Caminhoneiros e trabalho de base

imagemPor Marcelo Schmidt

Gostaria de agradecer o camarada Leo Tentaculorum de Blumenau, por me auxiliar bastante na produção deste pequeno artigo sobre a crítica do trabalho de base e os caminhoneiros do Brasil. Outros sete estudos seguirão sobre: rodoviários, marítimos, portuários, aeroviários, aeronautas, metroviários e ferroviários, para todos aqueles que se interessam pelas categorias estratégicas do transporte.

Um dos meus filmes prediletos é: “Os Fuzis”, de Ruy Guerra. O filme fala do papel do Exército na contenção social da miséria brasileira, mas também fala da tomada de consciência de um trabalhador caminhoneiro, o Gaúcho. A metamorfose da consciência de classe deste trabalhador e como isso impacta na consciência dos trabalhadores militares e da comunidade está no centro da trama.

Este filme abre o microcosmo de uma categoria muito pouco estudada no Brasil, no interior de um setor completamente carente de uma estratégia de integração logística nacional. Se existe um setor carente da revolução brasileira é o setor de transportes. E neste a parte mais carente — e potencialmente poderosa — de conhecer e exercitar o poder da classe são os caminhoneiros.

Os trabalhadores caminhoneiros cortam o Brasil de norte a sul e de leste a oeste. Isso não é uma novidade. Desde os anos 1980, vemos esta importante categoria, estratégica para a circulação de mercadorias, aumentando em número e diversificando a sua composição. Desde a destruição da categoria ferroviária, cujo golpe final se deu no fim dos anos 1980, os caminhoneiros ou rodoviários da carga, autônomos e empregados de grandes ou pequenas empresas assumem a ponta da estratégica logística do Brasil.

Mas quem são os caminhoneiros? Os trabalhadores deste setor estratégico não são muito conhecidos pela maioria dos especialistas no trabalho organizativo, que também desconhece o conjunto dos trabalhadores em transportes. As centrais sindicais praticamente não os organizam. Uma questão de poder negligenciada pelas forças populares. Os partidos revolucionários têm um déficit absurdo na organização do setor rodoviário como um todo.

A categoria dos caminhoneiros é a categoria estratégica mais fragmentada, a mais não politizada pelas forças populares, a mais distante da organização classista dentre os trabalhadores em transportes. Para se ter uma ideia, os trabalhadores marítimos possuem uma única federação; os metroviários também uma, ambas poderosas. Os trabalhadores ferroviários, assim como os trabalhadores aeronautas, possuem uma federação, em ambas situações as federações não são muito fortes. O caso dos aeronautas é um caso interessante porque os trabalhadores aeronautas são mais fortes que sua própria federação (estudaremos estes trabalhadores em outro momento). Os trabalhadores aeroviários estão divididos em duas federações. Os trabalhadores estivadores e portuários em geral têm três.

Os rodoviários de passageiros têm 27 federações, uma por estado, algumas tentativas interestaduais. Finalmente, os caminhoneiros têm, além das 27 federações, mais inúmeras associações. Um saco de gatos. Uma confederação para os autônomos e outras para trabalhadores empregados, a CNTA e a CNTTT. Há tentativas de fragmentar ainda mais o setor. Se os trabalhadores em transportes procuram unificar os setores de transportes em uma única federação ou por setores, para citar a poderosa CONTTMAF dos marítimos, portuários e aeroviários, ou a CNTTL da CUT, já os caminhoneiros estão completamente pulverizados. Este é o seu maior desafio.

Um outro desafio é o processo de organização de base, a organização crítica em torno das suas demandas concretas, na luta de classes e no tempo de maturação do aprendizado político do seu poder. Fazer a luta concreta encontrar a luta histórica. Existe uma vontade muito grande pelo trabalhador rodoviário de carga ou pelo caminhoneiro de compreender e de exercitar o seu poder.

O problema é que faltam especialistas para fazer este debate com excelência pela crítica do trabalho de base. A esquerda de modo geral desconhece os caminhoneiros. Então, esta vontade de conhecer e de exercitar poder de forma coletiva e classista esbarra no déficit organizativo da classe e, mais especificamente, o deste setor. As explosões são difusas, as lideranças são cooptadas e instrumentalizadas por pelegos, por forças da direita para ações liberais e fascistas; o caminhoneiro distancia-se da sua base concreta para “pedir diminuição de impostos” e “intervenção militar”, por exemplo. Quanto mais se distancia da sua base concreta, mais se distancia da luta de classes. A direita, a mídia e o governo já entenderam a importância destes trabalhadores que, a partir de 2012, ensaiam — mas a partir de 2016-7 explodiram — em demandas de projeção nacional.

Primeiramente, é preciso se reportar ao perfil do trabalhador autônomo, mas, por analogia, dos demais trabalhadores caminhoneiros. São trabalhadores com carga horária do início do século 20: na média, trabalham 14 horas diárias, alguns 16 horas e outros 18 horas. No mínimo 12 horas, sob grande insegurança nas estradas, com baixo apoio logístico e atomizados na maioria do tempo. Sozinhos. Até bem pouco tempo, estavam literalmente sozinhos e largados. Esta carga horária de trabalho absurda e a total falta de uma estratégia de transportes de cargas e passageiros para o Brasil fazem com que eles percorram enormes distâncias, e por isso mesmo seguem aprendendo o Brasil.

Pois bem, eles conhecem muito bem o Brasil e suas carências. São homens e mulheres simples com um perfil do ferroviário de antes da sua organização nos anos 1920. Ainda sobre esta enorme carga de trabalho, ela aporta ilusórios R$ 10 mil ou R$ 12 mil. São R$ 4 mil geralmente comprometidos com as prestações do caminhão, R$ 3 mil com despesas correntes e de R$ 2 mil a R$ 4 mil para casa. Absurdo? Sim. Por isso, suas demandas são as daqueles que trabalham pra comer, e se pararem não comem.

Mas então quais são as demandas mais prementes e mais concretas? E quais seriam as demandas dos trabalhadores mais estratégicos deste setor estratégico? E, neste sentido, neste momento de pandemia, o que seria prioritário para levantar o debate do conjunto das suas demandas? Poderíamos listar desde a segurança nas estradas até o valor do frete. Este é o momento em que a saúde do trabalhador está mais em risco, para a economia do país não parar e fazer com que alimentos cheguem nas casas das pessoas. Ironicamente, a maioria não tem plano de saúde e, portanto, depende do setor público, do SUS, desde a emergência até o cuidado da saúde de profissionais que passaram dos 40 anos, em média. Hoje poderíamos dizer que se um trabalhador caminhoneiro pegar o coronavírus, ele não terá qualquer assistência ou seguro.

Vamos colocar estas demandas de modo mais claro:

• A saúde pública precisa funcionar, principalmente o resgate nas estradas, mas também o trabalho rotineiro de cuidado da saúde de quem passa muito tempo sentado. Agora, com a pandemia do coronavírus, as medidas de saúde precisam ser extremas, com fornecimento de EPIs e medição de temperatura corporal nas estradas.

• É preciso acertar imediatamente um valor compensatório para estes trabalhadores, no caso de caírem doentes. O valor de R$ 600, aprovado recentemente para trabalhadores autônomos, é muito baixo. Como vimos acima, é necessário um valor entre R$ 2 mil a R$ 4 mil para manter este trabalhador naquilo que lhe é mais essencial.

• É preciso imediatamente rever o financiamento do seu caminhão, com o governo assumindo as parcelas não pagas das prestações vencidas e vincendas do instrumento de trabalho do caminhoneiro.

• O valor mínimo do frete precisa ser colocado em lei, ainda que este valor mínimo tenha sido conquistado na prática pelas últimas greves e pela ameaça de greve no fim de 2019.

• O valor do diesel, que está baixo devido à pandemia, precisa ter preço tabelado em lei no Brasil e desenvolver outras formas de combustível mais barato e mais autossustentável (amigo do meio ambiente) precisa ser ponto prioritário da pesquisa científica brasileira.

• O valor do pedágio precisa ser subsidiado, e o que hoje é a política de não pagar por caminhão vazio como se paga por caminhão cheio (“cobrança por eixos”) precisa ser colocada em lei.

• É preciso uma política nacional de integração nacional multimodal, que priorize o transporte marítimo e ferroviário, mas também o de cargas, e com infraestrutura rodoviária excelente. A maioria esmagadora das estradas brasileiras não é asfaltada.

• Por fim, na conexão com as demandas concretas, o processo organizativo classista precisa do quadro, um agente preparado para fazer a junção daquelas com o panorama da luta de classes.

O melhor local de trabalho de base crítico são os pedágios estratégicos em torno dos arcos rodoviários das grandes cidades. No caso do Estado do Rio de Janeiro, em Seropédica. Cada estado tem um. Isso é comum no setor de transportes, a escolha de um local prioritário de organização pelo debate construtor de consciência da classe a partir da discussão da demanda concreta. Um quadro preparado, externo, precisa encontrar outro interno, e ambos neste processo devem conduzir o trabalho tanto via panfleto como também pela porta de entrada das mídias sociais; mas o trabalho de base crítico só se materializa pelo debate humano, um a um, nos locais de trabalho: restaurantes, confraternizações, pedágios, encontros, caravanas, etc. Uma estrutura mínima associativa na estrutura vigente precisa partir da demanda concreta: um comunicado para checar a saúde, atenção jurídica pela enorme quantidade de multas de trânsito que estes profissionais estão submetidos etc. aproxima o quadro externo do interno, e estes da base organizada. Para fazer o complexo, precede o simples.

Para a construção do Poder Popular, a questão do poder de trabalhadores capazes de parar a produção do sistema capitalista precisa estar no centro da pauta sobre o poder classe trabalhadora e, nisto, a questão do poder dos trabalhadores caminhoneiros está no centro da ordem do dia da luta de classes.