Édison Carneiro (1912-1972)

Por Gonçalo Alves

Jornal O MOMENTO – PCB da Bahia

Édison Carneiro nasceu em Salvador (BA), no dia 12 de agosto de 1912 e faleceu no Rio de Janeiro, em 2 de dezembro de 1972. Ao longo de pouco mais de seis décadas de existência, exerceu múltiplos papéis: advogado; escritor e jornalista; historiador; antropólogo e etnólogo; musicólogo e pesquisador do samba e militante do Partido Comunista Brasileiro.

Sua participação na vida cultural baiana se iniciou em 1930, quando, junto a outros jovens intelectuais inconformistas residentes na capital do estado, como Jorge Amado, Gilberto Dias Gomes, Aydano do Couto Ferraz e Clóvis Amorim (a chamada “Academia dos Rebeldes”), participou da edição das revistas culturais Meridiano (1929) e O Momento (1931-1932). Formado em Direito pela então Universidade da Bahia, pouco atuou na advocacia, redirecionando brevemente suas atividades para o jornalismo, que desempenhou até sua ida para o Rio de Janeiro, em 1938.

Em sua atuação como repórter do jornal O Estado da Bahia, cobriu aquilo que ficou conhecido na época como o “Levante Comunista do Posto Indígena de Ilhéus”, ocorrido nos primeiros meses de 1936. O acontecimento consistiu em uma mobilização da população indígena naquela localidade, ao sul do estado da Bahia, em defesa de suas terras contra as invasões de latifundiários e grileiros, os quais ambicionavam incorporar estes territórios às fazendas cacaueiras da região, que vinham experimentando um grande incremento na produção, visando os mercados interno e externo. A organização daquela luta de resistência contou efetivamente com a participação de militantes do PCB, fato que levou os proprietários de terras locais e setores da imprensa reacionária a retratá-la como o resultado puro e simples da “infiltração comunista” na região, ativando sentimentos de pânico e anticomunismo em um país ainda sob o cutelo institucional da Lei de Segurança Nacional, vigente desde março do ano anterior, e em uma atmosfera opressiva ulterior à insurreição nacional libertadora de novembro de 1935.

Édison Carneiro entrou em rota de colisão com os proprietários das fazendas de cacau e autoridades locais ao publicar que o principal motivo das ações indígenas era a defesa de suas terras contra a ofensiva dos cacauicultores e por isso foi forçado a sair da região. Édison Carneiro, em seu retorno a Salvador, continuou incomodando as forças conservadoras e autoridades, quando denunciou e criticou as operações de repressão policial contra os locais de culto das religiões de matriz africana da capital e cidades do recôncavo baiano, iniciando ali a construção de sua reputação como um dos mais autorizados estudiosos deste fenômeno religioso.

A Bahia era então governada pelo militar cearense Juracy Magalhães, que após desembarcar no estado como interventor Federal depois da chamada Revolução de 1930, foi eleito governador nas eleições de 1933. O mesmo Juracy Magalhães que ordenara o encarceramento do então jovem estudante de engenharia Carlos Marighella, estendeu seu braço repressivo na direção de Édison Carneiro, obrigando-o à semiclandestinidade vivida sob o acolhimento das lideranças do culto-afro-brasileiro dos subúrbios de Salvador. Foi nesta condição que participou da organização do II Congresso Afro-Brasileiro, realizado na capital baiana em 1937.

Édison Carneiro X Gilberto Freyre

O I Congresso Afro-Brasileiro acontecera em Recife (PE), no ano de 1934 e teve no escritor pernambucano Gilberto Freyre o seu principal expoente. Realizado um ano após a publicação deCasa Grande & Senzala, o enclave recifense fora marcado pela influência preponderante das elaborações freyreanas, que inspirariam, nos anos vindouros, as teses sobre a “democracia racial” e o “luso-tropicalismo”. Para o II Congresso, Édison Carneiro incumbiu-se da tarefa de contrapor às formulações culturalistas, de difuso viés apologético, das concepções de Freyre uma abordagem distinta da problemática do negro no Brasil: ele situou a questão do negro no núcleo da problemática sócio racial brasileira. Evitou, por motivos óbvios, a utilização ostensiva de um vocabulário de tradição marxista, mas buscou estabelecer os nexos estruturais entre a discriminação e desvalorização da contribuição cultural do povo negro à cultura brasileira às situações de exploração e opressão de “raça” e classe a que vinha sendo submetido ao longo de toda a história do país. Porém, não se limitou a isto. Rompendo liminarmente com as posturas professorais e elitistas dos estudiosos da cultura afro-brasileira até então, o comunista Édison Carneiro aproveitou a ocorrência do enclave para, de forma militante, criar a União de Seitas Afro-Brasileiras, a primeira entidade fundada no Brasil com a finalidade de proteger e apoiar as religiões de matriz africana.

Com o golpe do Estado Novo, em novembro de 1937, intensificou-se a repressão aos comunistas não apenas na Bahia, mas em todo o território brasileiro. Mesmo com a saída de Juracy Magalhães, seu desafeto, do governo baiano, deterioraram-se as condições para a permanência de Edison Carneiro em sua terra natal. Ele seguiu para a então capital da república, em 1938, onde era menos conhecido, e permaneceu em terras cariocas até o final de seus dias.

Estudos pioneiros, militância cultural e antecipação do nacional-popular

Nas décadas em que viveu no Rio de Janeiro, Carneiro teve a oportunidade de aprofundar e adensar suas investigações sobre aspectos fundamentais da cultura brasileira e continuar sua militância política e cultural. Estas atividades se respaldavam em sua vinculação acadêmica e profissional a órgãos oficiais de gestão da política cultural, em seu pertencimento à comunidade religiosa afro-brasileira, nas conexões que estabeleceu com o mundo do samba e em sua atuação como militante do setor cultural do PCB. Os elementos que estiveram no foco de suas atenções podem ser discriminados da seguinte maneira:

a) A continuação do estudo das religiões afro-brasileiras iniciado na Bahia.
b) As pesquisas acerca de manifestações da cultura popular em diversos estados e regiões do país, nomeadamente o samba, a capoeira e outras tradições culturais.
c) A resistência negra e outras lutas travadas pelos setores populares na história do Brasil.

Em cada um destes campos de estudo, Édison Carneiro atuou como intelectual criador, crítico e dialético, posicionando-se de forma alternativa e militante às concepções elitistas, conservadoras e equivocadas com as quais se deparou. Ao desenvolver seus estudos sobre as religiões de matriz africanas, necessitou superar limitações e pré-conceitos. As limitações diziam respeito à forte influência exercida pela obra de Nina Rodrigues, médico maranhense radicado na Bahia na virada do século XX, que fora o iniciador daqueles estudos no Brasil. Sem poder desafiar abertamente as formulações de Rodrigues, conformadas por elaborações racistas e deterministas e apoiadas na psicologia social de Gustave Le Bon e na Psicologia Criminal de Cesare Lombroso, Carneiro fez tabula rasa das caracterizações reducionistas da cultura e das religiões africanas e afro-brasileiras contidas na obra de Nina Rodrigues, ressaltando o caráter complexo, elaborado e sofisticado daquelas tradições religiosas.

Precisou contornar também os enraizados preconceitos, amplamente disseminados entre os estudiosos da temática na época, em relação aos métodos e categorias da dialética materialista. Para tanto, além de evitar o uso ostensivo do conceitual marxista, como já citado, procurou apoiar seus estudos no maior volume possível de evidências empíricas em diálogo frequente com as investigações mais consagradas. Seus escritos sobre a cultura popular em suas mais variadas expressões fizeram de Carneiro uma referência incontornável dos estudos acerca do folclore brasileiro. Contemporâneo de outros investigadores renomados como Câmara Cascudo e Mário de Andrade, distinguiu-se do primeiro pela abrangência nacional de suas pesquisas e do segundo pela diversidade das manifestações culturais abordadas, para além do âmbito musical.

A acuidade do seu olhar sobre as matrizes populares da cultura brasileira fez da obra de Carneiro um elemento precursor da perspectiva nacional-popular desta cultura, que conheceria na virada dos anos 1960 sua realização artística mais efetiva. Os trabalhos de Édison Carneiro com foco nas lutas de resistência negra e popular na história do Brasil se destacam pelo pioneirismo e engajamento. Foi, talvez, o primeiro autor a resgatar positivamente a experiência do Quilombo de Palmares, destacando seu caráter antiescravista, anticolonialista e emancipador, reconhecendo-o como a primeira forma de luta solidamente organizada deste tipo no Brasil e nas Américas.

Suas investigações acerca dos processos de resistência popular na formação da sociedade brasileira encontram continuidade nos livros sobre a Revolução Praieira e sobre Castro Alves. Nestas obras, sem incorrer em extrapolações e anacronismos, Carneiro recupera as causas históricas da não realização, no Brasil, de uma revolução democrático burguesa. O elitismo das classes dominantes, as vacilações das lideranças, o simples desconhecimento objetivo das condições que pretendiam transformar e dos setores sociais que se propunham a conduzir aparecem como fatores elucidativos dos fracassos registrados. Do reconhecimento daqueles insucessos, Carneiro, sem afirmá-lo expressamente, sugere a atualidade, em plena segunda metade do século XX, da realização no Brasil de uma revolução nacional e democrática, anti-imperialista e antilatifundiária em concordância com o programa defendido pelo PCB naquele momento.

Conclusão

Édison Carneiro foi, ao lado de outros comunistas negros como Minervino de Oliveira, Solano Trindade, Claudino José da Silva, Clóvis Moura e Carlos Marighella, personagem de uma longa luta contra o racismo, a exploração capitalista e a dominação imperialista em nosso país. Tendo vivido a experiência da opressão racial e da luta de classes, pensaram, formularam e combateram pela emancipação do povo negro, da classe operária e do povo brasileiro de formas articuladas e dinâmicas. Confrontando os preconceitos, resgatando a trajetória das lutas populares, convocando o povo negro para a organização e a mobilização, construíram um patrimônio histórico inestimável: a abordagem comunista do enfrentamento da questão racial no Brasil. Nesta construção o nome de Édison Carneiro aparece ocupando uma posição de destaque.

Referências Bibliográficas

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Coautoria:

CARNEIRO, Édison; OLIVEIRA, Waldir Freitas; LIMA, Vivaldo da C. (Org.). Cartas de Edison Carneiro a Artur Ramos: de 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. São Paulo: Corrupio, 1987