A subversão de conceitos

imagemPrabhat Patnaik*

Considere duas declarações: “A pequena produção está a ser esmagada pela intrusão do capital” e “A pequena produção está a ser esmagada pela intrusão de corporações multinacionais”. Muitos considerariam as duas declarações mais ou menos idênticas, sendo a segunda apenas uma forma mais específica de exprimir a primeira. Mas eles estão errados: há um mundo de diferença entre estas duas declarações.

O capital, como uma relação social, tem certas tendências imanentes. Estas actuam por si próprias através das acções de agentes económicos, cada um dos quais é obrigado a actuar de modos particulares pela lógica do sistema. Por exemplo: o facto de capitalistas acumularem não é porque eles necessariamente pretendam fazer isso, mas porque a lógica do sistema obriga-os a assim fazer. Capitalistas, em suma, não são agentes livres, livres para fazerem qualquer coisa que pretendam, mas são eles próprios coagidos pela lógica do sistema. Eles também são seres alienados sob o capitalismo, simplesmente a executar um roteiro ditado pelo sistema. Karl Marx chegou a referir-se ao capitalista como “capital personificado”.

As corporações multinacinais não são entidades diferentes, quanto a isto, do capitalista individual. Elas não são sinónimas do capital mas sim agentes através de cujas acções, ditadas pela lógica do sistema, as tendências imanentes do capital actuam por si mesmas. Tratá-las como sinónimo do “capital” é apagar toda esta concepção de capital com suas tendências imanentes, eliminar todo este discurso acerca da lógica do sistema e da sua “espontaneidade” – e operar efectivamente com uma teoria muito diferente.

Profundas implicações políticas

Mas esta mudança de “tema” de um “assunto conceptual”, nomeadamente o capital, para um “assunto tangível”, nomeadamente corporações multinacionais, não é apenas uma mudança teórica. Ela tem profundas implicações políticas. O capital com suas tendências imanentes tem de ser transcendido como categoria social, através de um derrube do capitalismo, se estas tendências imanentes – tais como a centralização do capital, a tendência contínua para mercantilizar todas as esferas da vida social, a destruição da pequena produção, a tendência para produzir riqueza num pólo e pobreza em outro – tiverem de ser afastadas. Reconhecer o capital como “tema” conceptual da dinâmica social portanto implica necessariamente uma agenda de revolução social como condição para a liberdade humana. Mas limitar a nossa atenção às corporações multinacionais como as impulsionadoras, ou o “tema”, da dinâmica social dá a impressão de que eles podem ser restringidas, controladas, domadas, persuadidas e forçadas a actuar de modos benevolentes (“responsabilidade social corporativa”) para melhorar o resultado e a direcção destas dinâmicas. Desta perspectiva, o que se segue é uma agenda de reforma, uma agenda liberal progressista. Portanto, uma mudança do “tema conceptual” para um “tema tangível” não é apenas uma mutação teórica; é também uma mutação de agenda, de uma agenda socialista para uma agenda liberal progressista.

Naturalmente, no discurso habitual do dia-a-dia, nós não ficamos a falar acerca de “capital” mas falamos ao invés de corporações multinacionais, de bancos multinacionais, mesmo de estabelecimentos industriais individuais como os Tatas, os Birlas e os Ambanis como as entidades contra as quais as lutas dos trabalhadores são travadas. Isto é como tem de ser, uma vez que “temas conceptuais” são alvos polemicamente difíceis, ao passo que “temas tangíveis” são mais palpáveis e portanto fáceis de compreender. E, mesmo na prática, a luta do dia-a-dia, tal como a actuação de um sindicato, é sempre contra uma entidade particular tangível, contra uma “personificação do capital”, como dizia Marx, ao invés de ser directamente contra a entidade conceptual chamada “capital” (pois isso ocorre com uma lucidez de compreensão só em períodos de luta de classe revolucionária). Mas a questão aqui é diferente, nomeadamente que uma substituição de um “tema conceptual” por um “tema tangível” por conveniência política ou devido à particularidade do contexto da luta (tal como uma acção sindical numa fábrica de propriedade de Ambani) nunca deve implicar uma substituição no âmago da teoria.

Qualquer substituição teórica assim, ou qualquer tendência para permanecer mais ou menos confinado a “assuntos tangíveis” ainda que reconhecendo formalmente o “assunto conceptual” (o qual implicitamente equivale a uma tal substituição teórica” é com efeito substituir uma agenda socialista por uma agenda liberal progressista. Há certamente liberais progressistas que não são socialistas e que, inteiramente consistentes com suas crenças políticas, não reconhecem “assuntos conceptuais”. Eles rejeitam declarações como a “pequenas produção esta a ser esmagada pela intrusão do capital”, mencionada no princípio, como elevando algo místico chamado “capital” ao status de um “sujeito”. Mas para um socialista, substituir no âmago da teoria um “assunto conceptual” por um “assunto tangível” equivale a abandonar a raison d’être da sua crença socialista.

Contudo, a propensão nesse sentido é particularmente alta nestes dias porque há um grande número de grupos activistas e ONGs, os quais são militantes e bem intencionados mas não socialistas. Eles estão empenhados bastante intensamente em lutas sobre questões particulares que afectam o povo e com os quais a esquerda deve fazer causa comum. Uma vez que os alvos destas lutas são “assuntos tangíveis”, o empenhamento contínuo em tais lutas ao lado deles por parte da esquerda traz o risco de empurrar a teoria, e com ela todo um conjunto de “assuntos conceptuais”, para segundo plano. A esquerda, estou a argumentar, deve precaver-se contra isto é permanecer comprometida com o seu projecto socialista.

Um segundo conceito que está em perigo de ser analogamente subvertido é “imperialismo”. O termo “imperialismo” refere-se a uma rede de relacionamentos, envolvendo os países capitalistas avançados e os subdesenvolvidos. Estes relacionamentos mudam ao longo do tempo, conduzidos não só pelas tendências imanentes do capital como também pela resistência do povo. A administração Reagan, ou a administração Bush ou a administração Obama são “assuntos tangíveis” através de cujas acções o “assunto conceptual” a que chamamos “imperialismo” opera na prática. Mas precisamente porque imperialismo não é tangível enquanto todas estas entidades através das quais ele opera o são, a tendência é substituir o termo “imperialismo” por estas outras entidades, exactamente do modo como o termo “capital” tende a ser substituído por expressões como “corporações multinacionais”, “bancos multinacionais” e semelhantes.

Por vezes são utilizadas expressões como o “Império americano”, ou o “Império do mal”, ou “Hegemonia estado-unidense”, ou apenas “Império” utilizada por Hardt e Negri numa obra bem conhecida, ao invés de “imperialismo”. Se bem que estas expressões descrevam certos relacionamentos, ao contrário de expressões como “administração Obama” que simplesmente se referem a entidades particulares existentes, elas também recusam-se a dar qualquer sugestão de ligação com as tendências imanentes do capital. O problema mais uma vez não é com a utilização destas expressões per se mas com a substituição da expressão “imperialismo” pelas mesmas, isto é, com o apagamento da teoria a qual decorre de um entendimento das tendências imanentes do capital e que, portanto, encara a transcendência do capitalismo e, por implicação, destas tendências imanentes do capital, como uma condição para a liberdade humana.

Aqui, mais uma vez, desde que a esquerda tem de trabalhar junto com muitos grupos activistas que são militantes sobre questões particulares relativas, por exemplo, à agressão dos EUA por todo o mundo, mas que não são socialistas e para os quais estes “assuntos conceptuais” como “imperialismo” decorrente das tendências imanentes do capital têm pouco significado, ela enfrenta o perigo de uma subversão dos seus conceitos e portanto de um deslizamento inconsciente para uma posição intelectual de liberalismo progressista a partir de um compromisso com o socialismo.

Isto não é desprezo por tais lutas ou pela necessidade para a esquerda – pela qual quero dizer todos aqueles que vêm a necessidade de transcender o capitalismo – de se juntar a liberais progressistas no decorrer destas lutas. De facto, liberais progressistas muitas vez podem ser mais militantes em lutas particulares do que a esquerda. A questão é que, ao assim fazer, a esquerda nunca deve abandonar o seu próprio entendimento teórico que se centra em torno de um conjunto de “assuntos conceptuais”.

Entendimento correcto

Ela deve aderir ao seu entendimento não apenas devido a alguma lealdade à memória de Marx e Lenine, mas porque acontece que este entendimento é correcto. O teste desta correcção jaz no facto de que lutas específicas contra “assuntos tangíveis”, mesmo quando elas têm êxito, trazem apenas vitórias temporárias as quais são negadas quando as tendências imanentes do capital se afirmam. De facto, mesmo a mais maciça “engenharia social” que foi imposta ao capitalismo pelas lutas da classe trabalhadora na era do pós-guerra, a qual testemunhou a “gestão da procura” keynesiana e mesmo anunciada festivamente como a “Idade de ouro do capitalismo”, foi revertida com a emergência do capital financeiro internacional (um outro “assunto conceptual”) em consequência das tendências imanentes do capital. Só quando, através de uma acumulação recursiva de lutas específicas, um desafio revolucionário com êxito for montado contra este universo de “assuntos conceptuais” como um todo, é que a humanidade se moverá finalmente para além destas lutas específicas. Até então, contudo, a esquerda deve manter-se fiel ao seu entendimento teórico baseado nestes “assuntos conceptuais” e portanto precaver-se contra qualquer subversão dos seus conceitos.

04/Setembro/2016

*Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2016/0904_pd/subversion-concepts . Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/patnaik/patnaik_04set16.html