Karl Marx 200 anos
Ricardo Costa (Rico) – Secretário Nacional de Comunicação do PCB
KARL MARX nasceu em 05 de maio de 1818 em Tréveris (Trier), capital da província alemã do Reno. Seu pai, Hirschel, advogado e conselheiro de Justiça, em 1824 abandonou o judaísmo, porque, nessa época, os cargos públicos ficavam vedados aos judeus da Renânia, e batizou-se com o novo nome de Heinrich. Terminado o curso secundário em Trier, no ano de 1835, Marx matriculou-se na Universidade de Bonn, com a intenção de estudar Direito. O jovem Marx descobriu a vida boêmia, esbanjou o dinheiro do pai e escreveu versos apaixonados à amiga de infância Jenny von Westphalen, moça de rara beleza e alta posição social, de quem ficaria noivo em 1836, casando-se oito anos mais tarde. Casados, sofreriam toda sorte de privações, e a miséria chegou a ponto de não terem como alimentar os filhos. Dos seis que nasceram, apenas três atingiram a idade adulta.
1835-1842: JUVENTUDE E IDEALISMO DE ESQUERDA
Em outubro de 1836, Marx matriculou-se na Universidade de Berlim, conhecida por seu ambiente disciplinador e também por ter sido, nas décadas precedentes, o espaço em que um grande pensador alemão lecionara e se projetara como um dos maiores filósofos de todos os tempos: GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL. Afastando-se cada vez mais do Direito e apaixonando-se pela História e pela Filosofia, Marx entregou-se aos estudos com entusiasmo. Foi atraído pelas ideias de Hegel, cujo pensamento convertera-se numa espécie de ideologia oficial no meio intelectual alemão. O princípio hegeliano segundo o qual o Estado moderno encarnava os ideais da Moral mais objetivos, representando a manifestação da Razão no domínio da vida social, era tomado, pelos intelectuais que apoiavam o regime monárquico, como apoio direto ao Estado prussiano. “Tudo que é real é racional”, escrevera Hegel, e, já que o Estado era real, no sentido de que existia, tinha de ser racional e estaria acima de qualquer censura.
No entanto, havia aqueles que defendiam o caráter subversivo da obra do filósofo: os jovens hegelianos de esquerda – grupo do qual Marx faria parte – e que ressaltavam a segunda parte da citação de Hegel: “Tudo que é racional é real”. Neste sentido, uma monarquia absolutista, respaldada em censores e na polícia secreta, era irracional e, portanto, deveria desaparecer. Do grupo de jovens hegelianos (dentre os quais Bruno Bauer, Arnold Ruge, Moses Hess e Max Stirner), foi sem dúvida LUDWIG FEUERBACH quem, a partir de 1841, com a publicação de A Essência do Cristianismo, aglutinou todo o pensamento da esquerda hegeliana, formulando, de um novo ponto de vista, a mais consistente crítica da filosofia da religião e da dialética hegelianas.
O jovem Marx participou diretamente das discussões e dos trabalhos do grupo de Berlim até 1841, quando voltou a Trier. Abandonando definitivamente a carreira de advogado, pretendia conquistar uma cátedra universitária após doutorar-se pela Universidade de Bonn, onde contava com o apoio de Bruno Bauer para ali mesmo ensinar, mas este acabaria expulso da instituição por suas posições políticas, obrigando Marx a buscar uma universidade menor, como a de Iena, para concluir seus estudos.
Em 1º de janeiro de 1842, era criado em Colônia, na Renânia, o Jornal Gazeta Renana, iniciativa de setores burgueses liberais que faziam oposição ao reacionarismo do Rei Frederico Guilherme IV. Marx, em abril daquele ano, um mês antes de completar 24 anos, ingressaria na atividade jornalística colaborando para o órgão liberal, logo após a repressão absolutista ter impedido que ele fosse aceito no magistério superior, após a obtenção do grau de doutor na Universidade de Iena, no ano anterior. A Alemanha ainda não existia como um estado unificado. A Confederação Germânica, formada por vários reinos independentes entre si, era comandada pela Prússia, sob domínio da aristocracia latifundiária. Participando da atividade jornalística em meio a este contexto de ausência de liberdades democráticas, Marx transitaria da vida universitária para o início de sua militância política.
Foi então que Marx passou a colaborar com artigos para a Gazeta Renana, no qual se ocupou de assuntos como o processo movido pelo Estado contra o roubo de madeira feito pelos camponeses, que continuavam a colher lenha nas florestas, como lhes assegurava o direito consuetudinário, embora agora já vigorasse o regime de propriedade capitalista. A crítica de Marx à atuação do Estado, embora permanecesse no campo do liberalismo jusnaturalista, começava a apontar para a necessidade de transformar a revolução política, que reclamava uma reorganização do Estado, na ideia de uma revolução social, que deveria modificar a própria estrutura da sociedade como um todo.
1843-1844: AMADURECE A IDEIA DE REVOLUÇÃO
A crítica social-democrática desenvolvida por Marx e o socialismo utópico de Moses Hess acabaram provocando o afastamento dos leitores burgueses de A Gazeta Renana, que foi fechada pelo governo. Antes mesmo do seu fechamento, Marx pediu demissão em 18 de março de 1843, ao perceber que seus proprietários capitulavam diante da pressão das autoridades contra a linha crítica que ele impusera ao jornal. A breve experiência jornalística provara para Marx que a reflexão filosófica não poderia ficar desgarrada de uma perspectiva de ação política. Por conta disso, no segundo semestre de 1843, passou a se dedicar à leitura de pensadores políticos, como Rousseau e Montesquieu, e de estudiosos da Revolução Francesa.
A maior parte deste período Marx passou em Kreuznach, onde vivia Jenny, com quem se casou em 19 de junho. Ali produziu a Crítica da filosofia do direito público de Hegel (o Manuscrito de Kreuznach, cujo texto, na íntegra, ficou inédito até 1927), documento, que, sob a influência de Feuerbach, atacava o idealismo hegeliano. Foi considerado pelo próprio Marx, mais tarde, como um marco no caminho para o materialismo histórico, ao criticar a concepção hegeliana de Estado e abordar o tema da alienação política, expressa na separação e oposição entre Estado e sociedade civil, entre o “poder constituído” e o “poder constituinte” (o povo).
Em outubro de 1843, Marx partiria para o exílio na França, onde a esquerda hegeliana pretendia publicar uma revista capaz de promover a aliança da filosofia alemã com o socialismo francês. Ao ter privilegiado, em seus estudos, o enfoque sobre o mundo sensível, a sensibilidade e o coração, Feuerbach entendia ser necessário trazê-los para o nível do intelecto. Essa síntese filosófica logo se traduziu num programa político: o “princípio feminino”, o coração, sede do materialismo francês, deveria aliar-se ao intelecto, “princípio masculino”, sede do idealismo alemão. Daí então a criação da revista, que se chamou Anais Franco-Alemães, estabelecida em Paris. Estabelecida a parceira com Arnold Ruge (hegeliano de esquerda que não superaria o ponto de vista liberal) e assegurado pelo salário a receber da revista, da qual seria o redator chefe, Marx foi para a França, levando consigo Jenny.
Os Anais Franco-Alemães não foram além do primeiro número publicado em fevereiro de 1844, tendo Marx participado com dois textos: A Questão Judaica e Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução. No primeiro artigo, polemizou com Bruno Bauer, para quem a luta dos judeus contra as restrições políticas a eles impostas na Alemanha somente se resolveria com o combate à própria religião (defensor do Estado Laico, Bauer entendia que o ateísmo era a condição para a emancipação política). Marx considerava a proposta insuficiente para a luta dos judeus e criticava Bauer por manter a discussão no campo da religião. A verdadeira emancipação humana se daria quando a conquista da liberdade política viesse acompanhada da liberdade econômica, ou seja, com a conquista do fim da alienação, representada no poder do dinheiro e da propriedade privada.
Uma difusa teoria da alienação servia de base para a crítica ao capitalismo, no momento em que Marx iniciava contatos com o movimento operário organizado, frequentando reuniões parisienses da Liga dos Justos (fundada em 1836), uma associação de artesãos proletarizados, cujo programa dava ênfase à supressão da propriedade privada e ao retorno para o comunismo primitivo. Este contato com o movimento socialista francês muito contribuiu para as novas formulações que aparecem no outro texto de Marx publicado nos Anais.
No segundo artigo, Marx apontava que a viabilização da transformação histórica, como resultado da vinculação da teoria à prática na luta política (não bastam as “armas da crítica”; é necessária a “crítica das armas”), dependeria de um sujeito histórico para quem a conquista da emancipação era uma questão de vida ou morte. Pela primeira vez, nos escritos marxianos, o proletariado era identificado como este sujeito capaz de realizar a tarefa da revolução anticapitalista. Assim disse Marx: “A teoria também se transforma em uma força material quando se apodera das massas”.
Desde a universidade, Marx havia adquirido o hábito de compilar resumos de obras, acompanhados por suas reflexões críticas. Os chamados Manuscritos de Paris foram produzidos a partir de seus apontamentos sobre obras clássicas de Jean-Baptiste Say, Adam Smith, David Ricardo e James Mill, que lhe permitiram desenvolver as primeiras avaliações sobre os conceitos de valor e preço.
1844: A OPÇÃO PELO COMUNISMO
Ao longo do ano de 1844, Marx frequentou os meios operários franceses, entrou em contato com pensadores socialistas como Proudhon e participou dos encontros dos trabalhadores emigrados alemães, tendo inclusive escrito artigos para o jornal Avante! (Vorwarts!, jornal quinzenal publicado em Paris de janeiro a dezembro de 1844). Marx fez claramente uma opção de classe, vinculando-se ao proletariado europeu engajado nas lutas contra a exploração capitalista. É esta relação com a classe trabalhadora que dará sentido à sua vida e à sua formulação teórica. Marx abraçava então o comunismo proletário.
Na Revista Anais Franco-Alemães também foi publicado artigo de FRIEDRICH ENGELS, Esboço de uma Crítica da Economia Política, responsável por provocar uma virada no pensamento de Marx, ao despertar sua atenção para as questões levantadas pela ciência econômica. Os pensadores que fundaram a Economia Política (Adam Smith, John Mill, Jean Baptiste Say, Sismondi, etc), de matriz liberal, não tinham intenção alguma de se contrapor à ideia da propriedade privada, deixando, por isso, de realizar uma crítica radical da sociedade moderna. Mas a abordagem científica das questões econômicas forneceu importantes subsídios para uma crítica da teoria do Estado, aspecto este que foi percebido por Marx, o qual, daí para a frente, faria desta ciência seu principal objeto de estudo.
Assim como Engels, Marx ia rompendo aos poucos com a concepção feuerbachiana do homem como um ser genérico e passava a enxergar o fenômeno da alienação como algo originado da forma como o trabalhador estava submetido à exploração num sistema de produção voltado para atender as necessidades dos proprietários e do mercado. Em março de 1843, Marx já havia escrito, numa carta a Arnold Ruge, que os “aforismos de Feuerbach … se preocupam muito com a natureza e muito pouco com a política”.
Os Manuscritos Econômico-Filosóficos (os Manuscritos de Paris, publicados somente em 1932), nesta nova fase da produção teórica de Marx, indicavam que as influências contraditórias de Feuerbach e Hegel passavam a coexistir com as questões postas a partir do contato estabelecido com a economia política e o movimento socialista francês. O materialismo de Feuerbach e a dialética de Hegel, num processo de síntese original, juntavam, sob nova perspectiva, os princípios fundamentais dos dois filósofos: a passividade sofredora que o primeiro atribuía à matéria e o ativismo redentor que o segundo conferia à consciência. Esses dois princípios, transfigurados, iriam preparar o caminho para o conceito de práxis, na ideia de que o homem é um ser passivo, dependente e limitado, pois inserido num mundo previamente dado, mas, ao mesmo tempo, é ativo, capaz de intervir neste mundo a partir da sua consciência e vontade.
A teoria crítica do jovem hegeliano de esquerda se transformava numa ontologia materialista: Marx começava a enxergar o homem como um ser prático e social, em que a essência humana é histórica, ou seja, não existe uma “natureza humana” permanente e imutável, como queriam os filósofos liberais. O homem constitui a si mesmo centralmente por meio do trabalho, organizando as suas relações com os outros homens e com a natureza de acordo com o nível de desenvolvimento das forças produtivas e dos meios de produção, pelos quais se mantém e se reproduz enquanto homem.
Marx via a sociedade burguesa como uma totalidade concreta, não como um conjunto de partes separadas que se integram conforme as funções exercidas por cada pessoa, mas como um sistema dinâmico e contraditório de relações sociais, produzidas historicamente. Esta é a visão antropológica de Marx, marcada pela ideia de que o homem é o conjunto das relações sociais. A análise da organização econômica (a crítica da economia política) possibilita a análise da estrutura de classes e da funcionalidade do poder (a crítica do Estado) e das formulações jurídico-políticas (a crítica da ideologia).
Nesta obra Marx indicava como o trabalho assalariado, no capitalismo, promove a alienação do trabalhador, alienando-o de si mesmo, dos outros trabalhadores e da natureza. O sujeito que produz a riqueza não se realiza como ser humano a partir desta atividade, pois o trabalho é um fardo, um suplício, uma opressão, e a riqueza produzida fica concentrada nas mãos dos patrões. Os bens produzidos pelo trabalhador não pertencem ao trabalhador, que não se reconhece em todo o processo, tampouco naquilo que é produzido. Por tudo isso, a supressão da propriedade privada, com o comunismo, será o “momento da emancipação e da recuperação humanas”.
1845-1847: A RUPTURA COM A “IDEOLOGIA ALEMÔ
Marx e Engels iniciaram um trabalho comum. Produziram juntos, inicialmente, o texto A Sagrada Família, uma polêmica feroz com Bruno Bauer e seus irmãos, Edgard e Egbert, que passaram a advogar uma política liberal elitista, enquanto Marx e Engels defendiam que a teoria só teria sentido se estivesse a serviço dos interesses proletários. O livro ainda não havia sido publicado quando Marx foi expulso da França, em fevereiro de 1845, por pressões do governo prussiano sobre o ministro do Interior Guizot, por causa dos artigos publicados na revista Avante!, em especial o que fez a defesa da greve dos tecelões da Silésia.
Marx e Engels partiram para Bruxelas, onde redigiram A Ideologia Alemã e as Teses sobre Feuerbach, obras que representaram a ruptura definitiva, ao mesmo tempo, com o idealismo hegeliano e o pensamento materialista vulgar. Foi basicamente nestes textos que Marx e Engels elaboraram as linhas mestras de sua concepção teórica da história, da sociedade e da cultura; neles se encontram os fundamentos do que veio a ser chamado de materialismo histórico, uma teoria social ancorada numa ontologia do ser social embasada no trabalho tomado como processo fundante da sociabilidade (José Paulo Netto, “Prólogo” em MARX & ENGELS – Manifesto do Partido Comunista, São Paulo, Cortez, 1998).
Em A Ideologia Alemã, há o acerto de contas teórico e político com os jovens hegelianos, acusados de limitarem seus combates ao reino do pensamento, desconhecendo a real situação dos trabalhadores alemães e adotando ilusões filosóficas como se fossem verdades absolutas. Invertendo as teses clássicas da filosofia ideológica alemã, Marx e Engels afirmavam: “não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida real que determina a consciência”. Somente o estudo da base econômica da sociedade poderia levar ao entendimento dos processos superestruturais: a coisificação dos produtos no capitalismo (que tudo transforma em mercadoria), a exploração do homem pelo homem, a sociedade de classes tem sua origem na propriedade privada e na divisão do trabalho, isto é, nas relações de produção.
A obra foi iniciada em setembro de 1845, logo após uma viagem de estudos que Marx e Engels fizeram à Inglaterra. Em abril de 1846 o texto produzido a quatro mãos foi concluído, mas apenas parte dele foi publicado quando os autores ainda estavam vivos: o capítulo IV do segundo volume saiu impresso na revista Vapor Vestefálico (Westphalics Dampfboot), em agosto e setembro de 1847. Vários editores, à época, se recusaram a promover a edição da obra, e o livro completo somente foi publicado, pelo Instituto Marx-Engels-Lenin de Moscou, no ano de 1932.
Entre o final de 1846 e abril de 1847, Marx redigiu, em francês, uma nova polêmica, desta vez dirigida a JOSEPH PROUDHON, emresposta ao livro Filosofia da Miséria, do socialista francês. Com o título Miséria da Filosofia, a obra de Marx criticava o programa político que centrava a luta contra a sociedade capitalista no controle dos lucros e dos juros, vistos pelo autor comunista como fenômenos superficiais da produção burguesa, que jamais poderiam ser combatidos sem que se atacassem os próprios mecanismos de exploração desenvolvidos pelo capital.
Nesta obra, Marx produzia sua primeira análise sistemática do modo de produção capitalista, por intermédio de uma visão totalizante da origem, do desenvolvimento e das contradições do sistema. O embate teórico com Proudhon tinha também um objetivo político: buscava desmontar as bases filosóficas de correntes socialistas que forte influência exerciam sobre o movimento operário em vários países. Com isso, Marx e Engels aprofundavam suas ligações com a militância socialista, tentando dirigir suas ações para uma prática de fato revolucionária.
Após organizarem “comitês de correspondência comunista”, com o propósito de trocarem informações e criarem vínculos com os revolucionários europeus, Marx e Engels, em agosto de 1847, fundaram, em Bruxelas, a Sociedade Operária Alemã, formada basicamente por operários alemães emigrados, para quem Marx proferiu uma série de palestras, no final do ano, explicando os fundamentos da exploração capitalista. Estas exposições foram, depois, reunidas em texto sob o título Trabalho Assalariado e Capital, publicado em 1849. A ligação decisiva dos dois com o movimento operário se daria através da Liga dos Justos, conforme veremos na próxima seção.
1847-1848: O MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA
A Liga dos Justos foi uma organização formada a partir de uma dissidência da Liga dos Proscritos. Esta havia sido fundada em 1834, em Paris, por Theodore Schuster, Wilhelm Weitling e outros imigrantes alemães, inspirados na obra de Philippe Buonarroti, socialista italiano que atuou na Conjura dos Iguais, liderada por Graccus Babeuf. A Liga dos Justos adotava o lema “todos os homens são irmãos” e tinha como objetivo “o estabelecimento do Reino de Deus na Terra, com base nos ideais de amor ao próximo, igualdade e justiça”. Inspirava-se na sociedade secreta Carbonária e compartilhava as ideias dos socialistas franceses Saint-Simon e Charles Fourier. Buscava estabelecer na Prússia uma “República Social”, marcada pelos princípios da “liberdade”, “igualdade” e “virtude cívica”.
Tratava-se de uma organização de caráter revolucionário conspirativo, da qual participavam ferreiros, carpinteiros, sapateiros e alfaiates. A seção francesa da Liga mantinha relações com uma sociedade dirigida pelo republicano socialista Auguste Blanqui, ao qual se uniram na revolta de 12 de maio de 1839, contrária ao regime de Luís Filipe, o “Rei dos Burgueses”. Depois da revolta, seus membros foram expulsos da França, e a Liga se transferiu para Londres, onde, em 1840, foi criada a “Sociedade Educacional para Trabalhadores Alemães”. Weitling se mudou para a Suíça.
Em Londres, sofrendo forte influência do reformista Robert Owen, empresário defensor das cooperativas, a Liga manteve contato com as trade-unions, o movimento cartista, grupos operários fabris e de exilados políticos provenientes de diferentes países europeus. Entre 1843 e 1846, Londres vivenciava uma efervescência de ideias, que contribuíram para a disputa, no interior da Liga, das concepções que deveriam orientar suas ações. Novos princípios começavam a se afirmar em substituição às práticas conspirativas, para dar lugar a uma concepção de revolução como resultado de um processo que deveria combinar propaganda, ação permanente e organização.
Marx e Engels foram procurados por dirigentes que buscavam um novo caminho para o movimento operário e defendiam a reorganização da Liga, sob bases programáticas diferentes das até então predominantes. Joseph Moll, em nome da “Autoridade Central da Liga dos Justos”, já havia estabelecido contatos, em janeiro de 1847, com a intelectualidade revolucionária espalhada pela Europa, ocasião em que se encontrou com Marx em Bruxelas e Engels em Paris, resultando daí o ingresso de ambos na Liga dos Justos. Foi então convocado um congresso para os meses de maio e junho daquele ano, que deveria contar com a participação de seguidores daquelas ideias em diversos países. No congresso realizado em Londres, Engels presente, foi aprovada a conversão da Liga dos Justos em Liga dos Comunistas.
Um segundo congresso foi convocado, especificamente para tratar da reestruturação da Liga e de suas propostas programáticas. Ampla discussão foi travada entre seus membros até que, novamente em Londres, delegados de vários países europeus reuniram-se, entre 29 de novembro e 08 de dezembro de 1847, e incumbiram Marx e Engels, eleitos para a direção central da Liga, de redigirem o manifesto do programa, o qual ficou pronto em janeiro do ano seguinte. Os primeiros três mil do Manifesto do Partido Comunista, em alemão, foram publicados em Londres, em fevereiro de 1848.
O Manifesto representou, no plano teórico-político, uma marcante viragem histórica: é nele que se apresentava, de maneira inédita, um projeto social organicamente integrado a uma perspectiva de classe, trazendo para a cena política o proletariado, que começava a se organizar de forma autônoma. Até então, frequentemente as demandas dos segmentos vinculados ao trabalho apareciam indistintas dos projetos burgueses, misturadas à aspiração revolucionária da igualdade, da fraternidade e da liberdade, palavras de ordem dos movimentos que atuaram na Revolução Francesa, sob a liderança da burguesia.
No século XIX, o avanço do capitalismo e da luta de classes expunha mais claramente o antagonismo entre capital e trabalho, desnudando os limites do mundo burguês, no qual a liberdade se restringia à livre concorrência no mercado, a igualdade se esgotava na formalidade jurídica, e a fraternidade se resolvia apenas na retórica e no moralismo. No momento em que começava a se dar a ruptura do bloco histórico que havia destruído a ordem feudal, o projeto comunista do Manifesto apresentava-se como aspiração à construção de uma nova sociedade, em que “o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”.
1848-1850: EXPLODE A LUTA DE CLASSES
O ano de 1848 representou um divisor de águas no processo histórico mundial: nas jornadas de lutas que explodem na Europa, com revoltas populares eclodindo em vários países, em resposta às crises econômico-sociais e ao domínio secular das velhas aristocracias, a burguesia mostrava a sua face reacionária, ao optar por soluções conservadoras no momento em que amplos setores do proletariado e do campesinato se levantavam contra a ordem vigente. A onda revolucionária, que mobilizou aspirações de caráter liberal, democrático, nacionalista e socialista em toda a Europa, teve início na França, onde a monarquia chegava ao fim, canalizando a ira da população mais pobre, dos republicanos e dos socialistas.
O rei Leopoldo da Bélgica respondeu à agitação popular em seus domínios dissolvendo todo tipo de associação operária e perseguindo os exilados que haviam fixado residência no país. Expulso da Bélgica, Marx retornou a Paris, mas, com a dissolução da seção local da Liga dos Comunistas, foi para Colônia, onde escreveu, com Engels, as Reivindicações do Partido Comunista na Alemanha, panfleto que, pela primeira vez, buscava apresentar o programa político do proletariado numa revolução democrática. Entre abril e maio, fundou a Nova Gazeta Renana, na qual defendia a aliança do proletariado e dos camponeses com a burguesia, numa soma de esforços visando à liquidação dos restos do Antigo Regime ainda vigentes na Alemanha. O periódico, do qual Marx foi redator-chefe, circulou entre junho de 1848 e maio de 1849.
Na França, o governo burguês de Luís Bonaparte, que assumiu após a queda da monarquia, reprimia de forma violenta as revoltas proletárias de junho em Paris, dando a senha para as ações contrarrevolucionárias das classes dominantes no restante da Europa, as quais esmagariam, nos meses seguintes, a breve “primavera dos povos”. Em maio de 1849, explodiram conflitos e revoluções em diversas cidades alemãs, em algumas das quais Marx buscou atuar, conclamando à unidade para a resistência as forças proletárias e democráticas, mas novamente foi obrigado a procurar abrigo fora da Alemanha.
Pobre como nunca, depois de passar uma vez mais por Paris, a partir de 1849 fixou-se definitivamente em Londres, onde passou a dedicar-se integralmente aos seus estudos. Criou um novo jornal: a Nova Gazeta Renana, Revista Político-Econômica, onde, ao longo do ano de 1850, escreveu uma série de três artigos que fazia o balanço do movimento revolucionário francês. Acrescido de um quarto artigo dele com Engels, escrito em outubro de 1850, os textos seriam publicados bem depois, em 1895, com o título de As Lutas de Classes na França (1848-1850).
Marx e Engels se dedicaram a promover, juntamente com outros revolucionários exilados, a avaliação crítica da derrota do movimento. Entre as razões para a vitória dos setores reacionários estavam a retomada da economia, a fragilidade da classe trabalhadora, que mal contava com alguma estrutura organizacional em determinados países e a retirada do apoio da burguesia às lutas pelas reformas políticas e sociais. Numa postura que encerraria o ciclo “progressista” iniciado com as revoluções burguesas nos séculos precedentes, a burguesia optou por se reaproximar da aristocracia para impedir a eclosão de um movimento popular radical, liderado pelas representações mais organizadas do operariado. Tudo isso possibilitou que as forças políticas conservadoras, instaladas nos principais governos da Europa, retomassem, por meio de violenta repressão às massas mobilizadas, o controle da situação.
Em aliança com cartistas e blanquistas, Marx e Engels esforçaram-se ainda para formar a Sociedade Internacional dos Comunistas Revolucionários, iniciativa que, entretanto, não prosperou. Convencidos então de que a vaga revolucionária de 1848 havia se esgotado e, em meio a fortes divergências que levaram a dissidências e manifestações de sectarismo, decidiram, em novembro de 1852, propor a dissolução da seção londrina da Liga dos Comunistas, o que representou de fato o fim da organização.
Num momento de refluxo das lutas revolucionárias, Marx passou a se dedicar quase que exclusivamente aos seus estudos. Vivia dos artigos que conseguia publicar em alguma revista, tendo colaborado, por oito anos, com dois artigos semanais para o New York Tribune, que não lhe garantia um rendimento regular. O mais importante para a sua sobrevivência era a ajuda financeira de Engels, que se estabeleceu em Manchester, trabalhando na indústria têxtil de propriedade de sua família.
1851-1853: REFLUXO DO MOVIMENTO OPERÁRIO E DEDICAÇÃO AOS ESTUDOS
Num período muito difícil de sua vida, marcado por um forte declínio do movimento operário, após as derrotas nas agitações de 1848, combinado com a situação material miserável da família (que contribuiu para a morte prematura de dois de seus filhos), Marx trabalhou árdua e sistematicamente, concentrando todos os seus esforços no projeto de uma crítica da economia política. Frequentava diariamente a biblioteca pública do Museu de Londres, dedicando cerca de dez horas para fazer anotações e copiar as passagens mais importantes dos livros pesquisados. Com este material, à noite em sua casa, escrevia seus próprios textos. Várias dessas anotações foram depois utilizadas diretamente como notas em O Capital.
Começou, em 1850, a escrever os chamados Cadernos de Londres, um conjunto de mais de 20 cadernos de estudos elaborados até 1853. Neles aprofundou suas pesquisas na área da economia, passando por estudos de história da tecnologia e agronomia, até temas como técnicas militares e armamentos. Nos primeiros sete cadernos (I-VII), escritos entre setembro de 1850 e março de 1851, leu e anotou apontamentos de livros de economistas e historiadores britânicos, com destaque para A riqueza das Nações, de Adam Smith, concentrando-se especialmente na história e nas teorias das crises econômicas. Ao contrário de pensadores socialistas da época, como Proudhon, para quem as crises econômicas poderiam ser evitadas por meio da reforma do sistema monetário, Marx concluiu que as verdadeiras causas da crise deveriam ser buscadas nas contradições da produção capitalista.
Entre abril e novembro de 1851, Marx escreveu mais um conjunto de anotações reunidas no que seria o segundo grupo de cadernos (VIII-XVI), nos quais as citações mais importantes eram aquelas dedicadas a analisar criticamente as ideias de David Ricardo, através do estudo mais aprofundado da renda da terra e do valor. Os cadernos IX e X, escritos de maio a julho de 1851, concentraram-se na pesquisa de economistas que apontaram contradições da teoria de Ricardo. O caderno XI tratou de textos que versavam sobre a condição da classe trabalhadora, os cadernos XII e XIII, sobre química agrária (para o estudo da renda da terra), enquanto o Caderno XIV abordou o debate sobre a teoria da população de Thomas Malthus. Pesquisou ainda os modos pré-capitalistas de produção, o colonialismo, e, entre setembro e novembro de 1851, estendeu o campo de pesquisa à tecnologia e a sua história (caderno XV). Dedicou o caderno XVI a diversas questões de economia política.
Mas o trabalho mais frutífero de Marx no período foi a produção de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, escrito entre dezembro de 1851 e março de 1852. Era um documento típico de análise de conjuntura, no qual, partindo do estudo da estrutura de classes na França, avaliava a correlação de forças políticas em 1848 e o caráter do golpe perpetrado por Bonaparte em dezembro de 1851, quando foi restaurado o poder imperial francês. O texto, publicado em maio de 1852 em Nova Iorque, analisava o bonapartismo como forma de governo utilizada pela burguesia quando esta se encontrava acossada pela crise. Ainda no ano de 1851, Marx desdobrou-se na solidariedade aos revolucionários presos em Colônia, contra os quais haviam sido abertos processos judiciais, que se arrastaram por meses. Sobre o caso, produziu, em dezembro de 1852, o panfleto Revelações sobre o processo dos comunistas em Colônia, denunciando a farsa preparada pelos tribunais reacionários.
Entre abril de 1852 e agosto de 1853, Marx escreveu as anotações para o terceiro e último grupo dos Cadernos de Londres (XVII-XXIV), lidando com várias fases do desenvolvimento histórico das sociedades, mas focando boa parte das pesquisas nas controvérsias sobre a Idade Média. Demonstrou também um particular interesse pela Índia, nação sobre a qual dedicou artigos que foram publicados no New York Tribune. A crise econômica foi um tema constante nos artigos que Marx escreveu para o jornal estadunidense. Neles ele aprofundou a análise sobre o caráter das crises de superprodução, próprias do capitalismo desenvolvido, avaliando que brevemente chegaria “um momento em que a extensão dos mercados não será capaz de atender à extensão das manufaturas britânicas” e que se “acenderá o pavio da mina superlotada do sistema industrial moderno”, causando “a explosão da crise geral que há muito tempo se prepara e que, espalhando-se, será seguida de perto por revoluções políticas no continente” (Revolução na China e na Europa, junho de 1853). Marx não via o processo revolucionário de maneira determinista, mas estava convencido de que a crise seria um pré-requisito indispensável para sua eclosão.
1853-1860: PARA A CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA
Entre outubro e dezembro de 1853, Marx escreveu uma série de artigos (Lorde Palmerston) em que criticava a política exterior do secretário de assuntos exteriores e futuro primeiro-ministro da Grã-Bretanha, publicados no New York Tribune e no jornal dos cartistas ingleses, The People’s Paper. Entre agosto e novembro de 1854, produziu outra série de textos (A Revolução na Espanha), sobre o levante civil e militar ocorrido na Espanha. No final de 1854, retomou os estudos de economia política, mas a saúde debilitada e a desastrosa situação econômica impediam a continuidade dos trabalhos. E a família crescia, com o nascimento de Eleanor, em janeiro de 1855.
O quadro doméstico melhorou ligeiramente em 1856, graças a uma herança recebida após a morte de um tio de Jenny, e Marx voltou a escrever artigos sobre a crise econômica. Esta somente veio a explodir nos primeiros meses de 1857, iniciada nos Estados Unidos a partir do sistema bancário de Nova Iorque, mas, logo em seguida, atingindo os centros do mercado mundial na Europa, na América do Sul e no Oriente, tornando-se a primeira crise financeira internacional da história. Com a eclosão da crise, Marx considerou que sua tarefa mais urgente era analisar os fenômenos econômicos em curso, para fornecer instrumentos teóricos aos revolucionários, imaginando que uma nova onda de revoltas sociais estava para acontecer.
Com este propósito em mente, iniciou e completou, entre 1857 e 1858, a primeira redação de sua “crítica da economia política”. Em apenas alguns meses escreveu mais do que nos anos anteriores. Em dezembro de 1857, dizia, numa carta a Engels: “Estou trabalhando como um louco todas as noites nos meus estudos econômicos para ter pelo menos um esquema geral (Grundrisse), claro, antes do dilúvio”. Entre agosto de 1857 e maio de 1858, ele completou oito cadernos de escritos, os quais, somente publicados postumamente, foram intitulados pelos editores – com base na indicação do próprio Marx – Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie, ou seja, Elementos fundamentais para a crítica da economia política, conhecidos simplesmente como Grundrisse.
Neste manuscrito, com cerca de mil páginas, Marx abordava, pela primeira vez, os temas que, mais tarde, iriam constituir os Livros I e II de O Capital, que tratam dos processos de produção e de circulação do capital. A primeira edição deste manuscrito apareceu em Moscou, em dois volumes, em 1939 e 1940, em seu original alemão. Por causa da Segunda Guerra Mundial, esta primeira edição teve divulgação escassa no Ocidente. Somente em 1953, os Grundrisse foram reeditados na antiga Alemanha Oriental, passando a despertar interesse de estudiosos marxistas e não marxistas.
Marx utilizou seus escritos de vários anos para escrever tais manuscritos, que podem ser divididos em dois tipos: primeiro, aqueles produzidos na biblioteca e que constituem basicamente cadernos de extratos e de citações, fruto da leitura de centenas de livros. O segundo tipo corresponde aos escritos próprios, feitos à noite em sua casa, os quais compuseram os Grundrisse, de onde Marx aproveitou várias passagens para a confecção dos Manuscritos de 1861-1863. Estes, por sua vez, prepararam o advento de O Capital, tendo significado o momento necessário de aprofundamento da análise sobre o capitalismo, pois Marx tinha plena consciência de que precisava criar novas categorias teóricas (um novo aparato conceitual) para se desvencilhar das contradições existentes nas teorias dos pensadores liberais clássicos.
No mesmo período, na qualidade de correspondente do New York Tribune, Marx assumiu e cumpriu o compromisso de enviar dezenas de artigos sobre o aprofundamento da crise na Europa. Além disso, produziu verbetes para The New American Cyclopædia, para tentar melhorar a sua própria condição econômica. Entre outubro de 1857 e fevereiro de 1858, compilou os Cadernos da Crise, desta vez reunindo, em três cadernos, não mais passagens de livros de economistas e historiadores, mas uma grande quantidade de notas retiradas de diversos jornais diários sobre os principais desdobramentos da crise, as tendências nas bolsas de valores, flutuações do mercado e falências de empresas na Europa, nos Estados Unidos e outras partes do mundo.
Como não houve nem sinal do movimento revolucionário que, supostamente, irromperia na sequência da crise e, para Marx, ele ainda não dominava criticamente todo o material reunido, os Grundrisse permaneceram como um conjunto de “esboços” ou como se fosse um mero rascunho. Apenas uma parte deste manuscrito, que tratava da mercadoria e do dinheiro, foi publicada, em 1859, sob o título Contribuição à crítica da economia política.
OS MANUSCRITOS DE 1861-1863
Entre 1861 e 1863, Marx redigiu uma nova versão da sua “Economia”, que permaneceu inédita até os anos 80 do século XX. Uma terceira versão foi elaborada entre 1863 e 1865, formando a base não só do Livro I de O Capital, único publicado em vida de Marx, mas também do Livro III e das Teorias da mais-valia, publicados, respectivamente, por Engels e por Kautsky.
Situados entre os Grundrisse e O Capital, os Manuscritos de 1861-1863 representaram a fase intelectual mais produtiva em toda a vida de Marx: foram ao todo 23 cadernos correspondendo a 2.384 páginas editadas posteriormente. Nelas Marx desenvolveu categorias e questões tais como a subsunção do trabalho no capital, a metamorfose da base material capitalista, a diferença entre máquina e ferramenta, a análise da maquinaria e do fetichismo, a relação entre ciência e processo de produção, etc. Estes manuscritos foram o laboratório teórico de Marx para a redação de O Capital, porque se tornaram um texto cujo objetivo foi amadurecer a análise sobre o modo de produção capitalista, preparando a redação final da crítica da economia política. Como uma continuação da Contribuição à crítica da economia política, já tratavam, em seu primeiro caderno, da transformação do dinheiro em capital.
A partir da análise da subsunção, Marx desenvolveu os conceitos de subsunção formal e subsunção real. O conceito de subsunção formal designa a relação de dominação e subordinação do trabalho frente ao capital no período pré-industrial, de predomínio do capital mercantil, que comandava a produção artesanal e manufatureira. O trabalhador estava subsumido ao capital na medida em que não possuía mais os meios de produção e era obrigado a se tornar um trabalhador assalariado. Porém, a subsunção era apenas formal, pois, sem ainda a introdução de máquinas, o trabalhador era capaz de exercer um grande controle sobre o ritmo e o modo de produzir, detendo o monopólio do conhecimento (o saber-fazer) do processo de trabalho. Com isso, o aumento da exploração do trabalho, em geral, se dava pelo aumento da jornada de trabalho (mais valia absoluta).
Nos modos de produção pré-capitalistas, o excedente da produção era obtido diretamente pela violência (trabalho forçado direto, trabalho compulsório), enquanto que, com a emergência do capital, o trabalho continua compulsório para a maioria da população, mas passa a ser mediado (e velado) pela troca de mercadorias. A manufatura foi nitidamente um período de transição, momento em que se dá a generalização da lei do valor para todos os produtos do trabalho humano, inclusive a força de trabalho, também transformada em mercadoria.
O conceito de subsunção real designa a relação de dominação e subordinação do trabalho perante o capital industrial, quando o trabalhador sofre um processo de expropriação do seu saber-fazer, perdendo o domínio completo sobre o ritmo da produção e, principalmente, sobre o modo de produzir, que passa a ser ditado pela maquinaria (ideias que já estavam presentes nos Grundrisse). O capital separa braços e mentes, tornando o conhecimento aplicado no processo de trabalho como algo externo aos próprios produtores diretos. Foi preciso, então, criar um segmento de trabalhadores técnico-científicos, separado da classe trabalhadora tradicional, vinculado a um trabalho unicamente intelectual, sem nenhuma relação direta com algum trabalho manual específico, responsável unicamente pela gestão e organização do trabalho.
Com o uso da maquinaria, o trabalho torna-se objetivamente abstrato, ou, dito de outro modo, o trabalho abstrato se realiza na prática no interior mesmo do processo de trabalho e não apenas no momento da circulação. A produção de mercadorias torna efetivamente social o trabalho individual que as produziu, ao passo que as mercadorias só têm um caráter objetivo como valores na medida em que são todas expressões de uma substância social idêntica, o trabalho humano. O trabalho abstrato, portanto, é a propriedade adquirida pelo trabalho humano quando dirigido para a produção de mercadorias, num processo de valorização do capital. Este é o momento em que se dá a materialização do fetichismo da mercadoria no processo de produção, quando o trabalho morto passa a dominar o trabalho vivo. Sendo assim, o aumento da exploração se impõe pela utilização da tecnologia e por novas formas de gerenciamento da produção (mais valia relativa).
1864-1871: A INTERNACIONAL E A RETOMADA DAS LUTAS
No mesmo período em que se debruçava sobre os Manuscritos de 1861-1863, Marx foi obrigado também a se ocupar da defesa de Louis Blanqui, revolucionário francês que estava sendo perseguido pelo governo de Luís Bonaparte. Além disso, dedicou-se a analisar as novas conjunturas sociais e políticas na Rússia, em que foi decretada a abolição da servidão em 1861, e nos Estados Unidos, onde a guerra civil daria a vitória aos nortistas, promovendo o fim da escravidão e a rápida expansão do capitalismo.
Tão logo as lutas operárias ressurgiram no cenário político e social europeu, Marx dedicou um tempo precioso à militância política e social e aos trabalhos de organização do movimento operário. Em 28 de setembro de 1864, realizou-se, em Londres, uma grande assembleia de trabalhadores, com a presença de representantes do operariado inglês, francês e de imigrantes. Neste encontro, Marx apresentou o projeto de uma Associação Internacional dos Trabalhadores, com o objetivo de substituir as seitas socialistas ou semi-socialistas por uma organização efetiva da classe operária que a levasse à luta contra o capital. Foi eleito para a instância decisória mais alta da organização, o Conselho Geral, tendo sido ainda indicado a redigir, com outros companheiros, os estatutos e o programa da Associação. A tarefa começou a ser cumprida numa reunião realizada em 18 de outubro, mas, diante das dificuldades em finalizar os documentos, Marx se propôs a concluí-los, os quais foram enfim aprovados, em 1º de novembro, pelo Conselho Geral, juntamente com uma Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, também escrita por ele.
Afastado da militância desde o encerramento da Liga dos Comunistas, Marx voltou com todo entusiasmo à ação política, sobretudo por estar em jogo a possibilidade de colocar o movimento operário sob a perspectiva real do internacionalismo proletário, apesar da composição extremamente heterogênea da Associação Internacional. Em razão disso, sua dedicação era redobrada, no sentido de dar à organização uma unidade programática classista.
Em junho de 1865, Marx polemizou com John Weston no interior do Conselho Geral, para refutar o argumento difundido pelos delegados influenciados pelas ideias de Robert Owen, segundo os quais um aumento geral de salários seria prejudicial à indústria, ao comércio e aos próprios trabalhadores. A intervenção de Marx, reunida no texto Salário, Preço e Lucro (somente publicado em 1898 por sua filha Eleanor), representou uma verdadeira demarcação de campo entre os revolucionários e os reformistas, em cujas fileiras se incluíam os seguidores de Proudhon, apesar de toda sua verborragia radical. Neste manuscrito em que eram expostos elementos fundamentais para a construção da teoria do mais valor, há o chamamento do operariado à luta e à superação revolucionária da condição de subjugação imposta pelo capital por meio do trabalho assalariado.
A expansão da Internacional na segunda metade da década de 1860, em que pese a forte influência das ideias de Marx, não impediu que viessem à tona conflitos de concepções políticas entre seus destacados dirigentes, dentre os quais os mais importantes foram aqueles que opuseram Marx, Engels e seus seguidores aos anarquistas, liderados por Mikhail Bakunin. As disputas com os anarquistas, que se tornaram cada vez mais acirradas, terminaram por levar à sua expulsão pelos delegados da Internacional, reunidos no congresso em Haia, em 1872.
Antes disso, durante a guerra franco-prussiana de 1870-1871, conflito que contribuiu sobremaneira para a unificação da Alemanha, chegava ao fim o Império de Napoleão III e tinha início uma nova fase da República francesa, com a ascensão do político reacionário Adolphe Thiers, ex-primeiro ministro de Luís Bonaparte. Mas o proletariado francês recusou-se a depor as armas após a assinatura de uma paz humilhante do governo provisório com a Prússia, proclamando a Comuna de Paris, primeiro exemplo histórico de um governo revolucionário dirigido pelos trabalhadores.
Além de mobilizar a Internacional em defesa dos comunardos, Marx analisou profundamente aquela experiência meteórica de poder popular. Entre julho de 1870 e maio de 1871, encaminhou para o Conselho Geral da Internacional suas avaliações sobre o acontecimento, que renderam o trabalho intitulado A Guerra Civil na França. A derrota do movimento, esmagado cruelmente pelas forças da repressão burguesas, serviu para que Marx refletisse sobre a necessidade de formação de uma organização partidária própria da classe trabalhadora capaz de instaurar a ditadura do proletariado, enfrentando radicalmente a força da burguesia e abrindo caminho para a supressão das classes.
A REDAÇÃO DE O CAPITAL
Entre janeiro de 1866 e abril de 1867, atormentado por problemas de saúde, Marx mergulhou no trabalho insano de transformar suas pesquisas e apontamentos em uma exposição que pudesse ser materializada na forma de livro. O texto ficou pronto e foi publicado, numa primeira edição de mil exemplares, em Hamburgo, em meados de setembro de 1867, com o título O Capital. Crítica da Economia Política. Somente este Livro I, voltado a analisar o processo de produção do capital, pinçado de um conjunto muito maior de manuscritos, foi pensado por ele para ser publicado.
Marx ainda promoveu alterações no texto para a segunda edição do livro e mais mudanças desejava fazer, conforme indicou Engels no prefácio à terceira edição, de 07 de novembro de 1883, mas a saúde ruim e a ânsia de concluir o volume II não o permitiram. A versão definitiva do Livro I saiu na quarta edição, em 1890, com revisão feita por Engels com base em outras anotações registradas pelo amigo. Partindo da análise sobre a mercadoria, Marx tratou basicamente da relação determinante do modo de produção capitalista: a exploração do trabalho assalariado pelo capital. Dentre outras conceituações definitivas a respeito do capitalismo, Marx trouxe à luz a lei geral da acumulação do capital, a transformação do dinheiro em capital, a distinção entre capital constante e capital variável.
Compreendendo o valor de qualquer produto final como determinado pelo tempo socialmente necessário gasto em sua produção, Marx também determinou a peculiaridade da mercadoria força de trabalho, que igualmente tem seu valor determinado pelo tempo socialmente necessário para a sua reprodução. Daí então que pôs a nu a essência do sistema, ao definir que o capital não é uma coisa, mas uma relação social de exploração. Vendendo os produtos, o capitalista recebe, além da quantia necessária a repor o que investiu anteriormente, um mais valor, um excedente que provém do resultado do trabalho concreto realizado pelo trabalhador. O capital, portanto, detém a propriedade que garante ao capitalista explorar trabalho alheio.
Trata-se, na verdade, de reduzir o tempo de trabalho de que necessita o trabalhador para reprodução de sua capacidade de trabalho, ou seja, para a reprodução do seu salário. O capitalista, ao introduzir a maquinaria ou novas formas de organização da produção, tem como finalidade a diminuição da quantidade de trabalho necessário para a produção de mercadorias, principalmente da mercadoria mais importante do capitalismo: a força de trabalho. O desenvolvimento das forças produtivas, nesses moldes, além de provocar a desvalorização da força de trabalho, embute a aplicação de novas formas de dominação dos trabalhadores, na intenção de capturar a subjetividade operária, com vistas a garantir o processo hegemônico do capital.
O Livro II, sobre o processo de circulação do capital, reunindo textos escritos entre os anos de 1868 e 1881, somente veio a ser publicado dois anos após a morte de Marx, em 1885, editado por Engels. Nesta obra aparecem as análises sobre a movimentação do capital, as suas metamorfoses e ciclos, a circulação monetária, assim como as distinções entre o uso do dinheiro e do capital. A reprodução e a acumulação do capital são estudadas do ponto de vista da circulação, ou seja, de como o capital se comporta e se reproduz no mercado.
O Livro III, dedicado ao processo global da produção capitalista, resultante de notas redigidas entre 1864 e 1865, foi publicado em 1894, após trabalho árduo de Engels para juntar e dar encadeamento lógico aos materiais dispersos deixados por Marx. Nele a análise do modo de produção capitalista aparece como unidade indissolúvel de produção e circulação, acrescida do estudo das formas concretas do capital, tais como o capital industrial, o capital comercial, o capital portador de juros, além da abordagem sobre a renda fundiária. O Livro IV, contendo as teorias da mais valia, uma história crítica do pensamento econômico e a questão do trabalho produtivo e improdutivo, foi editado, precariamente, por Kautsky, entre 1905 e 1910, somente recebendo um tratamento mais adequado em 1950.
A obra máxima de Marx unifica abordagens múltiplas no campo das ciências humanas, ao reunir elementos da economia política, da sociologia, da história, da geografia, da demografia, da filosofia e da antropologia. Partindo da crítica da economia política, isto é, do estudo exaustivo do funcionamento do modo de produção capitalista, não se reduz a uma análise economicista da vida em sociedade, como querem seus detratores, mas, ao contrário, possibilita a compreensão, em sua totalidade, da dinâmica da sociedade burguesa, o conhecimento das classes sociais, suas relações sociais, culturais e políticas. Temos, portanto, em O Capital, o fundamento da teoria social de Marx.
1871-1883: O CREPÚSCULO DO REVOLUCIONÁRIO
Após o massacre da Comuna de Paris, Marx voltou sua atenção às transformações verificadas no âmbito do capitalismo, que vivenciava a passagem para o capitalismo monopolista e o imperialismo, com a irrupção da chamada segunda revolução industrial, na qual tinha destaque o desenvolvimento do setor de bens de produção, da siderurgia e da energia. Neste contexto, entravam em cena, como novas potências econômicas a disputar a primazia da Inglaterra nos mercados mundiais, a Alemanha unificada e fortemente industrializada, assim como os Estados Unidos, após a Guerra Civil.
Marx interessou-se também pela situação na Rússia, acreditando que estava em curso um processo de decomposição da sociedade, desencadeado após a emancipação dos servos. Para ele, uma revolução social era iminente, tendo escrito, em 1877, a Friedrich Sorge, revolucionário alemão que migrou para os Estados Unidos: “Dessa vez a revolução está começando no Oriente”.
Desde meados dos anos 1860, Marx e a família moravam no bairro de Haverstock Hill, em Londres, onde ele passaria os últimos anos de sua vida. Suas filhas, Laura e Jenny, casaram-se com socialistas que lutaram na Comuna de Paris (Paul Lafargue e Charles Longuet, respectivamente). Eleanor, a terceira filha, por sua vez, namorou um comunardo, mas não se casou com ele. Com a saúde cada vez mais debilitada, Marx reduziu sua atividade política, mas mantinha-se preocupado com o desenvolvimento das lutas proletárias.
Na conjuntura de expansão das relações capitalistas em todo o mundo e do surgimento de novas formas de organização social, dedicou especial atenção à constituição dos partidos operários de massa, a exemplo dos embriões surgidos na Alemanha (Associação Geral dos Operários Alemães) e na França (Partido Operário Francês). No caso do primeiro, havia forte influência de Ferdinand Lassalle, intelectual socialista de formação hegeliana, de quem Marx discordou diversas vezes, por causa de suas posições extremamente moderadas e oportunistas, a exemplo da proposta de aliança com Bismarck para a unificação da Alemanha. Lassalle morreu em 1864, mas deixou seguidores, os quais se uniram a partidários de Marx na Alemanha (Liebknetch, Auguste Bebel e Wilhelm Brake), em congresso realizado em 1875, na cidade de Gotha, do qual resultou a fundação do Partido Social Democrata Alemão.
Marx contestou aquela união, caracterizando-a como uma tática apressada e conciliadora, ao tentar juntar, num mesmo partido, concepções políticas contrastantes. Redigiu, então, as Glosas Marginais ao Programa do Partido Operário Alemão, criticando seus dirigentes e as propostas aprovadas por eles, como a criação de cooperativas e a luta por uma educação democrática e popular sob o Estado burguês alemão, governado pelo reacionário Bismarck. Para além da crítica às resoluções do congresso, havia no documento as ideias de Marx sobre a transição revolucionária para o socialismo e a distinção entre a fase socialista e o comunismo: na primeira, o Estado ainda subsiste, e a divisão do trabalho não foi superada, ao passo que, na sociedade comunista, o Estado e as classes desaparecem, e a comunidade humana põe em prática a máxima “de cada um de acordo com suas capacidades; a cada um conforme suas necessidades”. Em 1891, Engels publicou o material sob o título Crítica ao Programa de Gotha, o último texto de relevo produzido por Marx antes de morrer.
Marx continuou trabalhando até o falecimento, em 02 de dezembro de 1881, de sua companheira de toda a vida, Jenny, a quem ele confiou diversos de seus manuscritos, pedindo sua opinião antes de publicá-los. A morte da mulher o deixou muito abalado, como se constatou na carta escrita a Engels no ano seguinte: “meu espírito vive atualmente em grande parte absorvido pela recordação de minha mulher, que foi a melhor parte da minha vida”. Em janeiro de 1883 morria a filha Jenny, um novo golpe difícil de ser absorvido. Dois meses depois, no meio da tarde de 14 de março, Karl Marx subiu ao seu quarto para deitar e não mais acordou.
Diante do túmulo do grande amigo, no dia 17, Engels proferiu emocionado discurso, lembrando que Marx foi, acima de tudo, um revolucionário, por ter se dedicado, como ninguém, às lutas pela derrubada da sociedade capitalista e das instituições burguesas e ao atuar em favor da emancipação do proletariado, a quem buscou conscientizar acerca das condições de exploração e das suas necessidades. A luta era razão de ser de Marx. Toda a sua gigantesca e vital produção teórica mantém-se profundamente atual nos dias de hoje porque, além de retratar com incrível precisão os fundamentos da sociedade capitalista, foi construída com o objetivo maior de servir ao projeto revolucionário da classe trabalhadora. E este é, com certeza, o futuro da humanidade.
# O texto acima foi publicado no Livro Agenda de 2018 da Fundação Dinarco Reis/PCB, “KARL MARX 200 ANOS”, dividido em capítulos para separação dos meses.