“O imprescindível feminismo socialista”
(entrevista com Iñaki Gil de San Vicente)
Por Cira Pascual Marquina / Resumen Latinoamericano/ 24 de outubro de 2016 – Conversamos com o intelectual basco Iñaki Gil de San Vicente sobre a necessária engrenagem entre a luta pelo socialismo e a luta antipatriarcal.
Cira Pascual Marquina (CPM): No continente latino-americano, somos testemunhas de rápidos processos de pauperização. Em casos como o venezuelano, onde um governo progressista se mantém no poder, o horizonte de luta do povo tende a limitar-se a resolver os graves problemas familiares que se apresentam cotidianamente de forma individualizada. Em um contexto assim, a luta antipatriarcal poderia ser caracterizada como trivial ou pequeno-burguesa.
Muito pelo contrario, nós opinamos que este é um momento onde a luta de gênero deve assumir um papel importante no projeto anticapitalista. As mulheres pobres são as que carregam a maior parte do peso da crise sobre seus ombros, e embora a superação absoluta desta situação seja apenas possível no socialismo, estamos convencidas de que a luta pela emancipação da mulher deve ser do presente. É assim porque enquanto a mulher for dominada pelo homem e a crise cair sobre ela, a tendência é postergar a confrontação com o capital. Em um momento de crise econômica e política, como você conectaria a luta pelo socialismo com a luta antipatriarcal?
Iñaki Gil de San Vicente (IGSV): As forças revolucionárias venezuelanas, e em especial as que lutam com mais decisão e perspectiva histórica pela emancipação da mulher trabalhadora, cometeriam um erro suicida se subestimassem a importância da luta antipatriarcal como uma pedra basilar do socialismo. O erro consistiria em acreditar que como já foram conquistados alguns direitos elementares da mulher, e dadas as serias dificuldades atuais que podem levar à derrota do Processo Bolivariana, tendo tudo isto em conta, agora é necessário dedicar-se a outras lutas “mais importantes”.
Outros muitos processos revolucionários cometeram este mesmo erro: o russo de 1917, o do Estado espanhol de 1936, o chinês de 1949 e o chileno de 1970 para citar alguns. Neles, a emancipação da mulher, com grandes conquistas iniciais, terminou debilitada e sendo postergada em detrimento de outras “prioridades”. Os resultados foram desastrosos a médio e longo prazo: ressurgimento de valores patriarcais e sexistas primeiro na vida denominada “privada” e depois na “pública”; enfraquecimento da força social dos movimentos populares e operários que são a base do poder revolucionário; fortalecimento das tendências burocráticas inerentes ao poder patriarcal renascido dentro da esquerda; encorajamento da burguesia, e, junto a outras causas, a derrota última da revolução.
CPM: Ainda que reivindiquemos e sejamos partícipes de lutas por mudanças na legislação que garantam, por exemplo, a legalização do aborto – que, aliás, é penalizado na Venezuela –, também somos conscientes que as mudanças na lei não implicam a superação da dupla exploração da mulher. Em La mujer, August Bebel apresenta algo muito importante: conceder direitos de igualdade à mulher não muda a condição de sujeito subalterno para a mulher trabalhadora. Existem estruturas econômicas e culturais que reproduzem a condição de dominação de gênero. Você poderia nos explicar como funcionam estas estruturas econômicas e culturais?
IGSV: As estruturas econômicas e culturais de exploração de sexo-gênero funcionam em duas áreas diferentes, porém unidas na prática: a da exploração da força de trabalho sexo-econômica da mulher pelo homem, e a da dominação cultural, afetiva, emocional, amorosa, sexual, política, etc., do patriarcado. A união prática entre exploração e dominação produz a opressão capitalista de sexo-gênero. O sistema patriarcal é anterior ao capitalismo, porém este é integrado, submetido a sua lógica, convertendo-se em uma peça chave de sua existência, peça que demonstra especialmente sua eficácia em duas circunstâncias decisivas. Durante as crises, o patriarcado reforça a opressão da mulher em todos os sentidos para aumentar os benefícios capitalistas em todas suas expressões; durante as lutas revolucionárias, o patriarcado tenta convencer as mulheres de que não lutem, que sejam passivas e, sobretudo, que se oponham à revolução.
CPM: Silvia Federici situa uma parte importante da resistência ao desenvolvimento capitalista na mulher trabalhadora e pobre (a campesina, a operária, a desempregada, a trabalhadora sexual). Segundo Federici, durante os últimos 500 anos, ocorreram grandes lutas pela proteção do comum (e o comunal) a partir do bloco social da mulher trabalhadora. Reconhecendo o acúmulo histórico destas lutas que podem se converter em faróis, como devemos orientar a luta hoje em dia?
IGSV: Outras revolucionárias disseram o mesmo ou parecido que Federici, porém com outras ênfases e em outros contextos, e todas elas têm razão. No capitalismo atual existem, ao menos, quatro lutas cruciais nas quais a mulher trabalhadora deve exercer a direção. Estas são: a reprodução como parte da produção; a (re)construção do coletivo, comunal; a luta cultural e ética contra as ideologias patriarco-burguesas; e a atualização do princípio de autodefesa social como contrário à violência patriarco-burguesa.
Fonte original: http://generoconclase.blogspot.com.es/2016/10/inaki-gil-de-san-vicente-el.html?m=1
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)