Cultura em tempos de pandemia
DEMOCRACIA DA CULTURA EM TEMPOS DE PANDEMIA
Por Rafael Ayres*
Ilustração de Allan Brasil e Gabriel Borem
A cena é relativamente comum: seja para relaxar, aprender, distrair ou prestigiar seu artista/comunicador, você acessa a internet, abre o Youtube, Instagram ou Facebook, para ver um vídeo, curtir uma postagem e ouvir música. De repente, acontece: a próxima atração sugerida é algo completamente diferente do que você estava esperando, ou mesmo do que você tem interesse (principalmente se você for uma pessoa de esquerda). Sua primeira impressão é achar que o algoritmo errou com você. Um erro inocente. Será?
Temos a tendência de achar que estamos num período extremamente democrático em relação aos produtos culturais. Com a internet, basta pesquisar e tudo está lá: as vanguardas, as novas tendências, toda a arte já produzida no mundo – tudo pode ser facilmente encontrado no mundo virtual. E, com a COVID-19, a internet se tornou a principal forma de acessarmos a arte – além da TV, do rádio e dos livros. E a resposta ao isolamento social, proposto pelos trabalhadores da cultura e instituições culturais, parece bastante óbvia: lives de músicos e atores, museus com seus acervos online, produção de conteúdo de forma gratuita, cursos, aulas, etc. Finalmente chegamos à forma definitiva de democratização da cultura: tudo disponível na internet, um toque na tela de distância.
Porém, essa “democracia” esbarra numa questão fundamental: os distribuidores da cultura virtual. No mundo anterior à era virtual, o papel da distribuição e exibição da cultura estava nas mãos da Igreja, do Estado e do mecenato burguês; agora, com a possibilidade da reprodução técnica, potencializada ao máximo pela internet, temos novos “players” que contribuem, com peso desproporcional, no papel da criação da demanda por cultura. O aumento desta oferta de cultura é somente isto: o aumento da oferta. O encontro dela com seu público depende de um mediador – o novo “player” – sob o qual nós, trabalhadores, não temos nenhum controle. No Brasil, esse mediador se traduz pelos nomes de Facebook e Google.
Essas duas empresas são donas da distribuição de conteúdo para praticamente 95% das pessoas que têm acesso à internet (no Brasil, esse número gira em torno de 70%), e o fazem via WhatsApp, Facebook, Youtube e Instagram. Já sabemos a forma como essas empresas usam seu poder “distributivo” a seu favor, com interesses econômicos e políticos próprios. Basta lembrar o que até mesmo plataformas liberais sem nenhuma simpatia pelo comunismo demonstram em suas matérias investigativas: em duas delas, publicadas em agosto e novembro de 2019, a Intercept Brasil comprova a ação direta do Google para treinar e beneficiar produtores de conteúdo de direita e extrema direita, influenciando diretamente as últimas eleições presidenciais no Brasil.
Além disso, as políticas de exibição dessas plataformas (os famosos algoritmos) obedecem à lógica capitalista – ou seja, quanto maior o número de visualizações, maior o potencial propagandístico e de receita que certa foto/vídeo pode oferecer de volta à empresa – praticamente sem filtros sobre qualquer qualidade/veracidade do material apresentado. E não só isso: agora, caso você queira uma experiência mais “agradável” como usuário, você só precisa pagar uma taxa mensal para se livrar das milhares de propaganda e restrições que aparecem a todo momento. Ou seja, as plataformas ganham dinheiro (e exploram os trabalhadores da cultura) de três formas distintas: nas propagandas veiculadas (com uma “suposta” concordância do produtor de conteúdo), na cobrança de taxas mensais, e na venda indiscriminada de nossos padrões de navegação (e dados supostamente sigilosos) para quem puder pagar melhor. Trump já se aproveitou disso. A NSA também. E não nos esqueçamos das últimas eleições presidenciais do Brasil. Ou seja, aquele vídeo recomendado a você por engano, não é um erro. É um projeto.
Portanto, por mais que os trabalhadores da cultura se esforcem para produzir mais conteúdo neste momento difícil (e este esforço é extremamente válido), essa relação entre aumento da oferta e democratização da cultura é falsa. Sempre haverá mais visibilidade para lives de artistas famosos – que desrespeitam todas as recomendações de isolamento social e fazem os trabalhadores se exporem a riscos desnecessários – não somente porque são famosos, mas porque – como demonstrado anteriormente – podem gerar mais valor para as plataformas que os veiculam.
Além disso, do ponto de vista da cultura classista, não basta simplesmente alimentar tais plataformas com conteúdo e temas revolucionários. Ciente desta situação, o trabalhador da cultura com consciência de classe pode encontrar em Walter Benjamin, no seu texto “Autor como Produtor” (1934), a seguinte formulação: “o aparelho burguês de produção e publicação pode assimilar uma surpreendente quantidade de temas revolucionários (…) sem colocar seriamente em risco sua própria existência e a existência das classes que o controlam”. Neste sentido, Brecht diz que não podemos abastecer o aparelho de produção sem modificá-lo, na medida do possível, num sentido socialista. Benjamin complementa: “seu trabalho não será jamais a fabricação exclusiva de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, a dos meios de produção”. Ou seja, nossa reflexão sobre a democratização da cultura deve dar um passo adiante. Fica claro que o acesso à cultura não pode ser considerado democrático somente porque existe mais oferta do mesmo. É necessário refletir também sobre como transformar o próprio meio no qual se insere a produção. Em outras palavras, a esquerda deve pensar em modos de ressignificar as novas formas de comunicação, o que implica confrontar as formas hegemônicas e reacionárias consolidadas pelo aparelho vigente.
Obviamente, a transformação completa destes meios só ocorre em num ambiente revolucionário, com a consolidação do poder popular. Também não é possível criar dentro do sistema capitalista, com o mesmo tamanho e intensidade, um aparelho de produção que concorra com a hegemonia vigente. Mas os primeiros passos (teóricos e experimentais) precisam ser dados, e, para isso, é necessário ocupar os aparelhos vigentes e também questionar sua função. Pensar a possibilidade de novas formas e funções dentro da produção artística é imperativo, dadas as condições materiais sob as quais vivemos hoje. Parafraseando Benjamin, precisamos refletir nossa posição no processo produtivo, o que implica pensar o artista como trabalhador da cultura, já que esta categoria, em sua grande maioria, é composta por artistas que estão a cada dia mais distantes dos astros e estrelas da indústria cultural, e cada vez mais próximos do trabalho precarizado ou do desemprego.
*Secretario de Organização do Coletivo Cultural Vianinha – São Paulo
Texto de Rafael Ayres
Revisão de Wesley Fraga