Lutar pela reforma agrária não é crime organizado
Lutar pela reforma agrária não é crime organizado
Por Patrick Mariano
Do Justificando
O trabalhador rural Luiz Batista Borges é mais um daqueles homens dos quais talvez nunca soubéssemos da existência, pois excluído da sociedade de consumo, logo seria invisibilizado não fosse a sua decisão de levantar-se do chão, como um personagem alentejano de Saramago, para exigir política pública de reforma agrária.
Foi a Constituição da República quem disse para Luiz que o Brasil deveria ser uma sociedade livre, justa e solidária, que a propriedade deveria cumprir sua função social e que a dignidade da pessoa humana deveria estar no centro das decisões políticas. Levantou-se, portanto, para exigir nada mais do que aquilo que lhe prometeram. Nada mais.
E, ao levantar-se juntamente com outros milhares para reivindicar a terra em Santa Helena de Goiás/GO, acabou preso. Acusam-no de fazer parte de uma organização criminosa. É a primeira vez que imputam o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra de tal denominação.
Apesar de uma farta jurisprudência do STJ, STF e Tribunais de Justiça no sentido de que a luta do MST é um exercício de cidadania e que não há, portanto, que se confundir com crime, – ainda mais em um país em que grassa a desigualdade na distribuição da terra e da riqueza – a prisão de Luiz abre um perigoso precedente para as lutas sociais no Brasil.
Embora seja uma novidade a tentativa de enquadrar a luta do MST como organização criminosa, já nas manifestações de junho de 2013 este instrumento repressivo foi utilizado para conter lutas sociais.
A Anistia Internacional elaborou um relatório[1] crítico das instituições do sistema de justiça brasileiro e afirmou que “pessoas que nunca antes haviam se encontrado, mas que foram detidas na mesma manifestação, de modo impróprio, passaram a ser investigadas formalmente com base nessa lei, por supostamente integrarem uma organização criminosa”.
A organização fala em “mau uso das leis”, mas aqui vale o ensinamento de Marcelo Semer quando diz que você pode escolher entrar num estado policial, mas não pode escolher sair dele. O “mau uso” ou o uso seletivo é a própria tônica do direito penal em uma sociedade de classes. De fato, a ampliação do estado policial e a entrada no ordenamento jurídico de leis como a das organizações criminosas e do terrorismo foi uma opção política que forneceu instrumentos repressivos de controle e contenção das lutas sociais.
Outro relatório, o da Comissão Nacional da Verdade, recomendou a revogação de leis que são frutos do estado autoritário, como a Lei de Segurança Nacional. O Brasil não só não o seguiu, como ampliou sua estrutura legislativa repressiva.
O erro político aqui é evidente. O discurso à época que seduziu o Poder Executivo foi o de que esta lei seria apenas para os grandes criminosos como Fernandinho Beira-Mar e não seria aplicada aos pobres. Baseado numa visão torpe de um “republicanismo” enviesado, se permitiu soltar, ao invés de reduzir entulhos autoritários, mais um monstro punitivista.
Para voltar ao trabalhador rural, principal objeto deste artigo, é preciso sempre lembrar a frase de um camponês de El Salvador, referida por José Jesus de La Torre Rangel: “A lei é como a serpente; só pica os descalços”. Apesar de certa ingenuidade em setores da centro-esquerda com relação ao direito penal, está cada vez mais evidente que ele tem alvo certo e inequívoco.
A tentativa de criminalização do Movimento Sem Terra de Goiás com base na lei das organizações criminosas deve ser repudiada e combatida. Assim como sua aplicação a integrantes de movimentos ou ativistas dos centros urbanos.
Parlamentares e juristas, preocupados com o uso da lei de organização criminosa contra os movimentos sociais já articulam uma moção de solidariedade a Luiz Batista e de repúdio à criminalização do protesto.
Em tempos de retomada do neoliberalismo no Brasil, o uso de instrumentos repressivos contra organizações e movimentos será a tônica. A luta social, para esta visão de mundo, é caso de polícia.
Oxalá o Tribunal de Justiça de Goiás não aceite o teratológico enquadramento dos trabalhadores rurais sem terra como organização criminosa. Assim, os trabalhadores rurais poderão seguir sua sina de lutar pela terra e tentar amenizar as desigualdades sociais no sertão onde campeia a injustiça histórica. A mesma injustiça da qual foram acometidos os Mau-Tempo do romance português.
E a reforma agrária que esses trabalhadores tanto sonham e que a tanto tempo os faz caminhar pelos sertões e veredas desse país é uma promessa da Constituição da República de 1988 ainda não cumprida, como ainda não realizadas tantas outras.
Quem sabe Luiz Batista ainda possa realizar o sonho de morrer de bem com a sua própria terra, e plantar a cana, o inhame e a abóbora onde só vento se semeava outrora. Por enquanto, sem liberdade, resta esperar por justiça. E o verbo esperar tem sido a sentença da sua própria vida.
Patrick Mariano é escritor. Junto a Marcelo Semer, Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe e Giane Ambrósio Álvares, assina a coluna Contra Correntes, publicada todo sábado no Justificando.
[1] Anistia Internacional aponta abuso policial em protestos de junho de 2013
http://www.mst.org.br/2016/10/18/lutar-pela-reforma-agraria-nao-e-crime-organizado.html