentais com armas atômicas e que podem atingir os EUA.
Eu dou um outro exemplo: a Líbia de Muammar al-Gaddafi não era uma experiência socialista, mas algo que surgiu no contexto das lutas anticoloniais, que tinha uma certa política anti-imperialista e nacionalista de apropriação dos recursos naturais do país.
AA: Na senda de Nasser e do socialismo pan-arabista
JM: A Líbia tinha um programa nuclear, mas Gaddafi, tentando aproximar-se da União Europeia, desistiu do seu programa nuclear. Quatro anos depois de ter desistido desse programa, a OTAN intervém na Líbia, derruba Gaddafi e destrói o país. Hoje temos um local que até tráfico de pessoas escravizadas tem. Em Trípoli, estão vendendo escravos como no século XVI. A Líbia foi destruída, era um dos países mais ricos de África e agora está nesta situação. Tenho várias divergências com o modelo socialista coreano, está bem longe daquilo que quero para o socialismo, mas eu apoio qualquer experiência socialista. O que aconteceu na Líbia, e quem acompanha o sofrimento do povo palestino, sabe, como dizia o velho Luckács, que «o pior socialismo é melhor que o melhor capitalismo». E o melhor capitalismo na periferia do sistema não existe. Basta ver a desgraça que aconteceu com a Líbia.
A Coreia [do Norte] é um Estado muito militarizado, cercado, que tenta manter a coesão nacional máxima frente às ameaças militares, que se expressa por exemplo na continuidade de símbolos de unidade nacional, como a continuidade da família de Kim Il Sung. Tem várias coisas que eu acho problemáticas, mas que não estou preocupado em criticar: para mim, o essencial é a ação do imperialismo e o cerco feito a esse país. Quando acabar esse cerco militar, aí a gente pode debater livremente os problemas do regime, agora não dá para brincar, porque o imperialismo não brinca em serviço.
AA: A questão que coloco é que em que medida a necessidade de militarização e defesa de um regime não torna esse poder a certa altura pouco socialista. Não é possível uma estratégia de resistência que passe pelo aumento do poder do povo e da democracia socialista?
JM: Temos que considerar várias coisas. O Brasil é mais militarizado que a Coreia [do Norte] em termos de violência contra a população. A República Democrática da Coreia não sabe o que é ter, todos os anos, 62 mil pessoas assassinadas. O cidadão norte-coreano não sabe o que é ter, nas favelas, a polícia todos os dias agredindo e xingando as pessoas, entrando nas casas sem mandado e por vezes matando. Essa própria ideia de militarização tem que ser muito bem contextualizada. Em termos de segurança do indivíduo em relação ao Estado, a Coreia [do Norte] desfruta de infinitamente mais democracia que o Brasil.
Segundo ponto, se não existisse legitimidade, e um certo consenso e apoio na sociedade coreana, nenhum governo ficaria de pé. Durante os anos 90, o país perdeu o seu principal parceiro econômico, que era a União Soviética, sofreu uma série de inundações e catástrofes, teve um problema sério de desnutrição, e o regime continuou de pé com um alto nível de consenso e apoio. Nos últimos dez anos, a qualidade de vida da população tem melhorado muito. Houve uma mudança relativa da orientação que colocava as Forças Armadas em primeiro lugar. A partir do momento em que o país alcançou o domínio do armamento atômico e mísseis intercontinentais, a necessidade de ter forças terrestres diminuiu.
A guerra moderna é muito mais definida pelos mísseis, caças e submarinos do que pelo número de soldados. Há uma redução do peso na economia do exército e uma passagem maior de recursos para habitação e para melhorar as infraestruturas sociais. A Coreia [do Norte] vive um boom da construção civil. A melhoria da qualidade da habitação dos trabalhadores, o aumento de construção de equipamentos coletivos – bibliotecas, parques, ginásios e equipamentos desportivos –, é visível e significativa. Há um debate no partido, respondendo aos pedidos das bases, que reivindicavam melhores condições de vida e de consumo. Assim como existe um debate sobre o país se tornar um centro mundial de criptomoedas e a partir daí quebrar o bloqueio econômico dos EUA, para conseguir recursos para adquirir a modernização das infraestruturas e melhorar mais a vida das populações.
A Coreia [do Norte] tem vários problemas, mas está longe de ser um país sem uma base social de consenso e legitimidade. Eu dou sempre este exemplo: os meios de comunicação liberais e certa esquerda representam o governo de Nicolas Maduro como ultra-militarizado e que só se mantém por causa do apoio do exército. Veja, eu tenho várias críticas ao governo Maduro, que nos últimos tempos resolveu lançar uma ofensiva contra o Partido Comunista Venezuelano, mas é uma ilusão maluca achar que um governo atacado pela maior potência do mundo, os Estados Unidos, vai conseguir manter-se no poder só pela força, se não tiver apoio popular. Isso não é possível. Todo o projeto anti-imperialista só se mantém se tiver uma forte base de apoio, de outra maneira não se aguentaria um minuto. Não apenas uma base passiva, mas uma base ativa. E isso diferencia a esquerda da Venezuela em relação à do Brasil. A Dilma [Rousseff] foi retirada do poder muito facilmente, em 2016, sem nenhuma revolta das massas. Só tinha uma base de apoio passiva.
AA: Como é que foi o seu trajeto político do rap para o comunismo?
JM: O Brasil tem uma tradição de uma cultura de rap que nasceu em São Paulo e que é muito politizada. Nos anos 90, Racionais Mcs, RZO, GOG, Sabotage falavam de violência policial, racismo e de desigualdades. Falavam inclusive de líderes revolucionários. O GOG tem uma música em que diz: «Malcolm X foi a Meca e o GOG ao nordeste», ele conta a história de Malcolm X, a primeira vez que ouvi falar dele foi nessa música. Os Racionais MCs têm uma música chamada «Jesus chorou» em que se fala: «Malcom X, Ghandi, Lennon, Marvin Gaye, Che Guevara, 2Pac, Bob Marley e o evangélico Martin Luther King». O rap historicamente no Brasil, embora hoje menos, é muito politizado e serve como voz das comunidades periféricas. Não só para denunciar as mazelas da sociedade, mas como memória de uma identidade e de luta contra o racismo. Em formações que eu dava, antes da pandemia, usava muito o rap.
AA: Mas nem toda a gente que ouve o rap vira marxista-leninista
JM: Há três elementos que contribuíram para isso. Primeiro elemento central, a produção marxista no Brasil ficou muito centralizada na universidade. E estas, até aos governos do PT, eram universidades da classe média e da burguesia, o que tem impacto no tipo de produção marxista. No meu primeiro contato com os marxistas na faculdade, vi que eles não correspondiam à minha realidade. Só para ter uma ideia, a influência no Brasil era sobretudo uma leitura eurocomunista de Gramsci, de que dá para construir o socialismo ampliando a democracia, e que a dominação burguesa hoje se faz mais pelo consenso do que pela coerção. Só acredita nisso quem é de classe média. Quem, como eu, nasceu numa favela de Recife, não consegue levar isso a sério. O meu afastamento desse marxismo hegemônico na universidade e a adesão ao marxismo-leninismo para mim foi natural na minha própria experiência empírica. Eu li estas coisas e pensei: «Que país é esse? O Brasil não é».
O segundo elemento, é quando eu criei o hábito de leitura e decidi organizar-me politicamente. Parei para ler os programas dos partidos políticos do Brasil. Li os programas do PT, PC do B, PSOL, PSTU, PCR e da Consulta Popular e por aí vai. Entrei no PCB, na sua organização da juventude, a UJC, porque era o que deixava mais claro uma estratégia socialista para a revolução brasileira. Quem conhece a burguesia brasileira não consegue propor nenhuma aliança, mesmo que seja tática, com essa classe.
Um terceiro elemento, chamou-me muita atenção a história do PCB, quando você estuda no vestibular, para a entrada da universidade, ouve muito falar do PCB, de Luiz Carlos Prestes, Olga Benário e Ana Montenegro. E a história do Partidão sempre me encantou muito, principalmente via Prestes. Quando entrei no PCB, deu-me muito orgulho: «vou militar no mesmo partido que Luiz Carlos Prestes». Foi também isso que me levou a concordar com o marxismo-leninismo do PCB.
AA: Em Recife, há uns anos, tentou candidatar-se na sua comunidade. Não o fez porque foi ameaçado. Atualmente, com o domínio do tráfico de droga e a repressão do Estado, há espaço nas comunidades para a luta revolucionária?
JM: Há espaço. Mas é muito perigosa e difícil. Na favela, onde nasci e fui criado, mantive um cursinho popular, chamado «Novo Caminho», para ajudar jovens a conseguir entrar na universidade. Consegui manter essa atividade durante dois anos, recrutei gente para a juventude do partido, houve um reconhecimento social da comunidade para com o nosso trabalho, mas quando foi a hora de disputar a associação de moradores o meu caminho foi barrado. E repare que eu sou prata da casa, sou nascido e crescido na favela do Borborema. Não consegui avançar nesse negócio. Claro que na época eu não era ainda organizado no PCB. Tentei concorrer à associação de moradores sozinho, sem um partido por trás, o que muda bastante o cenário.
Agora é preciso dizer que todo o trabalho de base é perigoso. O Brasil é um país muito perigoso para se militar. É perigoso, trabalhoso, exige muita estrutura e planejamento. Exige muita paciência revolucionária. O PCB tem vários trabalhos em comunidades, menos do que é necessário para a revolução brasileira. Militar no Brasil não é como militar em Paris ou em Londres. O nível de violência a que estamos submetidos, no continente, só se compara com a Colômbia em que há um narco-Estado que mata a todos. Brasil e Colômbia são os países mais perigosos na região para se militar.
AA: Pode-se dizer que a luta de classes no Brasil tem uma carga de ódio muito maior devido ao peso da escravatura? Há um ódio da burguesia ao proletariado aditivado pelo racismo?
JM: Com certeza. José Carlos Mariátegui, o famoso comunista peruano, matou a charada nos anos 20 do século passado. Tem um texto que mostra que a burguesia crioula se formou não só a partir de uma identidade classista burguesa, mas também de uma identidade racial. Fazendo com que a oposição de classe também assumisse uma forma de oposição racial, inclusive eugênica, e que essa burguesia se achasse superior aos caboclos, negros, mulatos e indígenas. Começamos a conversa pela liquidação da Comuna de Paris, em que a burguesia matou 20 mil pessoas. Aqui morre muito mais gente. O ódio de classe, quando se soma com o ódio racial, toma traços neofascistas. É o que acontece com a burguesia boliviana em Santa Cruz de la Sierra, a burguesia peruana em Lima. No Brasil eles se autorrepresentam como brancos, descendentes diretos dos europeus, e a massa trabalhadora como uma espécie de ralé racialmente inferior. E trabalham a partir de discursos de extermínio camuflados em ideologia da segurança pública, em que «bandido bom é bandido morto», «tem que matar o traficante». A grande diferença daqui e do discurso do Hitler é que este afirmava claramente que odiava judeus, enquanto no Brasil e em outros países mascaram-se os genocídios com políticas de segurança pública, mas no final o resultado é o mesmo.
AA: Concorda que as categorias de capitalismo, racismo e patriarcado fazem parte do mesmo quadro da luta de classes?
JM: Totalmente, desde a obra de Marx e Engels que já está colocada a multiplicidade de formas de expressão da luta de classes. Essa luta nunca foi só o conflito capital e trabalho no âmbito da fábrica. Estou me lembrando, por exemplo, que no Manifesto Comunista, Marx e Engels colocavam na luta de classes a luta pela libertação da Polônia, que era uma luta de emancipação nacional. Assim como põem, no mesmo texto, a importância da luta contra a opressão da mulher. Engels no seu famoso Anti-Duhring, e no seu mais célebre capítulo intitulado do Socialismo Utópico ao Socialismo Ciêntífico, repete a célebre frase de Charles Fourier, em que o grau de emancipação de uma sociedade é medido pelo grau de emancipação da mulher nessa sociedade. Assim como na Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Engels defende que a mulher é o proletariado do homem. E que o aparecimento da propriedade privada significou a derrota mundial do sexo feminino, por ter provocado um processo de exploração, no âmbito doméstico, do homem sobre a mulher, numa estrutura patriarcal.
Diria mais, Domenico Losurdo, no seu livro A Luta de Classes, uma História Filosófica e Política, demonstra que desde a obra de Marx e Engels há uma compreensão sobre três níveis interligados de exploração e opressão: o âmbito da vida doméstica, com o patriarcado e a exploração da mulher; o âmbito nacional, com a retirada de mais-valia a partir da exploração do proletariado; e o âmbito internacional, a partir da exploração dos países e povos colonizados. Esses três níveis articulam-se diretamente e fazem com que a luta de classes passe também por lutas contra a exploração, o imperialismo, o machismo e o racismo. Algo que foi materializado muito bem na história do movimento comunista.
Há um exemplo que eu gosto muito de dar: hoje todo o mundo gosta de Nelson Mandela, que virou um ícone mundial, mas quando ele estava preso, os Estados Unidos chamavam-no de «terrorista», e eram os comunistas que apoiavam a luta contra o apartheid. E Cuba mandou milhares de soldados para lutar, ao lado dos revolucionários africanos, contra o apartheid e pela independência das ex-colônias portuguesas na África. Os comunistas lutaram contra o apartheid. Isso faz parte também da luta de classes. Não se pode ter uma visão redutora e economicista da luta de classes.
AA: Contesta algumas acusações de correntes da esquerda, e até de alguns ativistas antirracistas, de que o marxismo é eurocentrista, em que as questões raciais não estão devidamente espelhadas na teoria comunista?
JM: Estas críticas só se sustentam na base da falsificação histórica. O marxismo é a tendência teórica política que, depois do liberalismo, teve mais alcance mundial. O que significa que é possível encontrar de tudo no marxismo: há marxismo estruturalista, marxismo humanista, marxismo analítico, marxismo existencialista, marxismo weberiano, marxismo pós-moderno. O que você procurar vai achar em algum canto do mundo. Existiram e existem marxistas eurocêntricos, marxistas que não dão atenção às lutas anticoloniais e antirracistas. Agora existe também toda uma larga tradição do marxismo que deu um papel fundamental, no século XX, às lutas antirracistas e anticoloniais.
Três exemplos básicos: os principais líderes das lutas de libertação nacional na África negra ou eram marxistas ou tinham relações com o marxismo. Amílcar Cabral, Samora Machel, Agostinho Neto e Thomas Sankara eram marxistas. E os que não eram marxistas, como Lumumba, tinham ótimas relações com os marxistas e contavam com o movimento comunista como aliado das suas lutas de libertação. Segundo exemplo importante, nos EUA só houve o sufrágio universal – uma cabeça, um voto – em 1965, quando acabou a segregação racial. A principal organização de luta contra a segregação racial é o partido das Panteras Negras, uma organização marxista-leninista que o FBI considerou a maior ameaça ao capitalismo estadunidense. O terceiro exemplo, muito significativo, é que o processo de descolonização da Ásia passou pela liderança dos partidos comunistas: o chinês, o vietnamita, o coreano, o do Laos. Mesmo na Índia, os partidos comunistas têm um papel importante, e até hoje na região de Kerala há uma grande tradição comunista enraizada nas massas.
O marxismo ser um negócio de brancos e que não deu atenção às lutas anticoloniais e antirracistas é uma afirmação que não se sustenta sob nenhum prisma, a não ser que se reduza o marxismo às suas expressões eurocêntricas, a figuras como Kautsky ou, atualmente, a Zizek. E queria acrescentar mais um elemento: o Portugal fascista, dominado pelo salazarismo, foi aceito pelo Ocidente, entrou na OTAN, e a nossa amiga Hannah Arendt, famosa pela sua teoria sobre o totalitarismo, que tentava igualar a União Soviética ao nazismo, não colocou o fascismo salazarista como totalitário, dizia que era apenas autoritário. Esse discurso acaba por fazer o jogo do liberalismo que se relacionou muito bem com o fascismo salazarista. Escondendo, por exemplo, que os comunistas organizados no PCP, que eram a principal força de resistência contra o fascismo, apoiaram as lutas anticoloniais de África, enquanto os EUA apoiavam o regime colonialista e fascista. Quando se diz que o marxismo é eurocêntrico, não só se está a falsificar a história como se está apoiar os liberais que foram aliados históricos do salazarismo.
AA: Um autor dos EUA, Asad Haider, afirma que o racismo não é produto das raças, mas as raças é que são produto do racismo. E que a luta antirracista tem como objetivo a liquidação da ideia de raças e as desigualdades que por ela são sustentadas e não a criação de qualquer «negritude». Concorda?
JM: Concordo plenamente, inclusive li a entrevista do Asad Haider no AbrilAbril, uma entrevista muito boa, como sempre. É um autor muito qualificado e o que ele fala não é uma ideia nova, baseia-se muito nas ideias do Frantz Fanon. Defende uma perspectiva que eu gosto de chamar de humanismo radical. Compreende que a divisão do mundo em raças é um produto da modernidade, a partir da acumulação primitiva de capital que se consolida no capitalismo, e que a questão, em última instância, não é uma sociedade de igualdade racial, mas é uma sociedade desracializada. Evidentemente, que enquanto elemento tático nós vamos reivindicar elementos da positividade do negro na luta antirracista. Só que isso não significa que a gente abra mão do horizonte último de desracialização; da mesma forma que o objetivo de acabar com a classe trabalhadora enquanto classe, no socialismo, em que todos serão trabalhadores, não implica que, nas lutas imediatas, no capitalismo, a gente não organize sindicatos para melhorar os salários, apesar de isso reproduzir o assalariamento. Como na luta de classes, no caso do racismo acontece o mesmo. Usamos os elementos de positivação de ser negro, frente à inferiorização do ser negro, que são intrínsecos à ideologia racista. Mas o horizonte último é a desracialização da sociedade. Frantz Fanon estava corretíssimo: fazer com que o signo raça deixe de ser um marcador e um estruturador de relações sociais.
AA: O capitalismo vive em permanente crise e ela parece cada vez mais aguda. Mas por que é que parece mais possível uma catástrofe natural ou a invasão de extraterrestres, para usar uma imagem de Fredric Jamenson, do que a simples superação do capitalismo?
JM: Vivemos uma época contrarrevolucionária da qual não nos libertamos totalmente. A queda da União Soviética e a derrota do socialismo foi muito grande. E há um processo de reconstrução do movimento revolucionário. Essa reconstrução é muito tímida, está mais avançada em alguns países do que em outros. Há ainda uma busca de horizontes revolucionários que não estão claros. Há muitos debates sobre pós-marxismo, sobre socialismo revolucionário no século XXI, sobre populismo de esquerda, debates que não têm consequências práticas, mas ainda vamos ter um caminho muito longo para que o marxismo-leninismo renovado, com todos os novos problemas do século XXI, consiga dar respostas aos desejos das massas. Ainda vai demorar muito a construir um movimento revolucionário mundial e conseguir colocar na ordem do dia, como já esteve, o fim do capitalismo.
AA: Não pode haver necessidade de uma adequação teórica aos novos tempos e uma necessidade de identificar o que será hoje um sujeito revolucionário para a transformação, e o que é hoje essa «classe operária» revolucionária e ainda como criar um movimento revolucionário a partir desse sujeito?
JM: Acho que sim, mas a resposta para isso não está em abandonar o marxismo-leninismo, mas em renovar a teoria assimilando novos problemas, acompanhando as transformações do sistema capitalista. Vou dar um exemplo, há um processo claro no Ocidente de desindustrialização com a deslocação de várias indústrias para a Ásia, com a recomposição da economia do mundo em que a China é a fábrica do planeta. Isso faz com que cresça, no chamado Ocidente, o trabalho informal e o assalariamento nos setores do comércio e serviços, uma mudança no perfil da classe trabalhadora. Hoje faz muito mais sentido falar de assalariados urbanos do que falar em classe operária, no sentido fordista. Isso é um problema do ponto de vista organizativo e em relação às novas reivindicações. A classe trabalhadora brasileira é majoritariamente feminina, mesmo a que tem emprego formal; a classe trabalhadora informal, para além de ser majoritariamente feminina, é muito negra. Então, a figura da mulher negra e mãe solteira é muito presente no exército industrial de reserva.
AA: A ideia de classe operária estava ligada à produção de mais-valia, isso só era possível em trabalhos que criassem valor. O marxismo excluía desse quadro a distribuição, os serviços e o comércio. Hoje, ao considerar-se que na nova classe trabalhadora estão, por exemplo, os distribuidores da Uber Eats, não há uma mudança na teoria valor-trabalho?
JM: Não creio que haja uma mudança teórica, mas uma mudança nas formas de exploração. Quando Marx escreveu o livro I de O Capital, a maioria da população era explorada via colonialismo; o trabalho assalariado, como forma dominante de exploração, é da segunda metade do século XX. Quando a Internacional Comunista é criada, a maioria da população era colonizada e vivia em formas de semiescravidão. A teoria do valor-trabalho e do fulcro do capitalismo com a exploração estava valendo, agora nós temos outras transformações, só que o essencial da coisa continua: a propriedade privada dos meios de produção, a existência de um contingente gigantesco da população que não tem mais do que a sua força de trabalho para vender e a apropriação privada da riqueza socialmente criada. A partir daqui vamos pensar em novas táticas e formas de organização e comunicação para organizar os explorados e oprimidos, mas eles continuam explorados e oprimidos. O núcleo da questão continua a ser explicado pela teoria marxista.
AA: Num filme muito conhecido, Matrix, a humanidade estava presa numa ilusão gerada por um programa computorizado e só era possível combater essa ilusão desconectando-se dele. É possível fazer a luta revolucionária no quadro do capitalismo de vigilância e das tecnologias de comunicação e redes sociais?
JM: Totalmente, mas é preciso uma política leninista séria. Hoje, no Brasil, é mais fácil arrecadar dinheiro, do que era no tempo da ditadura militar. Também é muito mais fácil a vigilância, mas escapar dela exige um nível de planejamento e de organização e estrutura… Inclusive uma organização revolucionária que se preze tem de ter um departamento interno de hackers e segurança da informação. Tem de aprender a atuar, fazer guerrilha virtual, uma área que é muito dominada pelos anarquistas, os cyberpunks, e os marxistas-leninistas estão dormindo nessa área. Há algumas experiências existentes interessantes, mas é necessário voltar a ter a ideia leninista de uma política planejada e organizada. O espontaneísmo, numa altura em que se tem as maiores capacidades de vigilância, é facilmente derrotado, aliás sempre o foi.
AA: Usa as redes para fazer política, mas foi uma ação espontânea. O PCB nada teve a ver com isso.
JM: (Risos) Eu acho errado, isso devia ter sido discutido política e internamente. Acho que até partidos leninistas precisam de mais leninismo. Há um conservadorismo muito grande. É muito difícil debater uma política hacker com qualquer comunista. Usou o termo de «capitalismo de vigilância». Conheço várias pessoas que o usam, acho interessante o debate, mas colocando a pergunta de Lênin, eu quero saber é «o que fazer?» E aí não se vê uma reação prática concreta. Pode-se dizer que o capitalismo tem a maior capacidade de vigilância da história, é verdade. Mas cadê o nosso sistema de comunicação criptografado que não passe pelo Google? Qual é o nosso recrutamento direcionado para pessoas das Tecnologias de Informação para que possamos fazer uma guerrilha que impeça essa vigilância? Isso é um problema, há um certo tradicionalismo, muito forte, que não percebe que a mudança das relações de produção capitalistas e nas formas de dominação exigem alterações táticas, de organização e comunicativa. Do mesmo jeito que Engels, no famoso prefácio a As Lutas de Classes em França, defendeu que a tática de barricadas já não era eficaz com o desenvolvimento da ciência militar, e que era preciso outras formas de ação, é preciso hoje encontrar essas novas formas. É difícil? É. Temos de ter uma criatividade política sem sair do marxismo-leninismo, é esse o ‘x’ da questão, sem andar com teorias ecléticas da moda.