Um 1º de Maio triste para os que são livres como pássaros
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Por Mauro Luis Iasi para o Blog da Boitempo
Em tempos de subordinação real e não meramente formal, certos segmentos da classe trabalhadora podem inclusive operar seus próprios meios, no entanto só podem operá-los subordinados ao capital e inserindo-se no mercado de produção de mercadorias ou serviços operados por grandes empresas. Como se fosse uma lei natural que sempre existiu. Os pássaros livres voam para o bem do capital que os aprisiona.
Quando em 1886 os trabalhadores norte americanos entraram em greve pela jornada de trabalho de oito horas (a jornada média era de 13 horas), descanso semanal e férias remuneradas, mal poderiam imaginar que cento e trinta e oito anos depois, trabalhadores de aplicativos exigiriam o direito de trabalhar doze horas e sem direitos.
Em um primeiro de maio convocado por quase todas as centrais sindicais, com uma participação muito pequena, cerca de quatro ou cinco mil pessoas, o presidente Lula conclamou por um país mais justo. Mas deixemos por um tempo o governo e suas intenções. Voltemos nossa reflexão para a cobertura jornalística. Deixando de lado a conhecida campanha de ataque ao governo pela direita e extrema-direita, que insistiu em apontar possíveis deslizes eleitorais ou o almoço dos ministros, me chamou a atenção a pauta da Globo News, com claro corte editorial, uma vez que vários comentaristas ao longo do dia insistiram em uma conhecida tese.
Para os chamados comentaristas da emissora, o presidente falaria para uma classe que não mais existe, que lutava por salários e direitos, enquanto a atual classe trabalhadora é formada por empreendedores individuais que não querem patrão, “querem mandar em seu próprio nariz”, nas palavras de um dos supostos jornalistas, “querem fazer seus próprios horários’, enfim, “querem ser livres”. O Estado, segundo essa visão, não deveria se meter na livre negociação entre trabalhadores e patrões e sim dar as condições gerais para que o clima econômico seja favorável, a inflação controlada e, além disso, estabelecer um conjunto de políticas públicas que permitiria aos mais pobres ter um patamar adequado para entrar na livre concorrência por empregos e capacidade de consumo.
Sabemos que isto que ocupou o lugar do jornalismo especializou-se em descrever a forma mais superficial das aparências, portanto não devemos cobrar nada que se aproxime a uma análise. Aqui, nos interessa destacar como a ideologia opera nesta ação supostamente informativa. Uma das características da ideologia é que ela não apenas encobre determinações, mais precisamente a operação ideológica encobre mostrando, revela para ocultar. Mas, o que estaria oculto no fenômeno descrito em sua aparência?
Houve uma profunda alteração da forma da classe trabalhadora, como nos diz Ricardo Antunes (2005) – na morfologia da classe – e sabemos que isto se deve a alterações nos padrões de acumulação do capital nas condições das relações sociais de produção contemporâneas. As eufemisticamente chamadas de relações “flexíveis”, nada mais são que a adequação das relações de trabalho às exigências do capital monopolista mundial. Sabemos que o efeito destas exigências incide sobre os trabalhadores precarizando os contratos de trabalho, dispersando a classe, rebaixando níveis salariais e eliminando direitos duramente conquistados.
Tudo isto é conhecido, mas o que nos interessa é a afirmação que este novo trabalhador, na versão do porta-voz do capital na mídia corporativa, não quer direitos e condições de trabalho porque isso afetaria sua liberdade. Diante de tal afirmação tendemos a reagir emocionalmente afirmando que não é verdade, é pura manipulação. Entretanto, acredito que aqui está o centro de nossa inquietação, a ideologia não é mera enganação, mentira e falsificação, embora tudo isto esteja presente na ação ideológica, como nos diz Eagleton (1997). A ideologia apresenta uma inversão que não pode ser criada no terreno ideal, mas habita no mundo e, ao fazê-lo, opera legitimando-a como natural e necessária.
Nesta direção, ao invés de questionar o discurso ideológico que se expressa na afirmação – “o trabalhador não quer direitos, quer ser livre” – devemos nos perguntar sobre a materialidade de tal comportamento e suas determinações que não vão se apresentar na superfície e não podem ser escritas em nenhum teleprompter.
Primeiro, devemos inquirir sobre esta liberdade. Marx (2013) nos dizia que o modo de produção capitalista exige uma pré-condição que é a separação do produtor direto de seu meio de produção, para ser claro, uma expropriação. Desta forma, nos diz Marx, para que o capitalismo exista foi e é necessário “acima de tudo, os momentos em que grandes massas humanas são despojadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas ao mercado de trabalho como proletários absolutamente livres” (Marx, 2013, p. 787).
O termo em alemão que nosso autor utiliza nesta passagem é Vogelfrei, que pode ser traduzido como “livre como os pássaros” ou “fora-da-lei”. Assim, livre aqui se refere à separação entre o produtor direto e seus meios de subsistência e de trabalho.
Alguém poderia argumentar que tal processo diz respeito ao proletariado tradicional e não à nova classe trabalhadora, exatamente pelo fato que seria, segundo o otimista jornalista, formada por empreendedores individuais que operam com seus próprios meios. Aqui se destaca outro elemento da operação ideológica: tomar o todo pela parte. Eis que como um passe de mágica toda a classe trabalhadora é formada por indivíduos donos de seus meios de trabalho. Mas não nos adiantemos.
A nova configuração do trabalho teria assumido a forma de indivíduos livres como os pássaros que não querem direitos, querem determinar livremente sua jornada e as condições de trabalho e receber pelo serviço ou produto resultante de seu trabalho. Certo, mas de quem estamos falando?
Segundo o IBGE, a população economicamente ativa no Brasil é de 107,46 milhões de pessoas, das quais estariam ocupadas 95,4 milhões. Trabalhariam com carteira assinada no setor privado 34,55 milhões trabalhadores e trabalhadoras e 12,38 sem carteira assinada (46,93 milhões no total de assalariados e assalariadas). Os chamados “trabalhadores por conta própria” seriam 25,5 milhões.
O que o discurso ideológico oculta é que a composição da classe trabalhadora ocupada é de 49% de assalariados no setor privado (com ou sem carteira assinada) e de 26,8% de trabalhadores por conta própria, apresentados homogeneamente como não querendo direitos. Se somarmos os funcionários públicos, que parecem não estar ansiosos por perder direitos, os assalariados seriam 61,09% da população ocupada. A mágica da ideologia é apresentar o particular como se fosse universal.
Os trabalhadores livres como pássaros, portanto despojados dos meios de produção que lhes foram expropriados e concentrados em grandes monopólios, têm salários, FGTS, férias, 13º salário, planos de saúde, descanso semanal remunerado e, ainda que atacado, um certo direito à aposentadoria. Os trabalhadores de plataformas submetidas a algoritmos, que defendem a liberdade, trabalham doze horas por dia por uma remuneração variável a critério do algoritmo (a Uber, por exemplo, fica com cerca de 40% do valor da corrida), sem direito ao descanso semanal e férias, sem aposentadoria e sem nenhuma cobertura de saúde.
Apesar de se acharem livres, a atual negociação de um projeto que regularia a categoria e chegaria a algum patamar de direitos (um projeto bem limitado, diga-se de passagem) foi estabelecida com as empresas e, no caso dos entregadores, a principal delas melou o acordo se retirando das negociações!
Isto nos leva a afirmar que, por um aparente paradoxo, os trabalhadores mais precarizados que se acham livres, que utilizam de seus meios para trabalhar (o carro, a moto, seu computador para o home office, etc.) expressariam um interesse de manter tal condição. Como compreender? Certamente não chegaremos perto da resposta assistindo a Globo News e os comentários impostos pela pauta editorial.
Voltemos às brumas distantes da acumulação primitiva, processo no qual se deu a grande expropriação que separou os trabalhadores de seus meios de trabalho e subsistência. Por muito tempo tiveram que ser forçados a se pôr a trabalhar para outro, seja o arrendatário no campo, depois o arrendatário capitalista nas manufaturas e depois nas indústrias. Diz Marx na parte que trata do tema:
Não basta que as condições de trabalho apareçam em um polo como capital e no outro como pessoas que não tem nada para vender, a não ser sua força de trabalho. Tampouco basta obrigá-las a se venderem voluntariamente. No evolver da produção capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas (Marx, 2013. p. 808).
A forma como se dão as relações entre trabalhadores e os donos do capital mudou muito historicamente, tanto pela constante alteração e desenvolvimento técnico dos meios de produção, como pela luta de classes. Em 1886, os trabalhadores de Chicago tiveram que lutar e os mártires foram mortos na forca para diminuir a jornada para oito horas. Muitas outras lutas em todo o mundo e no Brasil foram necessárias para estabelecer o salário mensal, o descanso semanal remunerado, férias, direitos previdenciários e tantos outros. Hoje vivemos uma correlação de forças que leva a desconstrução destes patamares de direito. O que não se altera é que o fundamento das relações de trabalho se dá entre aqueles que entregam sua força de trabalho para uma empresa que utiliza seu trabalho para gerar valor e mais valor.
A educação, a tradição e o hábito forjam novos acomodamentos às exigências do capital que se apresentam ideologicamente como naturais. O que explica que tal acomodamento possa se dar em uma relação de profunda exploração de uma grande empresa monopolista e vários trabalhadores que se acreditam livres pois utilizam seus meios para exercer o trabalho?
Em outra passagem do mesmo texto acreditamos encontrar uma pista valiosa. Quando descreve o nascimento de um proletariado, Marx avaliará que nas condições de seu surgimento, o trabalho ainda vivenciaria uma “subordinação formal” ao capital, isto porque os proletários ainda eram um pequeno número no conjunto da população, imersos na enorme população camponesa e pela produção corporativa nas manufaturas. Isto porque, afirma o autor, “o modo de produção não possuía ainda um caráter especificamente capitalista”.
Ora, vivemos hoje um modo de produção especificamente capitalista, o que implica que vivemos uma subordinação real do trabalho ao capital, que os expropriados só podem garantir sua existência subordinando-se aos ditames da mercadoria e da valorização. Não podemos mais comer, vestir, morar ou nos divertirmos sem que entremos nos círculos da mercadoria e do capital. Em tempos de subordinação real e não meramente formal, certos segmentos da classe trabalhadora podem inclusive operar seus próprios meios, no entanto só podem operá-los subordinados ao capital e inserindo-se no mercado de produção de mercadorias ou serviços operados por grandes empresas. Como se fosse uma lei natural que sempre existiu.
Agora são livres, mesmo tendo a posse direta de meios de trabalho (motos, carros, computadores, produzidos por operários em grandes fábricas pelo mundo), para se somar ao enorme conjunto de expropriados que só pode existir subordinando-se ao processo de valorização e realização do valor em toda a sua dimensão.
O torpe jornalista imbecil sorri ao final de seu comentário inútil como se fosse a revelação enfim encontrada das leis que movem o universo. Os pássaros livres voam para o bem do capital que os aprisiona.
Referências bibliográficas
ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha. São Paulo: Boitempo, 2005.
EAGLETON, T. Ideologia. São Paulo: Boitempo/Unesp, 1997.
MARX, Karl. O capital [Livro I]. São Paulo: Boitempo, 2013.
Mauro Iasi professor aposentado da Escola de Serviço Social da UFRJ, professor convidado do programa de pós-graduação em Serviço Social da PUC de São Paulo, educador popular e militante do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.