Ensino privado e precarização do trabalho docente

imagemFoto: Samory Pereira Santos

Instituições Privadas de Ensino, Crise na Educação e Desvalorização da Profissão Docente

Por David Rehm
Nos últimos dias temos assistido muitas matérias jornalísticas denunciando as demissões em massa nas instituições de ensino privado do estado da Bahia. Ganhou as páginas dos jornais os casos relacionados ao nível superior, mas isso vem ocorrendo também no ensino básico, como apontaremos no decorrer deste texto.

Primeiramente gostaríamos de salientar que a educação privada sempre se colocou como concorrente da educação pública. Não à toa, quando falamos do tempo presente, precisamos voltar nossos olhos para o passado, mais especificamente para a ditadura civil-militar brasileira. A ditadura governou o Brasil entre os anos de 1964-1985, gerando endividamento do país e a entrega de áreas estratégicas para a especulação privada e internacional, indo em direção contrária ao discurso de defesa nacional apresentada nas propagandas oficiais.

Em 1965, um ano após o golpe, o governo brasileiro começou os primeiros acordos com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), visando abrir a educação brasileira para a exploração do capital estrangeiro – mais especificamente, o capital dos Estados Unidos. O acordo vem a público apenas um ano depois e é visto com desconfiança pela comunidade acadêmica. O nível superior foi a primeira vítima, já em 1968, quando é assinado um “acordo” conhecido como MEC-USAID, em referências aos dois organismos que celebram o contrato. De fundo, a proposição sempre apontou para a privatização do ensino público, adequando o Brasil ao modelo educacional dos EUA. É de lá que se inicia o processo de transferência de recursos públicos para a iniciativa privada.

Dando um salto histórico para os anos 1990, na chamada Era FHC (PSDB), a educação privada ganha novo fôlego, sempre com a conivência do Estado brasileiro, representante dos interesses desse setor. A flexibilidade nos critérios de abertura de faculdades no país gera um fenômeno que era chamado, na época, de Uniesquinas, ou seja, faculdades e universidades que não possuíam nenhuma qualificação para serem responsáveis pela formação de profissionais em nível superior. Em 2004, já sob o governo de Lula (PT), é criado o Programa Universidade para Todos (PROUNI), que oferece vagas na iniciativa privada em troca de descontos de impostos para tais instituições. A aprovação do PROUNI não acontece sem luta, em que pese as direções dos movimentos sociais, sindicais e populares ligadas ao governo venderem a proposta como salvadora da pátria.

Em 2016, as renúncias fiscais foram estimadas em R$ 1,27 bilhão, o que seria um montante significativamente alto a ser investido na estruturação, ampliação de vagas e contratação de pessoal para as instituições públicas de nível superior. Não bastasse a sangria relacionada à renúncia fiscal do PROUNI, entre 2015 e 2017, com o claro objetivo de satisfazer aos desejos dos donos de universidades e faculdades privadas, brasileiros e estrangeiros, os governos de Dilma (PT) e Temer (MDB) implementam uma política de pouco controle sobre o número de estudantes que acessam ao Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior. Nesse período, os estudantes não precisavam de fiador para conseguir o financiamento, o que beneficiava os estudantes, porém, ao mesmo tempo, beneficiava ainda mais as privadas já que elas aumentaram suas vagas de forma descontrolada, lesando os cofres públicos (tendo em vista o alto índice de inadimplência) enquanto engordava os cofres das instituições.

Só para pegarmos um exemplo, a Kroton triplicou seus lucros entre 2015-2016. Importante lembrar que a Kroton é a dona da Anhanguera, que em 2017 veiculou uma propaganda em que apontava os cursos de licenciatura como “bicos” e tendo Luciano Huck como garoto propaganda. É este o projeto político de tais instituições: transformar a educação em mercadoria para que possam lucrar cada vez mais; transformar a docência em bico, desmontando o sistema educacional de nosso país. Falamos da Kroton e suas faculdades e universidades, mas poderíamos citar muitas outras no estado da Bahia, como a UNIJORGE, UNIRUY, Faculdade 2 de Julho…

Uma outra constatação possível de ser feita, partindo desse mesmo processo, é que apesar do aumento da arrecadação financeira de tais instituições, pouco ou nada foi investido em infraestrutura, valorização dos profissionais envolvidos no processo educacional (e aqui nos referimos à todos profissionais que atuam nas instituições de ensino) e uma exploração cada vez maior da classe docente. Esses últimos passaram a ter que lidar com salários mais baixos, turmas que extrapolavam os limites de número de pessoas em sala, a “virtualização” das disciplinas – uma palavra bonita para a eadização do ensino superior –, lesando também os estudantes dos cursos presenciais. E, por fim, a categoria dos docentes ainda sofria a escassez de disciplinas, o que resultava em diminuição da carga horária.[2]

Pandemia e crise na educação

O argumento da patronal (donos de instituições privadas) é de que a crise atual é culpa da pandemia, vivida desde 2020.1. Isso é uma grande inverdade. Não que a crise econômica, anterior à Covid-19, ou mesmo a pandemia não tenha uma relação com a atual crise. Entretanto, ela seria evitável se, ao invés da arrecadação de dinheiro público anterior ter ido para o bolso das instituições, tivessem investido nas instituições. Prova disso é que os currículos dos cursos de nível superior estão se descaracterizando cada vez mais. Disciplinas tampões, criadas para dar conta de diversos cursos, demonstram isso. Acontece que uma disciplina como “Trabalho de Conclusão de Curso” possui perfil diferente, dependendo de qual seja o curso. Um TCC tem formato diferente para um curso da área de gestão ou de licenciatura e entre as licenciaturas da mesma forma. Uma disciplina como “Gestão da Qualidade” deve ser desenvolvida em acordo com as áreas de atuação, já que além das questões mais genéricas ligadas ao tema, existem abordagens específicas dependendo da área de atuação (Engenharia da Produção, Gestão de Pessoas, Logística, etc.). Com as disciplinas “tampões” a instituições enxugaram o quadro, bem como também “enxugaram” conteúdos relevantes para a formação em nível superior.

Ensino Básico

Como dito no início do texto, no ensino básico as coisas também não vão tão bem. Os principais impactos atingiram as pequenas e médias escolas. O primeiro impacto foi o da homogeneização da educação. Os sistemas educacionais, como Positivo, SER e tantos outros, auxiliaram na destruição do mercado editorial de livros didáticos, quase que determinando o futuro do formato e da abordagem dos conteúdos em sala de aula das instituições privadas de ensino. E basta uma rápida olhada nos conteúdos desenvolvidos nas áreas de Ciências Humanas e Biológicas para percebermos, em determinados temas, uma abordagem eurocêntrica e/ou elitizada do conteúdo.

Mas o problema está além dos conteúdos dos livros didáticos que, por si só, já deveria ser ponto de reflexão sobre a educação em nosso país. No ano passado, o Instituto Social da Bahia (ISBA) fechou suas portas após 56 anos de funcionamento. Escola que atendia à classe média alta da cidade de Salvador, a instituição fechou as portas apontando a crise econômica e o contexto político do país. O ISBA destoa de outras instituições de ensino com mesmas características que mantém as portas abertas às custas da superexploração de professores e professoras. A alta rotatividade de docentes em tais instituições demonstra que é uma situação insustentável. Conforme conta em nota do Sindicato dos Professores no Estado da Bahia (SINPRO), que representa docentes de instituições privadas de todo o estado, o Colégio 2 de Julho, que possui um belíssimo histórico de resistência à ditadura militar, não vem pagando integralmente os seus professores. Conforme pudemos contatar, a instituição não vem depositando FGTS dos funcionários e tampouco o INSS, que vem sendo recolhido nos contra-cheques. A instituição aponta a crise gerada pela pandemia, mas o problema em tal instituição se arrasta desde o ano de 2015. E vocês lembram que ano foi esse? Isso mesmo… O ano em que as instituições de ensino lucraram absurdamente com o FIES, já que a Fundação 2 de Julho é a mantenedora tanto da escola quanto da faculdade. E a dívida virou uma bola de neve, tendo em vista as dezenas de processos administrativos. Mas enquanto professores e professoras trabalham sem receber e os dirigentes da instituição “pedem” que docentes trabalhem de graça ou recebendo parcialmente, sob pena de serem demitidos e não receberem nada, o prédio onde funcionam escola e faculdade está sendo reformado. Curiosamente, o Colégio 2 de Julho não retornou às aulas presenciais e quem vem mantendo a estrutura de funcionamento das aulas virtuais são os mesmos docentes que a instituição trata de forma análoga à escravidão.

O que fazer?

Infelizmente, hoje o SINPRO tem encabeçado apenas uma luta pontual em prol dos docentes demitidos, mas não tem levado à frente uma postura política combativa. A base da categoria se queixa da falta de presença do sindicato junto a ela e, quando se aproxima, não tem auxiliado em nada no impulsionamento de uma luta que unifique a categoria que representa. A base ainda escuta de parte da direção que a culpa é sua, que se organizar e lutar contra os despropósitos das instituições não dará em nada, descumprindo o papel basilar de toda representação sindical, que é representar e organizar politicamente sua categoria.

Nós da Unidade Classista fazemos um chamado aos e às docentes para, junto conosco, reorganizar o trabalho de base da categoria e avançar na luta. Não é meramente uma questão econômica pontual, é o projeto educacional de nosso país que está em jogo. Venha conosco lutar pela educação de nosso país e pela valorização de professoras e professores.

[1] Saiu uma série sobre demissão de docentes no jornal Correio 24 Horas, de circulação estadual. Cf.: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/crise-nas-faculdades-privadas-quase-200-professores-sao-demitidos-em-salvador/

[2] No caso de instituições que fazem parte de redes a nível nacional e internacional as disciplinas virtualizadas são ofertadas com professores e professoras de outras instituições, gerando uma competição entre a classe docente que sempre era definida pelo velho critério capitalista do QI (quem indica).