“Esse não é seu lugar” – sociologia do intelectual negro

imagempor Jones Manoel*

É uma tendência, com muito apelo midiático, tratar da dimensão de inferiorização simbólica, estética e cultural do(a) negro(a) e da cultura afro e afro-brasileira quando o assunto é racismo. Muitas vezes, quiçá na maioria, o complexo de dominação e exploração político-econômica-ideológica compreendido como racismo é reduzido a esse determinante do fenômeno, como se o combate à cultura racista, a partir do “empoderamento do negro”, fosse suficiente ou o central no enfrentamento ao racismo.  Na realidade, essa compreensão culturalista do racismo e do seu enfrentamento, secundarizando ou ignorando as relações de produção e estruturas de poder, é um dos grandes problemas e fragilidades do combate antirracista na atualidade: reduz o potencial revolucionário da luta e tende a torná-la mais fácil de ser assimilada pela ordem dominante.

De toda forma, a compreensão dos limites do culturalismo (enquanto compreensão teórica e tática de ação) não deve fazer ninguém menosprezar o papel que cumpre a ideologia na reprodução do complexo de dominação e exploração chamado de racismo. Se olharmos de um ponto de vista formal e sem concretude histórica, podemos argumentar que todo sistema de dominação seja de casta, classe, raça, gênero, nacionalidade ou qualquer outra categoria tem como pressuposto criar uma cultura onde o dominante é apresentado como superior, bonito, inteligente, merecedor de sua posição social e o único capacitado para exercer o seu lugar social, e o dominado a antítese de tudo isso.

Quando abordamos, especificamente, o racismo no Brasil percebemos que esses elementos de inferiorização simbólica e cultural do negro e qualquer coisa associado a ele se faz presente com uma força incrível. No país do mito da democracia racial é bastante difícil perceber o nível do apartheid étnico-racial-classista que separa brancos e negros no Brasil em todos os espaços e ambientes da sociedade burguesa.

Dito isso, o objetivo deste pequeno escrito é fazer apontamentos sociológicos sobre a existência do intelectual negro em espaços socialmente construídos para brancos das camadas médias e classe dominante. Digo apontamentos, pois não me proponho a fazer uma reflexão mais sistemática buscando incorporar referências bibliográficas, dados, pesquisas existentes etc. Essas linhas têm como fundamento, basicamente, a minha experiência como negro, militante com perfil de propagandista (propagandista, no sentido leninista, significa aquele militante que atua como um vetor de difusão do marxismo e do programa do partido no seio das massas exploradas e dos intelectuais, buscando, além de formas eficazes de conquistar os explorados para a revolução, confrontar teoricamente os ideólogos da classe dominante) e aspirante a intelectual, refletindo as experiências cotidianas a partir do arsenal teórico que, acredito, está sob meu domínio.

Primeiro, a partir da segunda metade do século XIX, setores da classe dominante brasileira compreenderam que era questão de tempo o fim da escravidão – tendência em curso no mundo dada a pressão da Inglaterra capitalista e as lutas de resistência dos negros e negras escravizados – e prepararam a criação de um proletariado branco através da imigração. O processo de transição ao capitalismo iniciado com a independência nacional, abolição e primeira constituição republicana e consolidado com a Revolução de 1930, relegou à população negra o papel de exército industrial de reserva ou população sobrante. Grande parte do povo negro teve que sobreviver através de estratégias alternativas de sobrevivência fora do mercado formal ou, quando no mercado de trabalho capitalista, assumindo as funções mais degradantes, socialmente inferiorizadas e precárias.

O caso típico desse processo é a função primordial da mulher negra no Brasil em desenvolvimento capitalista nas primeiras décadas do século XX. Essa mulher negra tinha como uma das principais funções empregatícias o papel de empregada doméstica, passadeira, cozinheira e babá, fazendo, basicamente, as mesmas funções que as escravas domésticas na época da escravidão, conservando, inclusive, várias relações da escravidão como os castigos físicos, abusos sexuais onipresentes pelo patrão e a arquitetura do “quartinho da empregada”. Nesse sentido, no desenvolvimento capitalista brasileiro, o processo de ampliação da camada média e de uma burocracia estatal e privada exclui, no geral, a população negra, criando um quadro de estagnação da mobilidade social: a população negra, no Brasil, pertence quase que exclusivamente aos setores proletários, não existindo uma classe média ou burguesia negra significativa em nosso país.

Essa dinâmica do capitalismo dependente criou um processo cultural de subjetivação dos sujeitos no qual o negro nunca é visto no papel de advogado, médico, juiz, engenheiro, professor universitário, burocrata de remuneração mais elevada etc. O negro sempre foi o pedreiro, lixeiro, porteiro, mendigo, lavador de carros, segurança e por aí vai. Essa estratificação étnico-racial na divisão social do trabalho reproduz uma série de espaços sociais com seus respectivos imaginários, onde nunca o negro será encaixado. Um desses espaços é, sem dúvida, a universidade e um conjunto de relações associadas ao papel de intelectual.

A imagem típica do intelectual não é de um negro. Quando imaginamos alguém “inteligente”, um grande professor, um pensador de renome, o estereótipo básico é de um homem branco (de classe média ou oriundo da burguesia), “bem vestido”, acima dos 40 anos e com ares aristocráticos. Não deixa de ser expressivo que, segundo a versão mais aceita na história do pensamento social brasileiro, os pais fundadores da nossa moderna compreensão do Brasil são Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. Guardadas todas as diferenças políticas e ideológicas entre eles, os três têm em comum o fato de serem homens brancos de origens aristocráticas.

Nesse sentido, o conjunto de relações sociais em que um intelectual está envolvido pressupõe, como parte indissociável, uma subjetividade e um imaginário branco dos sujeitos participantes desses espaços. O branco é o professor, o pesquisador e o membro da burocracia universitária de maior nível – diretores, reitores, pró-reitores etc. – e o negro pertence ao corpo de trabalhadores da manutenção, limpeza, segurança e da baixa burocracia. Dois exemplos expressivos para tratar dessa gestão.

Até meus 17 anos de idade, meu “sonho profissional” era em primeiro lugar arrumar um emprego com “carteira assinada” (comecei a trabalhar com 14 anos vendendo jornal no sinal) e conseguir ser porteiro em um prédio, dado eu pensar que era um trabalho tranquilo porque “não carregava peso” e recebia “bem”. Nunca me passou pela cabeça fazer um curso superior; não fazia ideia de quantas faculdades públicas existiam em Pernambuco, o que era o vestibular (sabia apenas que “era uma prova difícil”), como entrar na universidade, as opções de curso ou o sentido social de ter curso superior.

A partir de uma reviravolta que não vale a pena detalhar (a história é longa) fiz o vestibular com 20 anos de idade e consegui passar. Eu e meu amigo (Júlio) fomos os primeiros da Favela da Borborema (lugar onde eu nasci e cresci) a entrar na UFPE; a Borborema tem cerca de 8 mil habitantes. Pois bem, depois dessa aprovação eu e Júlio abrimos um pré-vestibular na comunidade chamado “Novo Caminho”, para ajudar os jovens da nossa favela a também entrar na universidade pública. Quando passamos de porta em porta convidando eles para participar, percebemos um fato interessante: na maior parte do tempo não falamos do projeto, mas explicávamos o que era a universidade, como se entrava, que não era pago, que não era impossível passar no vestibular, que fazer faculdade era importante etc. (o projeto foi mantido por dois anos e vários jovens da nossa comunidade conseguiram também chegar ao ensino superior).

O segundo exemplo é que, quando cheguei na universidade, percebi logo no primeiro ano duas coisas importantes: primeiro, a imensa maioria do corpo docente era branco (só tive um professor negro em toda minha graduação e nenhum no meu mestrado), e os meus problemas cotidianos estavam excluídos do conjunto de reflexões e estudos da sala de aula – violência policial, extermínio da juventude negra, ausência de saneamento básico, precariedade dos serviços públicos, gravidez na adolescência, a cultura das periferias, abandono paterno etc. etc. etc.

Na situação de estudante universitário e posteriormente militante de uma organização política (a União da Juventude Comunista), comecei a exercitar uma habilidade que desde cedo se manifestou, que era a capacidade de me comunicar facilmente: gostar de falar em público e aparentemente falar bem. Em 2013 tive a oportunidade de apresentar minha primeira conferência em um seminário sobre a Escola de Frankfurt: meu tema foi a teoria do fascismo na obra de Theodor W. Adorno. Depois da minha apresentação, várias pessoas vieram me cumprimentar e parabenizar pela mesa e uma das palavras que mais ouvi foi “surpresa”.

A maioria das pessoas começava os elogios dizendo: “nossa, fiquei surpreso com a…” e se seguia. Na época pensei que isso era derivado da minha juventude (23 anos) e talvez do meu perfil físico e de vestir (bem longe do estereótipo de intelectual). De 2013 em diante, seja em espaços acadêmicos ou na militância política, tornou-se algo comum fazer mesas, conferências, espaços de formação política, falas em espaços públicos. Quando existia uma concordância entre o ouvinte e as ideias que estava expondo, quase sempre o elogio vinha acompanhando de alguma palavra que denotava surpresa sobre o quão bom foi a palestra ou a formação política; quando, na discordância, a maioria das críticas e questionamentos incidia não nos meus argumentos, dados e fundamentação teórica, mas na capacidade em si de eu saber do tema que estava abordando. Em suma, um questionamento acerca da minha capacidade de ser um vetor de propagação do conhecimento.

Demorou um certo tempo até perceber que isso não era fruto da minha idade ou aparência física. A razão é bem mais complexa que isso. Como dito acima, a configuração do apartheid étnico-racial-classista no Brasil forjou um ambiente universitário e de maneira mais lata um “campo intelectual” totalmente branco. A dinâmica desses espaços subjetiva e cria imaginários interpelando todos os sujeitos nele presentes com um certo tipo de normalidade. A normalidade é não haver intelectuais negros nesses espaços; a presença de negros e negras representa uma quebra do normal e do padrão instituído; como consequência, enquanto reação principalmente do campo do inconsciente, o sujeito confrontado com esse desvio padrão assume como média essas duas posturas binárias descritas acima: demonstra surpresa pela capacidade nunca esperada do intelectual negro ou não consegue aceitar essa figura social e centra seu questionamento na sua capacidade de ser intelectual.

O intelectual negro em ambiente universitário e espaços intelectualizados tende a sentir um profundo sentimento de isolamento e solidão porque não se reconhece nos seus pares, temas de pesquisa e simbologia dos ambientes. Mesmo quando o sujeito não é militante e não tem qualquer nível de debate crítico, esse sentimento se manifesta como expressão do inconsciente, mesmo que não seja percebido enquanto tal.  É como se a dinâmica em funcionamento gritasse todos os dias que “esse não é o seu lugar” – pequeno desafio: converse com estudantes negros universitários e pergunte se eles se sentem à vontade na universidade. Aposto que, entre dez, sete vão dizer que não têm sensação de pertencimento à universidade.

Esse conjunto de relações estruturantes da vida do intelectual negro – ou aspirante a intelectual – tende a forjar duas reações padrões com desdobramentos diferentes. Primeiro, é o processo de expulsão gradual da universidade e desistência de seguir qualquer carreira como intelectual. Quando terminam o curso, tendem a se afastar da universidade e seus circuitos correlatos e seguir suas vidas profissionais, muitas vezes não exercendo a profissão para o qual se formaram (fenômeno, evidentemente, composto de uma série de outras relações sociais). Em pessoas com militância política esse sentimento normalmente é expresso como um puro e simples repúdio ao caráter elitista, aristocrático e autocentrado da universidade e dos espaços intelectualizados, sendo pouco ponderada a dose de sofrimento psíquico que estar nesse espaço causava ao sujeito.

A segunda postura assume a forma de resistência “ativa” – ainda que às vezes não racionalizada – decidindo continuar no espaço e seguir a carreira como intelectual. Essa ação comporta dois padrões básicos de comportamento: a) o intelectual negro busca assumir uma postura passiva, recatada, discreta. Evita posições de destaque, grandes disputas e assumir protagonismo nos espaços nos quais está inserido. Apresenta um tipo de “humildade” que o faz nunca exaltar seus méritos e ações como se evitasse reduzir o grau de hostilidade dos espaços em que está inserido; b) assumir uma postura agressiva de extrema autoconfiança e busca de protagonismo em todas as ações. O intelectual negro desse tipo parece sempre estar afrontando tudo e a todos, debochando do que está estabelecido e exibindo sempre uma postura altiva; via de regra, essas características se misturam com “arrogância” e onipresente ironia – perfil no qual eu me incluo.

Esses dois padrões básicos de comportamento, embora na aparência díspares, mantêm em comum uma sensação de insegurança constante. O intelectual negro nesse mundo branco, em seu não-lugar, se sente o tempo todo testado, pressionado, posto em xeque. A postura de recato ou a da afronta são formas diferentes de tentar manejar essa insegurança em ambiente sempre hostil. As consequências dessas relações, na produção do intelectual, podem variar entre produzir uma caricatura de si mesmo buscando criticar tudo e a todos sem ter assumido plenamente a capacidade intelectual para isso ou conformar-se a um lugar secundário (ou pior) por nunca ousar em sua produção.

O primeiro tipo de reação, a que mais me interessa, é diariamente reforçada ao perceber que os “formadores de opinião” e “especialistas” da mídia (TV, portais de Internet, programas de entrevista, grandes jornais etc.) também são essencialmente brancos e, quando um negro é convidado a qualquer desses espaços, normalmente, é numa perspectiva monotemática: negro fala de racismo. Aliás, nada mais reforçador de todos os estereótipos e imaginários construídos pelo racismo que só termos negros e negras convidados para palestras, conferências e formações em datas como abolição da escravidão, dia da consciência negra ou temas relacionados à questão racial: é uma espécie de “heresia” permitida pela ordem.

Todas as dificuldades próprias de ser um intelectual no Brasil (extrema dependência da universidade que, hoje, é uma ótima instituição para formar acadêmicos, mas muito ruim para formar intelectuais; pobreza do mercado editorial brasileiro, baixa valorização do trabalho intelectual nos partidos, sindicatos e movimentos sociais; domínio de autores europeus e norte-americanos nos debates públicos nacionais, etc.) são ampliadas e potencializadas quando se trata do ser negro. Objetiva e subjetivamente, “esse não é nosso lugar”.

Para concluir essa reflexão, finalizo essas linhas com uma questão importante. A quebra dessa forma de ser da universidade e dos espaços intelectualizados no Brasil não acontece estando desligada de um processo político revolucionário de transformação do país, da educação e da universidade. Políticas públicas como cotas criam, no máximo, um maior tensionamento nas estruturas estabelecidas. Embora esse tensionamento seja importante, ele atua como uma espécie de modernização sem mudança: a universidade e o “campo intelectual” mudam para continuar na mesma.

Essa compreensão, contudo, não deve servir de desculpa para deixar para um longínquo amanhã a construção desde já de novas práticas sociais. Nos partidos, movimentos sociais e sindicatos, por exemplo, percebe-se como é raro termos lideranças políticas e intelectuais negros e negras, abordar a questão racial e o racismo sempre como um tema a parte, quase entificado, promovendo discussão temáticas e nunca como determinante genético e estruturador do capitalismo brasileiro e de todas as expressões da questão social ou valorizar a figura do(a) negro(a) intelectual apenas em datas de festa (exemplo: abolição da escravidão). Um esforço para, nos espaços de militância, mudar desde já essas práticas é necessário, indispensável e deve estar conectado com o projeto de uma revolução socialista que construa a universidade e a educação popular.

O segundo aspecto, este mais ligado ao ambiente da academia e espaços intelectualizados para além da universidade, embora tenha impressões sobre como criar novas práticas para combater as estruturas postas, quero deixar para aprofundar melhor em outro escrito.

Para concluir de verdade, Mano Brown diz na música A vida é desafio que “por você ser preto tem que ser duas vezes melhor”, mas “Como fazer duas vezes melhor, se você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses… por tudo que aconteceu? duas vezes melhor como ?”. Essa reflexão de Brown é totalmente justa para pensar a situação do(a) negro (a)que se aventura a cumprir a função político-social de ser um intelectual. Os traumas, as psicoses, o preconceito, o mundo branco atuam todos os dias para nos derrubar.

Se às vezes parece que estamos sempre armados, na defensiva, é porque nossa vida é uma guerra. E na guerra, morre quem não atira.

*Militante do PCB de Pernambuco

Ilustração: Milton Santos, um dos poucos intelectuais negros de destaque no Brasil