Carta denúncia das mulheres quilombolas
CONAQ – Coordenação de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
Nós, mulheres quilombolas, reunidas na Coordenação de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, na semana denominada “Julho das Pretas da CONAQ”, nesse mês de julho em que se comemora no dia 25 o dia internacional das mulheres negras caribenhas, estamos em defesa dos territórios, na luta e reivindicação por mais visibilidade e direitos e em defesa das vidas de quilombolas que têm sido ceifadas em todo Brasil: “Vidas Quilombolas Importam!”.
As mulheres quilombolas têm tido a tarefa de fazer um intenso diálogo contra a violência nos quilombos do Brasil, pautando as especificidades das mulheres quilombolas e a conjuntura atual que torna essas violências mais frequentes e evidentes. Nossa busca é apontar desafios na luta contra a violência nos quilombos do Brasil e principalmente contra mulheres
quilombolas.
Não é de hoje que os direitos das mulheres quilombolas, que lutam com seu corpo em defesa de seus territórios, são invisibilizados. O momento é crítico de retrocesso dos direitos dos povos quilombolas, ainda mais diante de um cenário de aumento da ideologia conservadora e fascista a nível mundial. Essa crise implica em ainda maior exploração e violação dos direitos
e das vidas das mulheres quilombolas, posto que elas sustentam todas as consequências da retirada e ausência de direitos.
Nos últimos anos temos observado o acirrar de várias violências contra as mulheres quilombolas, tais como: feminicídios, sobrecarga do trabalho de cuidados, retirada de direitos sexuais e reprodutivos, maior informalidade no mundo do trabalho – que tende a piorar com a reforma da Previdência que atinge diretamente as mulheres do Campo. Muitas dessas violências foram evidenciadas na pesquisa “Racismo e Violência contra quilombos no Brasil”, organizada pela Terra de Direitos e CONAQ, e publicada em setembro
do ano de 2018. Infelizmente, as violências sofridas pelas mulheres quilombolas e denunciadas pela pesquisa não diminuíram em 2019, muito pelo contrário, elas seguem se multiplicando.
A luta pelo território possui papel central na reivindicação de direitos pelos povos
quilombolas, pois do território depende o exercício de diversos outros direitos, como educação, meio ambiente, cultura e outros. A liderança das mulheres no quilombo, por sua vez, é central na luta política pelo território, na medida em que sustenta, protege e desenvolve o modo coletivo do quilombo. É no contexto da luta pelo território que a violência se produz. A violência contra as defensoras quilombolas têm impactos individuais e sobre todo o quilombo. Através de ameaças explícitas, calúnia e difamação, além de ameaças a familiares com a pretensão de desestabilizar a liderança, a comunidade e, assim também, a luta por direitos.
No Brasil, vigora uma estratégia institucional velada de prolongar indefinidamente os processos de titularização dos territórios, associada à restrição de recursos orçamentários.
Assim, além de impedir o exercício de diversos outros direitos, diretamente relacionados aos territórios, a morosidade injustificada do processo de titulação perpetua o contexto de violência a que são submetidas os quilombos e suas defensoras. Para que se tenha dimensão desse cenário, segundo cálculos da CONAQ e da Terra de Direitos, no ritmo atual de titulação de territórios quilombolas, serão necessários ao INCRA ao menos 605 anos para titular todos os processos quilombolas instaurados no âmbito da autarquia agrária.
Por isso é urgente e necessário que os quilombos sejam ouvidos, que suas pautas sejam acolhidas e que medidas sejam tomadas para que os processos de titulação e os direitos territoriais dos povos quilombolas sejam respeitados, sob pena de alimentarmos um ciclo
extenso de violências e vulnerabilidades sociais, das quais as mulheres quilombolas são especialmente atingidas.
Frente a isso denunciamos:
1- Os inúmeros casos de violência contra as mulheres quilombolas, em especial as situações de assassinato registradas no ano de 2019.
2- As inúmeras ameaças a lideranças mulheres quilombolas e de movimentos
sociais, perseguição política, e violações de direitos, dentre as quais destacam-se as seguintes situações: a) Sandra Braga, do quilombo de Mesquita, Goiás. Está
ameaçada pelo menos desde o ano de 2017 e encontrou uma cova dentro do terreno da casa em que vive com sua família; b) Eliete Paraguaçu, quilombo Ilha de Maré, Bahia. É ré em dois processos, sendo um referente a uma ação de interdito proibitório que a proíbe de realizar manifestações em defesa do seu território, sob pena de pagar uma multa de R$100.000,00 e, outro, que injustamente a acusa de cárcere privado. Eliete também sofre intimidações corriqueiras. c) Dona Bernadete,
quilombo Pitanga dos Palmares, Bahia. Seu filho, o “Binho do Quilombo” foi
brutalmente assassinado em 2017. Até hoje ninguém foi condenado. Bernadete tem sua saúde emocional seriamente abalada em decorrência disso.
3- As impunidades nos crimes contra os quilombolas no Brasil, em especial das
mulheres quilombolas vítimas de violência, que tiveram suas vidas ceifadas, tais como: Francisca Chagas, quilombola de Joaquim Maria, Maranhão, assassinada em 2016; Maria Trindade, quilombo Moju, Pará, assassinada em 2017.
4- Os grandes empreendimentos e a presença de militares nos territórios quilombolas, que violam diversos direitos humanos, e exercem violações específicas na vida das mulheres quilombolas, tais como: Alcântara/Maranhão, com a Base Espacial de Alcântara, além do linhão 135 no Norte do país que também atinge os quilombolas do Maranhão; Quilombo Kalunga – Cavalcante/GO, pelo projeto de construção da PCH Santa Mônica; Quilombo Paiol de Telha – no Paraná, atingido por PCHs; Quilombo Rio dos Macacos – Simões Filho /Bahia, atingido pela vila da Marinha; Quilombo Negros de Gilú, Poço dos Cavalos e Ingazeira – Itacuruba/Pernambuco, atingidos pela pretensa construção de uma Usina Nuclear; Quilombo Contente e Barro vermelho – Paulistana/Piauí-, atingidos pela Ferrovia Transnordestina;
Quilombo Ilha de Marambaia em Mangaratiba/Rio de Janeiro atingido pela base da Marinha; Quilombo de Barrinha, São Francisco do Itabapoana /Rio de Janeiro, atingido pela pretensa construção de um empreendimento portuário; Quilombolas da região de Brumadinho/MG, atingidos pelo rompimento da Barragem; Quilombo Invernada dos Negros, em Campos Novos/Santa Catarina, atingidos pelo agronegócio; Quilombos de Santarém/PA, atingidos pela pretensa
construção do Porto do Maicá.
5- A ofensiva contra os direitos e a vida das mulheres quilombolas que se materializa em inúmeras iniciativas do Estado. O avanço das privatizações de setores estratégicos para a soberania popular como: petróleo, energia, florestas, água, saúde e educação.
6- A morosidade na titulação dos territórios quilombolas, com a paralisação das políticas de regularização dos territórios quilombolas, e diminuição do orçamento
no ano de 2019 para titulação de territórios quilombolas.
7- as mudanças administrativas operadas pela Medida Provisória n° 870/2019 e pela Instrução Normativa nº 1/2018 da Fundação Cultural Palmares, que trata de processos administrativos de licenciamento ambiental de obras que afetem comunidades quilombolas.
8- As violações o direito de consulta aos povos quilombolas, descumprindo o Tratado Internacional de Direitos Humanos – CONVENÇÃO da OIT nº 169/1989.
9- O PL Pacote Anticrime, proposta pelo atual ministro de Segurança, o Decreto
Federal n° 9.685/2019, que flexibiliza a compra e posse de arma de fogo no Brasil, em especial para moradores da zona rural, deve ter rebatimento nos conflitos no campo aumentando a violência nas comunidades quilombolas rurais e, inclusive, contra as mulheres quilombolas.
Por isso, requeremos:
a) que sejam tomadas medidas para garantir a proteção de Sandra Braga e Eliete Paraguaçu, bem como que seja intervindo perante a justiça da Bahia para que as investigações
do assassinato de Binho sejam concluídas;
b) Que sejam tomadas medidas efetivas para que os crimes cometidos contra
quilombolas e relatos na pesquisa “Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil” sejam investigados e solucionados, como medida justa e digna de reparação ao povo quilombola;
c) que sejam tomadas medidas efetivas que assegurem a continuidade e celeridade na titulação dos territórios quilombolas;
d) que seja garantido o direito de Consulta Prévia, Livre, Informada e de Boa Fé aos povos quilombolas.
e) que sejam tomadas medidas efetivas para que os agentes políticos titulares das pastas se abstenham por termo de ajustamento de conduta, de praticar atos, falas ou qualquer outra
forma, que configure, em ofensa aos preceitos constitucionais, em particular dos objetivos do Estado Brasileiro, a discriminação racial e étnica relativamente aos povos quilombolas, ao povo negro, aos povos indígenas e outras comunidades cultural e etnicamente diversas. E, em caso
de violação a esse dever, proceda à sua responsabilização, nos limites de sua competência constitucional.
QUANDO UMA MULHER QUILOMBOLA TOMBA, O QUILOMBO SE LEVANTA COM
ELA!