“É urgente politizar a luta comum!”
Entrevista concedida por Ivan Pinheiro (membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro – PCB ) ao Portal PCB/SC
Ivan analisa o cenário político internacional, o governo Bolsonaro e aponta os desafios colocados para a classe trabalhadora na construção de uma alternativa revolucionária.
Segundo Ivan: “Para reverter essa correlação de forças desfavorável e avançar na luta é necessário combater as ilusões em soluções institucionais, jogar toda a energia militante na conscientização, organização e mobilização dos trabalhadores e das camadas populares e promover, no campo da esquerda socialista, um urgente debate com o objetivo de unificar e politizar a luta comum”.
PCB/SC: Vamos começar falando sobre a conjuntura mundial. Como você tem observado o conflito entre os Estados Unidos e a China? Há uma nova configuração do imperialismo no atual momento histórico?
Ivan: O conflito entre os Estados Unidos e a China, na atualidade em forma de acirradas disputas geopolíticas e econômicas, é a expressão maior do agravamento das contradições interimperialistas com o fim do mundo unipolar que, a partir da contrarrevolução na União Soviética (1991), garantira aos Estados Unidos uma hegemonia absoluta em todos os aspectos, por cerca de duas décadas.
O fator mais perigoso desta acirrada disputa multipolar, em que, a grosso modo, polarizam Estados Unidos/União Europeia e China/Rússia, é a volta da corrida armamentista, que pode levar a conflitos militares de enormes proporções. Grandes guerras sempre foram inevitáveis em todos os momentos da história marcados por mudanças na hegemonia mundial, como este em que vivemos na atualidade, ainda mais dramatizado pela crise sistêmica do capitalismo.
Esse quadro nos coloca novamente diante da questão da paz e da guerra. Para os revolucionários, volta à ordem do dia a luta contra as guerras imperialistas, pela paz entre os povos, não entre as classes. A crise mundial do capitalismo acirra as disputas entre os grandes monopólios por matérias primas, tecnologia, mercados, rotas e territórios e, entre os principais países e blocos imperialistas, por hegemonia nos campos econômico, político, cultural e militar.
Sem pretender aqui alimentar qualquer ilusão de que essa multipolaridade torne a ONU “democrática” e “progressista” e muito menos que favoreça as revoluções socialistas, considero que seu aspecto positivo é que o imperialismo estadunidense já não pode mais tomar atitudes unilaterais, como ocorreu em suas covardes agressões ao Afeganistão, ao Iraque, à Líbia, em aliança com potências europeias (OTAN), sempre precedidas de mentiras e manipulações para satanizar os governos locais e tendo como objetivos a venda de mais armas, a ocupação de territórios estratégicos, o saque das riquezas naturais dos povos.
Na sua última aventura militar, os EUA já não puderam mais se valer do até então silêncio cúmplice e conciliador da Rússia e da China, no Conselho de Segurança da ONU. A Síria deve sua sobrevivência como país à mudança de atitude dessas duas potências, cujos interesses geopolíticos estavam sendo ameaçados, sobretudo no Oriente Médio. Tendo sofrido na Síria uma grande derrota política e militar, o imperialismo estadunidense volta agora as armas de suas guerras híbridas contra países que não abrem mão de sua soberania e dispõem de imensas reservas de petróleo, como o Irã e a Venezuela.
É inegável que a ação da Rússia e da China, cada qual à sua maneira, tem sido fundamental para confrontar e, em alguns casos, conter o ímpeto do imperialismo estadunidense, como foi o caso de sua postura de recuo frente à Coreia do Norte. Devemos saudar este fato, mas sem ilusões, pois o motor desta ação são os interesses econômicos e geopolíticos destas duas grandes potências, também imperialistas, e não o exercício do internacionalismo proletário! Nesse contexto, cabe aos comunistas saber aproveitar as contradições interimperialistas para avançar o processo revolucionário em cada país.
PCB/SC: Um dos fenômenos que observamos como consequência da crise capitalista originada em 2007/08 é que a burguesia passou a apostar em alternativas capitaneadas pela extrema-direita como saída para os seus problemas. Como você observa esse processo no contexto internacional?
Ivan: Para enfrentar os efeitos da crise, que impactam negativamente a taxa de lucro e a reprodução do capital, as burguesias vêm adotando medidas que afetam de forma dramática os interesses dos trabalhadores e das camadas populares, como o arrocho salarial, a destruição de direitos trabalhistas, previdenciários e sociais, o saque ao orçamento e ao patrimônio público, uma pauta que acirra as contradições entre o capital e o trabalho e, por conseguinte, a luta de classes.
É duro termos de reconhecer que, em âmbito mundial, essa ofensiva se dá num momento em que o reformismo predomina em relação às forças revolucionárias e que a hegemonia do capital é de tal ordem que sua máquina de propaganda chega a convencer parcelas da classe trabalhadora a aceitar o discurso da “responsabilidade fiscal” como forma de garantir seus empregos, atuais ou futuros, ainda que com menos direitos.
Para tentar levar a efeito essas medidas, o estado burguês precisa restringir as liberdades democráticas conquistadas e fortalecer seu aparato de repressão, a fim de intimidar e conter as lutas em defesa dos direitos ameaçados. Medidas e leis repressivas vêm sendo adotadas na maioria dos países, em graus diferenciados, a depender das necessidades e possibilidades das suas classes dominantes, da cultura política do país e da correlação de forças.
Entretanto, nem sempre a burguesia precisa se valer de alternativas de extrema-direita, simplesmente porque já exerce uma confortável hegemonia política e cultural em todos os principais poderes e instituições, estatais ou sociais, de fato e de direito. Na grande maioria de países, a melhor forma de dominação continua sendo a velha e ilusória democracia burguesa, um instrumento flexível para administrar a vigência e o grau das chamadas liberdades democráticas e cuja principal arma são as eleições periódicas, que lhe conferem legitimidade e legalidade.
Arrisco dizer que os atuais governos mais notórios de extrema direita não eram as opções prioritárias dos setores hegemônicos das respectivas classes dominantes. Venceram na margem de erro de cada eleição. Na Itália, Polônia e Hungria, exemplos mais visíveis, o que pesou mais na eleição de candidatos de extrema-direita foi o discurso contra os imigrantes, alimentado por um nacionalismo xenófobo. O mesmo fator resultou num crescimento da ultradireita nas recentes eleições do Parlamento Europeu. No Brasil, Bolsonaro só passou a ser apoiado pelo capital depois que ficou claro que nenhum dos seus candidatos mais confiáveis (Alckmin, Meirelles, Amoedo) iria para o segundo turno, pois o objetivo, em razão da crise, era descartar a conciliação de classe petista.
PCB/SC: Na América Latina, governos de direita e extrema-direita ganharam força nos últimos anos. No entanto, a Venezuela tem conseguido manter a denominada Revolução Bolivariana resistindo à ofensiva de um forte ataque externo, capitaneado pelos EUA. Como você analisa esse cenário?
Ivan: A América Latina, considerada o quintal dos fundos do imperialismo estadunidense, em que – com a gloriosa exceção de Cuba Socialista – todas as aspirações e possibilidades de soberania e progresso social foram sufocadas pelos Estados Unidos, torna-se hoje um fator importante na cena mundial e um dos palcos das disputas interimperialistas. O resultado da ofensiva que os Estados Unidos movem contra a Venezuela terá importante impacto na correlação de forças mundial e sobretudo na América Latina. Por isso, independentemente de qualquer restrição que possamos fazer aos rumos atuais do processo bolivariano, nossa solidariedade não pode faltar ao povo venezuelano, em especial às suas organizações revolucionárias.
Muitos motivos levam os EUA a não desistir da tentativa de derrubar o governo do PSUV, hoje encabeçado por Maduro, e entregá-lo aos setores da oligarquia venezuelana que lhes são servis. Tentam isso desde 2002, quando sequestraram Hugo Chávez e o levaram para uma base militar e as massas ganharam as ruas exigindo sua libertação e sua volta ao governo. Nunca deixaram de conspirar, provocar ações violentas, satanizar o processo e suas lideranças e, principalmente, boicotar a economia venezuelana, de todas as formas possíveis, para jogar o povo e a opinião pública mundial contra o governo. Mas agora a instabilidade se agravou e estamos às vésperas de um desfecho. Nesse sentido, devemos denunciar as tentativas de golpe de Estado do imperialismo estadunidense e das classes dominantes venezuelanas para derrubar o Governo Maduro.
Além de ser palco do processo de mudanças que mais avançou em termos sociais e políticos na região, o país dispõe de uma das maiores reservas de petróleo (próximas ao território norte-americano), é uma referência para os povos latino-americanos, desenvolve intensas relações bilaterais de colaboração com Cuba e, além do mais, é a principal porta de entrada de capitais russos e chineses na América Latina.
Como dissemos anteriormente, não podemos subestimar o respaldo que a Venezuela bolivariana vem recebendo da Rússia e da China, sem o qual o Conselho de Segurança da ONU já poderia ter autorizado uma intervenção militar dos Estados Unidos, com o respaldo de países sul-americanos governados pela direita, que compõem o chamado Grupo de Lima. Mas não se pode confiar cegamente em potências estrangeiras, cujos interesses estratégicos podem levá-las a mover suas peças no tabuleiro global.
Não podemos subestimar também o apoio, até aqui determinante, das Forças Armadas venezuelanas, mas sem deixar de levar em conta a possibilidade de um eventual agravamento da crise econômica e social, que torne o país ingovernável, levá-las a outros caminhos, inclusive próprios.
As forças revolucionárias venezuelanas exigem corretamente que o socialismo deixe de ser apenas fonte de discursos e promessas e comece a ser construído de fato, com a formação de uma frente revolucionária e a adoção de medidas como a urgente estatização do sistema financeiro e dos monopólios privados e a industrialização do país, sob controle dos trabalhadores, para garantir a substituição de importações e pôr fim à dependência exclusiva do petróleo, geradora do rentismo parasitário da burguesia, incluindo sua parcela incrustada no governo, principal fator de contenção de novos avanços e de práticas de corrupção, inerente ao sistema capitalista, ainda vigente no país. Só é possível enfrentar a grave crise (agravada pelo imperialismo e as oligarquias locais), com medidas socializantes e não com paternalismo e as políticas compensatórias que têm prevalecido.
Definitivamente, o fator decisivo será a capacidade do processo de mudanças radicalizar, no sentido da revolução socialista e da tomada do poder do estado burguês.
Vítima de guerra econômica que provoca desabastecimento, queda na qualidade nos serviços públicos e inflação galopante e tendo sofrido neste ano apagões elétricos e tentativas de golpe – a “ajuda humanitária” nas fronteiras com Brasil e Colômbia e a “sublevação militar” em Altamira – e em meio a uma correlação de forças na América Latina altamente desfavorável, o bolivarianismo ainda sobrevive porque os trabalhadores e as camadas populares valorizam as conquistas reais que tiveram, sobretudo nas áreas da saúde, habitação, educação. Mas, neste momento complexo e decisivo, o apoio popular só será garantido com a radicalização do processo.
Se não for superada a crise política, social e econômica, não podemos subestimar a possibilidade de um retrocesso político na Venezuela, seja através de algum novo golpe de direita mais forte ou da conciliação em torno de um pacto de “união nacional” com a oposição, como sugerem os diálogos mediados pela Noruega, mas que podem também ser rompidos em razão da oposição que vêm gerando nos setores mais radicalizados dos dois lados, ou seja, à esquerda de Maduro e à direita do fantoche ianque Guaidó, o que poria fim à trégua tácita e instável que assistimos hoje.
Não se pode descartar também a possibilidade de uma insurreição ou mesmo guerra civil, levando-se em conta que há setores organizados e armados tanto nas classes dominadas como nas dominantes. Sejam quais forem os desdobramentos da crise venezuelana, jogará um papel significativo o principal legado do chavismo: a conscientização do proletariado e a grande rede de organizações de massa, os coletivos, brigadas e comunas, uns criados de cima para baixo e outros de forma independente, a partir das bases.
Apesar de tudo, a heroica sobrevivência do processo de mudanças na Venezuela bolivariana – a despeito de seus limites – é uma referência importante para refletirmos sobre as razões das recentes derrotas de governos classificados como progressistas em nosso continente, alguns em processos eleitorais e outros por variadas formas de golpes, todos exatamente por não terem promovido as mudanças que haviam prometido.
Na Venezuela bolivariana não se trata apenas de governos “progressistas”, como os que administram o capitalismo prometendo humanizá-lo e que caem porque essa é uma tarefa impossível. Trata-se de um processo de mudanças radicalizado, com acentuado viés anti-imperialista, e que resultou em conquistas reais a favor das camadas populares, no fim do monopólio da mídia burguesa, no avanço da conscientização e da organização das massas.
PCB/SC: Fale então um pouco mais sobre o aparente esgotamento do ciclo dos chamados governos “progressistas” na América Latina.
Ivan: Além do Brasil, que merece uma reflexão específica, em dois outros países do nosso continente governos progressistas foram derrubados por golpes de estado: Honduras (2009) e Paraguai (2012). Nas duas ocasiões, estive pessoalmente em missão de solidariedade, em nome do PCB.
Como em todos os golpes de estado na América Latina, o imperialismo norte-americano teve papel determinante nestes episódios, em aliança com as oligarquias locais. Em Honduras, essa presença foi às claras. Manuel Zelaya, um burguês progressista e nacionalista que havia se aproximado de Hugo Chávez e da ALBA, foi retirado à força da sede do governo por militares e levado preso a uma base dos EUA no próprio território hondurenho. A resistência popular foi massiva e aguerrida, mas acabou derrotada por violenta repressão e, não podemos deixar de registrar, pela falta de uma vanguarda revolucionária que conduzisse a luta para além do espontaneísmo. Pelas mesmas razões, uma possível insurreição popular foi derrotada em Honduras recentemente.
No Paraguai, o golpe parlamentar que derrubou Fernando Lugo foi rápido e sem muita resistência. Apesar de seu governo ter gerado grandes mobilizações populares e uma inédita frente política e social de esquerda, o próprio Presidente, humanista e pacifista, que fora Bispo da Igreja Católica, acatou publicamente a decisão do Senado pelo seu impedimento, em um processo forjado que tramitou a toque de caixa, em menos de uma semana.
Em outros países, governos tidos como progressistas assumiram e caíram através de eleições e – ouso aqui levantar uma hipótese – muitos deles poderão voltar ao governo pela mesma via, provavelmente menos progressistas, pagando preços mais altos em termos de alianças com setores da burguesia para tentar garantir a governabilidade institucional, inclusive podendo aplicar certas políticas de “austeridade fiscal”, de forma menos rápida e profunda, em comparação a governos de direita.
Ocorre que, no quadro da crise sistêmica do capitalismo, vem se consolidando em muitos países uma bipolaridade política entre forças que administram o capital. Numa época em que caracterizações políticas precisam ser relativizadas, podemos usar um vasto cardápio para classificar essa bipolaridade em cada país, tais como centro-esquerda, socialdemocratas, reformistas ou progressistas X direita, centro-direita, neoliberais ou conservadores. O certo é que as diferenças entre estes polos vêm diminuindo. Por vezes, mudam os nomes de candidatos e mesmo os de partidos ou frentes. Mas não mudam o fato de que são duas alternativas que cabem perfeitamente nos limites da democracia burguesa e do capitalismo e que tendem a se revezar, na chamada “alternância do poder”, que prefiro chamar de alternância de governo, já que, através de eleições, nunca está em jogo o poder do estado burguês.
Essa alternância se dá porque, em geral, o governo de turno é derrotado em eleição seguinte, por não ter podido cumprir as promessas que fez em campanha para superar o desemprego, a pobreza, a insegurança, os péssimos serviços públicos.
No Chile, a alternância tem se dado de forma monótona, com os mesmos personagens e partidos, a quatro eleições seguidas: Bachelet (2006), Piñera (2010), Bachelet (2014) e Piñera (2018). Michelle Bachelet é um bom exemplo de outro fenômeno: a degeneração ideológica e a cooptação ao sistema que gera o exercício da administração do capitalismo. Depois de dois mandatos como Presidente, o segundo menos progressista que o primeiro, tornou-se Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos e acaba de divulgar um relatório parcial e mentiroso sobre a situação na Venezuela, prestando um relevante serviço ao imperialismo norte-americano.
Na Argentina, o revezamento deve se dar nas eleições agora em outubro. Cristina Kirchner despontava como favorita em todas as pesquisas. No entanto, satanizada como progressista radical, decidiu formar uma chapa que sugere moderação, em que ela vem como vice de Alberto Fernández (bem aceito pelo “mercado”), na denominada Frente de Todos. Ao que tudo indica, o ultraliberal Macri poderá ser derrotado, porque não aconteceu o “milagre econômico” que havia prometido. Nesse caso, o próximo governo argentino tende a ser mais pragmático e menos progressista que os dos Kirchners (Néstor e Cristina).
No Equador, a alternância se deu de maneira surpreendente. Rafael Correa, em seu primeiro mandato como Presidente (2007/2012), convocou uma Constituinte soberana, promoveu algumas mudanças e desafiou o imperialismo norte-americano, despejando-o da base militar de Manta, a maior da América Latina. Após um segundo mandato (2012/2017) em que não deu continuidade às mudanças nem preparou um sucessor progressista – e sem poder legalmente candidatar-se a uma segunda reeleição – Correa se viu obrigado a apoiar a candidatura de Lenin Moreno, que havia sido seu Vice-Presidente, numa aliança com setores burgueses. Depois de eleito e empossado, em 2018, Lenin (que ironia!) devolveu a base de Manta aos EUA, juntou-se aos governos de direita da região contra a Venezuela bolivariana e atualmente se soma a uma campanha de criminalização de Rafael Correa, para que este, como Lula, não possa ser candidato às próximas eleições. Qualquer semelhança com Michel Temer, que era o vice de Dilma Rousseff, não é mera coincidência!
Em razão do desgaste e da acomodação política causados pelos limites da administração do capitalismo, até mesmo dois governos progressistas longevos – Uruguai (desde 2005) e Bolívia (desde 2006) – estão às voltas com as mais difíceis eleições que disputaram e que ocorrerão este ano. Ambos já procuram parecer mais moderados. No caso do Uruguai, o ex-Presidente Pepe Mujica e o novo candidato da progressista Frente Ampla (Daniel Martínez) vêm declarando publicamente que o governo Maduro é uma ditadura! No caso da Bolívia, que avançou positivamente em muitas mudanças políticas e sociais e resistiu com o povo nas ruas a várias tentativas golpistas, Evo Morales tem adotado atitudes regressivas, como prestigiar pessoalmente a posse de Bolsonaro, aceitar a redução do preço do gás que a Bolívia vende ao Brasil e negar asilo político a Cesare Battisti, o que obviamente resultou na sua entrega à polícia brasileira e sua extradição para a Itália, onde cumpre prisão perpétua.
No México, a eleição do progressista López Obrador reforça a tese da alternância de governo. Esse fenômeno ultrapassa as fronteiras da América Latina. Para ficar entre os países sobre os quais temos mais informações, esse revezamento bipolar da administração do capitalismo vem acontecendo na França, Espanha, Portugal, Itália e na Grécia, onde o socialdemocrata Syriza acaba de ser derrotado pela centro-direita, depois de ter implantado as políticas de austeridade fiscal ditadas pela Troika (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia).
É evidente que a esquerda revolucionária não prefere um governo de direita, na lógica do “quanto pior, melhor”, na suposição de que “acentua as contradições e abre caminho para a revolução socialista”. Em qualquer circunstância, o que pode levar à revolução socialista é a conscientização, organização e capacidade de luta do proletariado e a presença de uma consistente vanguarda revolucionária.
Por outro lado, mesmo não sendo prioridade, não devemos subestimar os processos eleitorais, momentos importantes para fazer o trabalho político e ideológico junto aos trabalhadores, apresentar nossas propostas, táticas e estratégicas, denunciar a exploração capitalista e o jogo marcado da democracia burguesa, objetivos que recomendam nossa participação com identidade própria, mesmo que em coligação com outras forças. Se as circunstâncias nos levarem a apoiar um candidato que signifique um “mal menor”, não podemos deixar de dizer aos trabalhadores, com todas as letras, que se trata do “menos ruim”!
PCB/SC: Você não falou da Colômbia. Como vê a situação por lá, após o acordo de paz assinado pelas FARC-EP?
Ivan: Pois é, camaradas. Estávamos tratando de alternância de governo, que na história da Colômbia só se deu até hoje entre facções da oligarquia, entre a direita e a ultradireita.
Mesmo para quem acompanhou relativamente de perto os Diálogos de Havana, é difícil entender e fazer um juízo de valor sobre a abrupta decisão das FARC-EP de aceitar a exigência de entrega prévia das armas para assinar o “acordo de paz”. Essa alternativa nunca foi aventada em toda a história invicta deste partido comunista em armas. Uma hipótese que pode justificar esta decisão é a de que houvesse um risco iminente de derrota militar, em função de um certo desequilíbrio que vinha causando o uso de novas tecnologias (mísseis “inteligentes”, drones, chips etc.) por parte de um poderoso aparato militar, treinado e armado pelo imperialismo norte-americano, que dispõe de nove bases no país. Agora membro associado da OTAN, a Colômbia é uma cabeça de ponte dos EUA, localizada estrategicamente entre as Américas do Sul e Central e de frente para o Caribe, uma espécie de Israel em nosso continente.
A dissidência que se cristaliza entre os antigos comandantes guerrilheiros, e que vai se tornando pública, certamente em algum momento jogará luz sobre as circunstâncias políticas em que se deu aquela decisão, que surpreendeu a todos, inclusive às forças políticas solidárias. Há a hipótese também de alguma influência das ideias reformistas e socialdemocratas que grassam na esquerda mundial, inclusive em parte do movimento comunista, nomeadamente as ilusões eleitorais e institucionais.
Independente das razões que levaram a este desfecho, penso que esta foi a pior derrota que tivemos na América Latina nos últimos tempos. Diferentemente de derrotas eleitorais, que sempre podem ser revertidas, esta é uma derrota política e ideológica de longo alcance, para além da Colômbia. Uma das consequências foi deixar desguarnecida a extensa fronteira entre a Colômbia e a Venezuela, onde era muito forte a presença militar das FARC, o que pode facilitar a infiltração de paramilitares ou soldados regulares colombianos, uma das alternativas dos EUA contra a Venezuela bolivariana.
Alguns dos antigos comandantes têm se pronunciado publicamente de forma autocrítica. Iván Márquez recentemente classificou como inocência política a forma da entrega das armas e a desmobilização, enquanto Jésus Santrich, vítima de uma farsa judicial com tentativa de extradição aos EUA, vinha denunciando o extermínio de ex-guerrilheiros e militantes sociais, tendo aconselhado publicamente o ELN (Exército de Libertação Nacional) a não entregar suas armas nos marcos das negociações que mantém com o governo colombiano, atualmente suspensas por este. Encontrando-se na mira do estado colombiano, correndo iminente risco de vida, há notícias de que ambos se encontram foragidos.
É preciso deixar claro que a crítica aqui não é por considerar que as FARC-EP deveriam manter a mesma forma de luta armada até à vitória final, a que jamais chegariam por esta única via, ou seja, se não contassem com um amplo e combativo movimento de massas e uma vanguarda revolucionária nas grandes cidades e entre o campesinato. Foi correto compor a mesa de diálogos com o governo, para a busca de uma “solução política do conflito”, no conceito da insurgência, que sempre evitou a expressão “acordo de paz” (usada pelo governo), já que não há paz na luta de classes, ainda mais num estado terrorista como o colombiano. Foi correto buscar uma solução para o conflito que durante toda a sua história de mais de 50 anos custou a vida apenas de filhos do proletariado, nos dois lados em armas. Durante os diálogos em Havana, houve um extraordinário crescimento do movimento de massas, já que as FARC-EP haviam se transformado em porta-voz das reivindicações populares, muitas delas contempladas no documento assinado entre as partes, mas em sua maioria tornadas letras mortas.
O açodamento e principalmente a forma da desmobilização da insurgência abriram espaço para o governo descumprir e inviabilizar a aplicação dos principais pontos acordados, o que provocou desilusão e descrédito no povo colombiano e o consequente refluxo do movimento de massas. Tratou-se de uma cilada, uma paz de cemitérios. Ao invés da idealizada conciliação nacional, assistimos hoje ao recrudescimento do terrorismo de estado. Desde a desmobilização, já foram assassinados centenas de militantes sociais e mais de 140 ex-guerrilheiros, enquanto o Estado lava as mãos, atribuindo os crimes ao paramilitarismo.
Não serviu de exemplo o comportamento histórico da oligarquia colombiana, que descumpriu todos os compromissos assumidos com diversas guerrilhas, inclusive com as próprias FARC, que, após um acordo com o governo Belisário Bitencourt, se desmobilizaram parcialmente e, em 1985, juntamente com o Partido Comunista Colombiano, criaram um partido legal, a União Patriótica. Após as eleições de 1986, em que a UP teve um bom desempenho, elegendo 5 senadores e 14 deputados, além de prefeitos e vereadores, começou um extermínio, atribuído a grupos paramilitares, que resultou no assassinato de 4.000 militantes, no episódio que a oligarquia batizou cinicamente de El Baile Rojo.
PCB/SC: E sobre Cuba? Como vai enfrentando as sanções e ameaças do governo Trump? Qual a importância da ilha na atualidade?
Ivan: A Revolução Cubana segue sendo um grande exemplo para todos os povos do mundo. Cuba é o único país em que me sinto pessoalmente seguro de dizer que mantém uma experiência de construção do socialismo.
Apesar de 60 anos de um cruel e desumano bloqueio levado a efeito pela maior potência mundial, a poucas milhas de seu território, Cuba segue soberana. Apesar do fim da União Soviética, que sempre lhe deu suporte político, econômico e militar, o socialismo sobreviveu em Cuba, com muito sacrifício, ao chamado período especial que se seguiu, num momento em que o fim do socialismo no país era estimado em dias, meses ou em poucos anos. Apesar das dificuldades de construir o socialismo praticamente em um só país, uma pequena ilha, Cuba continua revolucionária, internacionalista e anti-imperialista.
Mas não podemos deixar de reconhecer e compreender que a Revolução Cubana, por conta de todas essas dificuldades, sobretudo econômicas, não achou outra alternativa senão a adoção de algumas mudanças que vêm abrindo espaço à iniciativa privada, para poder manter alguns dos mais importantes princípios da Revolução: as garantias de trabalho e de gratuidade em todos os níveis da educação e em todos os serviços de saúde. Uma das soluções encontradas foi um plano de demissão voluntária de servidores públicos em áreas com grande excesso de pessoal, em troca do direito de empreender alguma atividade que lhes gerasse renda com seu trabalho e de pessoas de sua família, num sistema que ficou conhecido como contrapropismo.
Entretanto, na busca por mais valor (e confirmando a inescapável lei da acumulação capitalista), alguns desses empreendimentos, sobretudo na diversificada e importante área do turismo, se desenvolveram e passaram a utilizar mão de obra informal de terceiros. Esse tema foi objeto de amplo debate no recente processo de revisão da Constituição Cubana, que envolveu praticamente toda a população. O anteprojeto que resultou desta consulta foi submetido a um referendo nacional, sendo aprovado por 87% dos cubanos, com comparecimento às urnas de 90% dos eleitores. Entre as principais mudanças constitucionais estão medidas para conter a expansão do setor privado na economia, com regras rígidas para coibir a exploração de mão de obra, o aumento de preços dos produtos de consumo popular, a evasão de impostos, além de vários ajustes e correções de rumo para resolver os principais problemas do país, dentro de um contexto de reafirmação da construção do socialismo.
Já com relação às manobras, provocações e agressões do imperialismo norte-americano – que nunca deu trégua nos 60 anos de Revolução Socialista – a atual crise na Venezuela suscitou uma nova onda de ameaças e sanções específicas contra Cuba, mas que na realidade têm o objetivo de tentar “matar dois coelhos com uma só cajadada”, ou seja, atingir e tentar fragilizar esses dois países que não se submetem aos seus desígnios, procurando debilitar uma relação bilateral que beneficia os dois povos. Com este objetivo, o governo Trump mente descaradamente para apertar o cerco econômico contra a Ilha, afirmando que há tropas cubanas na Venezuela.
Baseada na famigerada Lei Helms-Burton, de 1996 (governo Clinton), a ofensiva atual ataca exatamente as duas necessidades fundamentais para a solução dos problemas econômicos cubanos: os investimentos estrangeiros e o setor do turismo, suas principais fontes de receitas em moedas estrangeiras e de geração de emprego e renda. Para afastar investimentos, usando seu arbitrário poder extraterritorial, o governo dos EUA resolveu impor sanções às empresas que tenham alguma relação comercial em imóveis nacionalizados há décadas pela Revolução Cubana e, para estancar o crescente fluxo de turistas estrangeiros na ilha caribenha (4 milhões, em 2018), estabeleceu fortes restrições a viagens de cidadãos estadunidense a Cuba.
Mas a Revolução Cubana tem como uma de suas principais marcas a superação de obstáculos, que não têm sido poucos nem fáceis de vencer. Nunca se entregou! E mais uma vez vencerá!
Por conta desta história de resistência invicta, da mística revolucionária de Fidel, Che, Camilo Cienfuegos e seus camaradas da Sierra Maestra, de sua determinação de criar uma sociedade sem opressores nem oprimidos, por ser na atualidade o único país, povo e governo do mundo a praticar o internacionalismo proletário, nunca lhe faltou nem faltará a solidariedade vinda de todas as partes do mundo, sobretudo de todas as expressões políticas e sociais comprometidas com a construção de um mundo sem guerras, sem fome nem miséria, onde todos possamos compartilhar os mesmos direitos e deveres e, como em Cuba, nos chamarmos de companheiros.
PCB/SC: Vivemos o esgotamento do ciclo lulista, que foi derrotado pelo Golpe de 2016, que culminou com a prisão de Lula e a derrota de Haddad nas eleições de 2018. O que levou à crise e à derrota desse projeto? Por que, mesmo com o desgaste do projeto petista, a esquerda socialista não conseguiu se apresentar como uma alternativa real para a classe trabalhadora brasileira?
Ivan: O golpe contra Dilma foi consequência do agravamento no Brasil da crise mundial do capitalismo, que levou a burguesia a prescindir da conciliação de classes dos governos petistas que, enquanto a economia ia bem (favorecida pelo “boom das commodities”), garantiam a expansão e os lucros do capital e, ao mesmo tempo, amaciavam a luta de classes com políticas compensatórias, a cooptação e o apassivamento do movimento sindical e popular.
Enquanto os efeitos mais graves da crise não chegavam aqui, os governos petistas se mantiveram de pé, sem muitos sobressaltos, por três mandatos consecutivos (2003/2014). A governabilidade petista neste período era garantida por uma ampla aliança com partidos burgueses, que assegurava folgada maioria no parlamento, ao custo da impossibilidade de promover qualquer mudança estrutural. Uma das consequências foi não ter sido feito absolutamente nada ao menos para mitigar o monopólio da mídia burguesa. Pelo contrário, os governos petistas tentavam, em vão, neutralizá-la com robustas verbas públicas. Há um PT na oposição e outro no governo. Com a posse de Lula em 2003, seu partido, que havia liderado a luta pela reestatização da Vale do Rio Doce, privatizada no governo FHC, calou-se e não moveu uma palha a respeito.
Quando a crise econômica atingiu em cheio o final do primeiro mandato de Dilma, os governos petistas se tornaram anacrônicos para o sistema, pois não podiam mais sustentar a conciliação de classes (como se viu a partir das manifestações de 2013) nem assegurar, de forma rápida e intensa, as contrarreformas de que o capital necessita para sair da crise às custas dos trabalhadores. A burguesia precisava de um governo para chamar de seu. Dilma ainda tentou agradar o capital, com a nomeação de um Ministro da Fazenda de absoluta confiança do mercado. Mas sua sorte já estava lançada.
As medidas adotadas pelo governo Temer deixam bem claro que as razões do impedimento da Presidente Dilma não foram as “pedaladas fiscais”, pretexto que até hoje pouca gente sabe do que se trata. Mesmo com um índice de rejeição popular recorde e enredado em graves denúncias de corrupção, Temer conseguiu, em seu breve mandato, aprovar a contrarreforma trabalhista, a generalização das terceirizações, o “teto de gastos públicos” por 20 anos, sem que nem as imagens de uma mala com 500 mil reais carregada por assessor de sua confiança lhe ameaçassem o mandato.
O golpe parlamentar, judicial e midiático contra Dilma só foi possível porque os trabalhadores e as camadas populares – diferente do que vem ocorrendo na Venezuela – não atenderam ao chamado para defendê-la, exatamente porque não havia conquistas significativas nem mudanças estruturais a preservar. E foi facilitado pela conciliação dos governos petistas: pela campanha de satanização da mídia que não combateram, pelo oportunismo dos Ministros do STF que nomearam e pela traição do Vice-Presidente e dos partidos burgueses com os quais se coligaram. Em resumo: o PT foi vítima da sua própria conciliação!
Apesar desta derrota, considero um erro a teoria do “esgotamento do ciclo petista”, surgida em nosso meio após as manifestações de 2013 e reforçada depois do golpe contra Dilma. Essa teoria induziu ao voluntarismo de achar que o PT estaria morrendo e que chegara a hora e a vez de as forças da esquerda revolucionária dirigirem um novo ciclo de lutas, no qual o reformismo não teria mais espaço, o que é outra ilusão. Mesmo que o PT tivesse desaparecido, o reformismo migraria para outro partido socialdemocrata, pois esta é uma ideologia predominante na pequena burguesia. Por sinal, o PSOL já vem se beneficiando do desgaste do PT.
Se levarmos em conta que o sistema teve que prender Lula para ele não vencer as eleições de 2018 e que – a despeito de toda a satanização dele e do PT (como se tivessem inventado a corrupção no Brasil) – Haddad ainda assim foi para o segundo turno e o PT elegeu novamente a maior bancada de Deputados Federais, temos que reconhecer que o petismo sofreu um grande desgaste, mas não se esgotou, inclusive no movimento sindical, em que ainda é a maior força. O PT pode até voltar ao governo pelo voto em 2022, já que a crise econômica dá sinais de que pode agravar-se. Nesta hipótese, não podemos descartar que essa eventual volta ao governo se dê com o apoio – no primeiro ou segundo turno – de setores das classes dominantes que deverão ser prejudicados pela contrarreforma da previdência (que deverá provocar a retração do consumo das camadas médias e populares), pela desindustrialização, que se aprofundará com o acordo Mercosul/União Europeia, e com o alinhamento incondicional aos EUA, que afasta mercados importantes para os produtos brasileiros. Ainda mais se as revelações dos bastidores da “Operação Lava Jato” forem mais fundo e deixarem evidentes a parcialidade e a politização do julgamento de Lula.
A esquerda socialista não se tornou alternativa ao desgaste do petismo por várias razões. Uma delas foi que a mídia transformou o PT em sinônimo de esquerda, de socialismo e até de comunismo. Mas há outros fatores que pesam, como a débil inserção na classe operária e nos setores populares, a incapacidade de forjar frentes de luta unitária para além de eleições, o movimentismo e o identitarismo que predominam na grande maioria das correntes que reivindicam a esquerda socialista. Muitas delas se movimentam tendo como bússola a sua performance nas próximas eleições. A mais de um ano das eleições municipais de outubro de 2020 – e em plena tramitação da contrarreforma da previdência – os partidos reformistas já começam a tratar como prioridade o debate sobre coligações e candidaturas a prefeitos e vereadores. Nas sábias palavras de um camarada, nos anos ímpares esta esquerda se prepara para as eleições, que se dão nos anos pares!
PCB/SC: Qual a sua avaliação sobre os primeiros meses do governo Bolsonaro? Como analisa a crise interna do governo e as consequências do vazamento dos bastidores da Lava Jato? Nesse cenário o que deve ser defendido pelas esquerdas? Como os movimentos sociais e populares podem interferir nesse processo? Qual a alternativa para a classe trabalhadora mudar uma conjuntura tão adversa?
Ivan: O governo Bolsonaro só não conseguiu ser pior, do nosso ponto de vista, em função das trapalhadas diárias que cria, das crises e conspirações urdidas por seus filhos, seu ideólogo Olavo de Carvalho e seus ministros, que atrasam o ritmo do seu próprio projeto de destruição do que resta do estado social, dos direitos trabalhistas, civis e políticos e da própria soberania nacional. Mas o retrocesso já é muito grande, em todos os aspectos.
Pelo que se observa na mídia hegemônica – a fonte mais reveladora dos humores das classes dominantes – há entre elas um desconforto com as asneiras e destemperos diários do inacreditável presidente que elegeram. Suas propostas preconceituosas e ultraconservadoras e suas declarações histriônicas, algumas de inspiração fascista, dificultam a pressa da imensa maioria de direita no parlamento em implantar as reformas neoliberais que dependem de iniciativa legislativa. A burguesia está preocupada com medidas a seu favor para a superação da crise econômica, não com o “marxismo cultural”, a “ideologia de gênero” e outras bizarrices.
A crise do momento, em que se destacam os bastidores da Lava Jato (que acirram o conflito entre o STF e o MPF) e as declarações torpes e mentirosas do Presidente sobre a prisão e o assassinato de Fernando Santa Cruz pela ditadura burguesa sob a forma militar, se desenrola exatamente no reinício da tramitação no parlamento da contrarreforma da previdência, considerada pelo “mercado” como a mãe de todas as chamadas reformas estruturantes a favor do capital.
Entretanto, ao menos no curto prazo, tudo indica que não haverá qualquer iniciativa no andar de cima com vistas a uma campanha pelo impedimento do Presidente. Motivos não faltariam: as fake news nas eleições, a relação íntima do clã com as milícias no Rio de Janeiro, o possível envolvimento no assassinato de Marielle Franco, o esquema de lavagem de dinheiro de Flávio Bolsonaro, as evidentes manobras para impedir a candidatura de Lula.
A razão principal desta sustentação política, ainda que constrangida, é que, bem ou mal, a agenda das reformas que interessam ao capital começou a andar no parlamento e também em matérias que são da alçada do executivo, como foi a privatização em tempo recorde da BR Distribuidora, aliás, com respaldo do STF. É bom lembrar que a mídia e os três poderes estatais estão perfeitamente afinados com o projeto do capital e só colocam obstáculos a propostas estapafúrdias do executivo, que extrapolem limites do que consideram civilizado, como a liberação da posse e do porte de armas e o afrouxamento das multas de trânsito.
Para garantir seu mandato, Bolsonaro tende a adotar cada vez mais iniciativas que satisfaçam o apetite do capital por extrair mais valor. É o caso da recente Medida Provisória 881/2019, apresentada pelo governo com o esperto título de “MP da Liberdade Econômica”, mas que, a pretexto de desburocratizar as empresas, amplia os efeitos perversos da contrarreforma trabalhista de Temer, estabelecendo o aumento da jornada de trabalho de várias categorias, a permissão de trabalho aos domingos e feriados sem negociação coletiva, a suspensão de normas sobre saúde e segurança do trabalho, inclusive a possibilidade de extinção das Comissões Internas de Prevenção de Acidentes, entre outras perdas de direitos trabalhistas…
Outra razão importante que vem garantindo a governabilidade é que Bolsonaro ainda possui uma sólida base social, radicalizada e idiotizada, que venderia caro uma tentativa de seu impedimento, contando com o apoio das igrejas neopentecostais, da maioria do comando e principalmente das bases das forças armadas, das polícias de todos os âmbitos e esferas, do agronegócio, dos caminhoneiros (que podem parar o país) e de milícias e organizações de ultra direita que podem transformar em episódios sangrentos a defesa do seu “mito”.
A burguesia só recorrerá ao processo de impedimento contra Bolsonaro se não houver mais condições de administrar as constantes crises que ele gera e se aprofundarem-se o seu isolamento político, inclusive entre seus fiadores militares, e o desgaste em sua base social, a ponto de ele passar a não dispor mais de meios razoáveis para tentar um autogolpe.
Enquanto isso, a burguesia, que não pode esperar, já arranjou uma maneira informal, provisória ou não (a depender dos desdobramentos), de levar à frente sua pauta no legislativo, sem precisar contar com Bolsonaro e, em alguns casos, apesar dele. Dispondo de uma bancada parlamentar de centro-direita maior do que a soma das bancadas da oposição de centro-esquerda e do partido de extrema-direita de Bolsonaro, forjou-se um parlamentarismo de fato, sob a liderança de Rodrigo Maia, alçado à condição de primeiro ministro de fato e, quiçá, de próximo candidato a Presidente da República da maioria das classes dominantes, expressando um campo de centro-direita, neoliberal na economia e “democrático” na política e nos costumes. Essa articulação chamou para si a contrarreforma da previdência e já se prepara para conduzir outras reformas de interesse do capital, a começar pela tributária.
Já no campo da oposição dita de esquerda e do movimento popular há muitas apostas em soluções institucionais que em nada alterariam a atual correlação de forças desfavorável.
Há os que torcem para Bolsonaro ficar na presidência até o fim do mandato, considerando que ele complica os projetos da burguesia e chegaria desgastado às eleições de 2022, facilitando a vitória de Lula ou de outro candidato progressista. Já os que torcem por Mourão (e, portanto, pelo impedimento do Presidente) iludem-se com a maquiagem que o general vem fazendo em sua imagem, contrapondo suas opiniões às do Presidente. Acham que ele não causaria tantos retrocessos e estaria aberto ao diálogo.
É preciso acabar com essas ilusões. Um processo de impedimento antes das principais reformas neoliberais e do aprofundamento do desgaste de Bolsonaro atrasaria mais os planos das classes dominantes do que a diarreia verbal incontinente do Presidente e ainda poderia trazer instabilidade política e social. Por outro lado, os militares ainda apoiam e participam do governo Bolsonaro. Não são democratas nem nacionalistas. Vários dos seus expoentes, inclusive os generais Mourão, Heleno e Vilas-Boas, pronunciaram-se publicamente a favor do golpe contra Dilma e contra a libertação de Lula, chantageando a opinião pública, o parlamento e o poder judiciário, e não levantaram uma só palavra contra a entrega da Embraer à Boeing e da base de Alcântara aos EUA e tampouco a sanha privatizante do governo. Humilhados pela fritura de alguns de seus generais e sem conseguir cumprir o papel moderador que imaginavam, os militares sairão desmoralizados por sua participação neste governo.
Doces ilusões! Não podemos nos comportar como torcedores, na expectativa de soluções vindas de cima que pareçam “menos ruins”. Só a conscientização, a organização e a luta dos trabalhadores e das camadas populares, com independência de classe, poderão evitar a destruição dos direitos trabalhistas, sociais, civis e políticos e avançar em outras conquistas. Essa é a nossa tarefa principal, não pensando apenas na atual conjuntura, mas em qualquer cenário, qualquer correlação de forças, a qualquer tempo. Não podemos subestimar as divisões e contradições interburguesas, que são inerentes ao capitalismo; quando possível, devemos aproveitá-las a nosso favor. Mas sem ilusões! Não há divergências inconciliáveis nas classes dominantes sobre a pauta que as levaram a apoiar Bolsonaro. Muito menos no governo, onde as diferenças são de forma e estilo, não de conteúdo!
Um outro entrave ao movimento de massas é o fato de o campo petista privilegiar o “Lula Livre!” como a bandeira principal, em detrimento da luta contra a ofensiva do capital. Essa prioridade debilita o movimento de massas, estimulando a ilusão de que só com eleições e a volta de Lula ao governo podemos assegurar nossos direitos. Não se trata aqui de negar a justeza desta bandeira. O julgamento de Lula foi político e seletivo, um novo golpe para evitar sua candidatura em 2018. Devemos prestar nossa solidariedade ao ex-Presidente, participando de algumas iniciativas específicas da campanha por sua libertação, mas sem priorizar esta bandeira nem abrir mão das necessárias críticas à conciliação dos governos petistas.
É preciso também combater as ilusões de classe disseminadas por setores da socialdemocracia “de esquerda”, que enganam e desmobilizam as massas com a vã esperança de derrotarmos ou mitigarmos os planos do capital no parlamento ou na justiça (instituições do estado burguês), como vimos durante a fase da luta contra a “reforma” da previdência anterior à votação em primeiro turno na Câmara dos Deputados, onde, por sinal, os reformistas negociam e conciliam com o seu Presidente, cacifando ainda mais este líder emergente da centro-direita, queridinho da mídia e do “mercado”. Os deputados do PcdoB, por exemplo, votaram nele para Presidente da Câmara, já no primeiro turno, mesmo havendo um candidato da bancada de esquerda!
Outra questão é a caracterização do governo Bolsonaro. Apesar de declarações e atitudes de inspiração fascista da parte dele e de seu entorno político mais próximo, não me parece correto definir o governo como fascista ou neofascista e nem exagerarmos os riscos do advento de uma ditadura aberta. Isso nos levaria ao erro de privilegiar os esforços por uma gelatinosa frente democrática policlassista e não pela necessária unidade na ação com a esquerda socialista e os movimentos sindicais e populares. Significaria privilegiar a luta em defesa da democracia burguesa, em detrimento dos direitos trabalhistas e sociais.
Apesar de Bolsonaro, o chamado “estado democrático de direito” funciona normalmente nestes sete meses de governo, embora com viés autoritário. O fato de haver neofascistas no governo não significa que estejamos sob o fascismo. Seria o mesmo que caracterizar os governos petistas como socialistas ou comunistas só porque deles participavam partidos que ainda mantêm nos seus nomes esses conceitos. Não há qualquer indício de que as classes dominantes em nosso país apoiariam, nos dias de hoje, uma ditadura aberta ou um processo de fascistização, alternativas a que recorreram, em 1964, quando viram ameaças concretas de mudanças estruturais, com o avanço do movimento de massas que empurrava o governo João Goulart para a esquerda. Isso se deu no auge da União Soviética e em plena Guerra Fria, na época das revoluções socialistas e de libertação nacional e numa América Latina rebelde, onde a Revolução Cubana inspirava movimentos revolucionários, o que levou o imperialismo a apoiar e articular ditaduras burguesas fascistizantes em quase todo o nosso continente.
Nos dias de hoje, o rompimento do “estado democrático de direito”, além de anacrônico e absolutamente desnecessário para o sistema, seria um tiro no pé dos interesses das classes dominantes, exatamente quando clamam de joelhos por investimentos estrangeiros, que dependem de segurança jurídica e estabilidade política. Além do mais, desde a chamada “transição democrática” – lenta, gradual e segura, como convinha aos interesses das classes dominantes – nunca houve uma correlação de forças tão favorável para assegurar os interesses do capital.
Isso não significa que a democracia burguesa (em verdade uma ditadura de classe) não possa recrudescer seu lado repressor. Ela é flexível, em função das necessidades do capital e da correlação de forças. Por isso – sem nos desviarmos da centralidade da luta contra a ofensiva do capital em relação aos direitos trabalhistas e sociais -, não podemos perder de vista a defesa das liberdades democráticas, entendidas como o conjunto de direitos políticos conquistados, nomeadamente os de expressão, organização e manifestação. Nesse sentido, não podemos descuidar do diálogo, de forma pontual e independente, com as forças reformistas de centro-esquerda nem das necessárias precauções ligadas à segurança e autodefesa. Quanto mais se desgasta o governo e ficam evidentes as barreiras aos seus delírios, mais radicalizados e ousados ficarão seus fiéis apoiadores.
Se fizermos um balanço realista da atual correlação de forças em nossa sociedade, infelizmente teremos que reconhecer que a disputa pelo poder não é entre esquerda e direita, como aqui em 1964 ou na Venezuela na atualidade, mas entre a direita e a centro-direita, de cujos embates é que podem surgir aventuras golpistas e autoritárias. De certa forma, ainda pagando o preço dos governos petistas de conciliação de classe e do reformismo que hegemoniza o que chamamos de esquerda, temos influído pouco na conjuntura, sendo mais espectadores da cena política do que atores.
Para reverter essa correlação de forças desfavorável e avançar na luta é necessário combater as ilusões em soluções institucionais, jogar toda a energia militante na conscientização, organização e mobilização dos trabalhadores e das camadas populares e promover, no campo da esquerda socialista, um urgente debate com o objetivo de unificar e politizar a luta comum. Nesse sentido, seria fundamental a realização de um encontro nacional das centrais e correntes sindicais e dos movimentos, entidades e coletivos populares classistas, com vistas a unificar as bandeiras políticas, a pauta comum e uma articulação nacional, superando a fragmentação dos recentes dias nacionais de luta, que têm sido convocados de forma setorial, ora apenas pelas centrais sindicais ora por entidades de estudantes ou de professores para a defesa de pautas específicas.
Quanto à ação dos comunistas revolucionários (com perdão da necessária redundância), a crise mundial do capitalismo e o consequente aprofundamento da exploração e da barbárie nos propiciam melhores argumentos e condições para esclarecer as massas sobre a natureza da luta de classes e do estado burguês, favorecendo a agitação e a propaganda do socialismo e do comunismo e, portanto, as nossas possibilidades de inserção entre o proletariado e as camadas populares, fator indispensável para o crescimento qualitativo do partido revolucionário e para o acerto da linha política, nos princípios do marxismo-leninismo.
Nosso principal desafio é avançar na construção revolucionária do partido, girando a militância para atuação nas lutas do movimento sindical e operário e da juventude proletária, promovendo atividades próprias e autônomas em relação a outras forças e praticando uma política de alianças com independência e identidade própria.
O mundo, a América Latina e o Brasil, na opinião de um comunista!