Porque a economia brasileira nao foi tão atingida ate agora pela crise internacional do capitalismo?
Mesmo considerando incerto o desdobramento da crise mundial, com possibilidade de novas quebras ou uma piora generalizada da economia internacional vir a alterar significativamente a dinâmica até então vista no Brasil, é de extrema importância nos colocar a questão do por que a crise apresentou efeitos negativos menores que o esperado.
Quais características marcam a atual crise internacional no Brasil? Primeiro, a desaceleração do capitalismo brasileiro foi posterior (quarto trimestre de 2008) ao observado nos países da OCDE (segundo trimestre de 2008); segundo, a intensidade da queda do PIB e de seus componentes foi menor que a observada na OCDE, à exceção do Investimento no primeiro trimestre de 2009, sugerindo que a burguesia brasileira foi afetada pela crise; terceiro, ao analisarmos mais detalhadamente os impactos na burguesia local, os efeitos negativos se concentraram em três segmentos: o setor exportador, a indústria de bens de capital e a de consumo duráveis. Pelo lado do mercado de trabalho, encontramos características semelhantes: aumento do desemprego posterior ao do conjunto da OCDE; trajetória de diminuição a partir do mês de abril de 2009; concentração do desemprego, sobretudo nos trabalhadores formais, na Indústria e em menor intensidade na Agropecuária.
A defasagem temporal, menor intensidade e concentração setorial da crise no capitalismo brasileiro ligam-se a quatro dimensões, construídas no período de crescimento de 2004-2008 e não revertidas na crise, que atuaram como amortecedor dos efeitos negativos no Brasil, minorando os impactos na burguesia e arrefecendo a mobilização política dos trabalhadores.
A primeira dimensão é o papel do Brasil no circuito internacional de reprodução ampliada do capital. A maior integração ao mercado externo, principalmente pelo crescente aumento no nível das exportações desde 2003, deveria trazer um forte impacto negativo em uma reversão da economia internacional. Entretanto, a manutenção e reforço da histórica função de fornecedor de commodities nos últimos anos, conjugada ao aumento das exportações para a região que apresenta as maiores taxas de crescimento durante a crise, a asiática, com destaque especial a China[1], atuaram como processo amortecedor da crise para uma parte da burguesia. Junto à questão das exportações, destaca-se a inusitada capacidade do Brasil em reforçar, a partir da manipulação voluntária de variáveis macroeconômicas importantes (câmbio e juros), a entrada de capitais internacionais e o envio de rendas ao exterior durante a crise, minorando os clássicos problemas de Balanço de Pagamentos que afetavam toda a burguesia local.
A segunda dimensão que atuou como amortecedor da crise internacional no Brasil foram alterações na configuração da burguesia local na década de 2000. Além da intensificação dos laços econômicos com a região de mais alto dinamismo de crescimento no mundo por parte das frações exportadoras, o setor financeiro, em especial o segmento bancário, diminuiu sistematicamente a aplicação em títulos e derivativos que estiveram no epicentro dos problemas financeiros mundiais. Por fim, a expansão das multinacionais brasileiras, se por um lado trouxe problemas devido à exposição direta ao mercado internacional em crise, por outro i) permitiu o uso desse argumento para justificar a diminuição do custo da força de trabalho, via retirada de direitos e piora da condição de trabalho, no Brasil, mas também ii) incorporou a força de trabalho das filiais espalhadas pelo mundo neste ajuste. Ou seja, diferentes frações da burguesia local estavam melhor estruturadas para enfrentar a crise.
A terceira dimensão amortecedora da crise internacional no Brasil é a mudança de qualidade no Estado brasileiro, que mostrou o êxito de mais de uma década e meia de reformas neoliberais de ajuste para atender aos interesses do grande capital no Brasil. Daí o Estado brasileiro não atuar, até o momento, como centro irradiador de problemas macroeconômicos para o conjunto da economia, como nas crises anteriores, chegando ao ponto de diminuir e não aumentar a taxa de juros, valorizar e não desvalorizar o câmbio e manter e não perder reservas internacionais. Alem disso, o Estado brasileiro vem conseguindo atender um amplo conjunto de demandas de ajuda da burguesia local e internacional, de forma relativamente abrangente e eficaz, mobilizando um inusitado volume de recursos através de aumento de gastos, renuncia fiscal, concessão de crédito, garantia de empréstimos, etc., um padrão oposto aos presenciado nas últimas crises internacionais. Ou seja, a intervenção estatal foi fundamental para aplacar os efeitos da crise na burguesia que atua no Brasil.
O quaro processo amortecedor foi a dinâmica do mercado de trabalho, marcada pelo aumento do emprego e da renda do trabalho no período de crise, com destaque para a trajetória de crescimento da massa salarial e o aumento real do rendimento dos trabalhadores, decorrente tanto do da trajetória do rendimento nominal ligada ao relativo sucesso de muitas negociações coletivas nos últimos anos, como à trajetória de baixa da inflação em 2009. Esta última contribui também para manter o poder de compra dos programas sociais e da Previdência, conseguindo a manutenção do patamar da taxa de pobreza, fato inusitado quando observamos outros períodos de desaceleração econômica. Ou seja, apesar da crise, não houve uma piora generalizada nas condições materiais de vida de grande parte os trabalhadores.
Portanto, o funcionamento desses mecanismos amortecedores contribuiu para um desenrolar da crise diferente do que esperávamos. Mas o que podemos esperar da crise internacional nos próximos meses e do comportamento da economia brasileira, em específico?
Em relação aos desdobramentos da crise no plano internacional, a burguesia esboça um consenso em torno de uma visão de superação da pior fase da crise, apoiada na efetividade da coordenação mundial de políticas econômicas anticíclicas em conter a tendência depressiva da crise, e na aposta de que a recessão nos países centrais durará até o segundo semestre de 2010. Entretanto, este mesmo consenso reconhece três grandes problemas para a resolução da crise atual, que jogam contra esta visão otimista.
O primeiro é um horizonte ainda distante da retomada da expansão do crédito mundial, um dos pilares do ultimo ciclo de expansão mundial, que tem como condição prévia a necessidade de mais dinheiro público para re-estruturar os bancos e instituições financeiras com problemas patrimoniais. Ou seja, o capital portador de juros ainda está diante de problemas razoáveis, não só com os grandes montantes de capital fictício (na forma de títulos e ações) passíveis de maior desvalorização, mas com poucas perspectivas de novos empréstimos e negócios diante da retração generalizada da economia mundial.
O segundo problema é a clareza de dificuldades vindas da Demanda para a retomada do crescimento, dado que os países com sérios problemas financeiros, em especial aos EUA, não parecem poder desempenhar novamente o papel de locomotiva compradora mundial. Isto também implica em um cenário de baixo crescimento e menores taxas de investimento.
O terceiro desafio vem do aumento da relação divida/PIB na maioria dos países, principalmente nos agrupados no âmbito da OCDE. Isto coloca a necessidade de preparar a retirada das políticas de intervenção em um curto espaço de tempo, uma contradição com a busca de novos recursos para sanar as instituições financeiras, além de apontar para uma nova rodada de reformas pró-mercado, com a volta de superávits fiscais para estabilizar e até diminuir a trajetória da dívida pública, apoiada no aumento de impostos ou no corte de gastos sociais.
Pela ótica marxista, podemos predizer que a atual dinâmica de equacionamento da crise realmente implicará em um período de relativa estagnação, parecido com o cenário em “L” (queda brusca de nível seguido de um período de um lento crescimento). Os socorros bilionários vêm impedindo uma dinâmica de desvalorização do capital mais acentuada (principalmente a do capital fictício), fazendo com que o aumento da taxa de mais valia em curso, pela retirada de direitos trabalhistas e aumento das jornadas de trabalho, não consiga elevar ou manter satisfatoriamente a taxa de lucro, implicando não só em um período de baixo crescimento, mas na necessidade de uma nova crise para eliminar o montante de capitais que permita a retomada das taxas de lucro.
E as perspectivas para a crise no Brasil? Mesmo diante de uma dinâmica até o momento não esperada, devemos ter clareza dos desafios que a conjuntura nos traz e nos preparar para possíveis pioras súbitas do cenário econômico e político. Isso se reforça diante de um período de baixo crescimento mundial que se avizinha, seja ele generalizado (abarca uma desaceleração chinesa), ou concentrado nos países do centro capitalista, o que colocará em xeque não só a continuidade da intervenção estatal amortecedora no Brasil, mas a trajetória do crescimento da renda real dos trabalhadores.
Fabio Bueno, economista, da consulta popular-DF
24 de agosto de 2009
[1] A Ásia passa de 18% das exportações brasileiras entre janeiro e maio de 2008 (US$ 12,9 bi) para 25,6% no mesmo período em 2009 (US$ 14,2 bi). Em especial, a China eleva sua participação relativa nas exportações brasileiras de 8% (US$ 5,7 bi) para 13% (US$ 7,6 bi) no mesmo período. se conjugada a outra dimensão da inserção brasileira.