A resistência Anacé frente aos ataques do capital
Caroline Magalhães Lima*
No dia 22 de abril de 2020, foi publicada, no Diário Oficial da União, a Instrução Normativa nº 09/2020, pela Fundação Nacional do Índio (Funai), que abre mais uma fase nesse período de incertezas, lutas e resistências dos povos originários brasileiros.
Desde a Medida Provisória n° 759/2016, transformada na Lei Ordinária 13.465/2017, ainda no governo usurpador de Michel Temer, se esperava um ataque às terras indígenas, que sempre foram alvo de interesses da indústria mineradora, madeireira e agropecuária. Ao anunciar o propósito de venda dos ativos públicos, o programa “Ponte para o Futuro” pôs em estado de alerta aquelas e aqueles que lutam pela terra nesse país.
Com a vitória de Jair Bolsonaro, seu ministro Paulo Guedes defendeu uma política de austeridade que trouxesse uma economia de 3 trilhões de reais em quatro anos, adotando como eixos principais a venda de ativos públicos, em que se inclui a venda das terras da União, áreas como as terras indígenas, quilombolas, assentamentos rurais e reservas florestais e ambientais. Evidencia-se assim, mais uma vez, que o compromisso deste governo é com o capital.
Uma das saídas propostas para a crise foi, mais uma vez, o recurso às expropriações, tanto na forma clássica, como no campo das expropriações de direitos, com as reformas trabalhistas e previdenciárias, em que o discurso de combate a supostos privilégios destrói as conquistas históricas da classe trabalhadora organizada, assediada constantemente por uma “cultura da crise” que a incorpora e a responsabiliza. O mesmo ocorre com os povos originários brasileiros. Cerca de 200 terras em processo de demarcação estão comprometidas, sendo griladas, invadidas, tomadas de assaltado, em plena epidemia e crise social que compromete não apenas a saúde dos povos, mas sua própria sobrevivência. A violência no campo cresce diariamente.
Sabemos que a cobiça pela terra indígena é secular, faz parte do processo de desenvolvimento do modo de produção capitalista, cuja história foi escrita a “sangue e fogo”, como afirma Marx em O Capital. No Brasil, após a aprovação da Lei das Terras de 1850, os diversos governos provinciais incentivaram ataques aos povos indígenas a fim de ampliar a criação do mercado de terras. Exemplo concreto disso está no Estado do Ceará, que em 1863 emitiu um relatório provincial declarando a ausência de povos indígenas, afirmando que esses haviam debandado ou sido mortos, a fim de garantir as condições para a apropriação privada da terra. A criação do mercado de terras garantiu ao capitalismo a obtenção de mais valia em forma de renda da terra, sendo preciso destruir quaisquer barreiras para isso, fossem naturais, fossem humanas.
A identidade indígena foi historicamente negada, especialmente pela sociabilidade capitalista. A violência das expropriações e de tal processo foi tão forte, que parte da população nega sua ascendência indígena ainda hoje. Ao mesmo tempo, a resistência indígena jamais poderá ser apagada da memória daqueles e daquelas que contam suas histórias, festejam sua cultura, e se fortificam com a torém, ensinando a nós que “quem não pode com a formiga, não assanha o formigueiro”. Um formigueiro que, aqui no Estado do Ceará, foi autodeclarado em 2010 com o total de 9.335 (CENSO, 2010) lutadoras e lutadores que resistem à invisibilidade e ao extermínio social, estratégicos ao movimento de expropriação capitalista.
O povo Anacé faz parte desse número de lutadoras e lutadores que ainda resistem. Um povo que migrou durante séculos para sobreviver, fugir da morte, da opressão religiosa e da escravidão. Registra-se, ainda no século XVII, a existência dessa etnia pelo padre Antônio Vieira em sua missão na serra de Ibiapaba, Ceará. Outros registros apresentam os anacés como um povo que resistia ao reordenamento imposto pela Coroa portuguesa, tendo sido sitiados em 1694 por Fernão Carrilho. Segundo Capistrano de Abreu, também se encontram registros de que, em 1749, uma aldeia Anacé aparece administrada por jesuítas (SANTANA, ASSIS NETO, SILVEIRA, et.al., 2010), evidenciando que, ao longo da história do Brasil, esse povo lutou e resistiu da maneira que pôde. No contexto do decreto de 1863, a forma de sobrevivência encontrada foi fugir para o interior ou outras províncias, ou simplesmente esconder sua identidade indígena, negando-a constantemente e incorporando os valores e comportamentos dos “brancos”.
A região em que os anacés se encontram é estratégica para o capital e sempre esteve em foco nos planos de desenvolvimento do Estado. No contexto de implementação do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), o multimilionário Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP) foi implementado em parceria com empresas públicas e privadas, demandando não somente a remoção de comunidades pesqueiras – o que de fato aconteceu –, mas a do próprio povo Anacé, cujo reconhecimento de terras ainda não havia sido feito. Mais uma vez teriam de retirar-se de seu lugar, localizado na região metropolitana de Fortaleza, em amplo processo de valorização, numa área estratégica à especulação imobiliária (cercada de condomínios fechados e loteamentos), à mineração (com pedreiras e extração de outros minérios para exportação próximos) e à circulação de mercadorias das indústrias do complexo, para que o capitalismo extraísse as riquezas de sua terra.
Ser Anacé significa resistir. E a luta historicamente semeada, regada pela resistência e adubada pela articulação com outras lutadoras e lutadores, obteve frutos. Apesar de sua fragmentação em 21 tribos, foi negociada a implantação da primeira reserva indígena do Estado do Ceará, a Taba dos Anacés, em 2010. Uma reserva de aproximadamente 535 hectares, que abrangia territórios nos municípios de São Gonçalo do Amarante e Caucaia, mas ainda assim, não era suficientemente equipada, sendo denunciada pela imprensa local, e não contemplava a totalidade das tribos anacés.
Hoje, ainda que com a conquista da Taba dos Anacés, parte desse povo luta pelo reconhecimento de suas terras, em que plantam, criam animais, revivem suas tradições e resistem ao tráfico de drogas, à grilagem de terras, à violência do capital imobiliário, à poluição ambiental causada pela CIPP, dentre tantos elementos que implicam na necessidade de sua organização e resistência. Com a publicação da Instrução Normativa nº 09/2020, as constantes ameaças sofridas pela tribo se tornam mais palpáveis e o risco de ocupação se amplia. A tribo pede socorro, pede apoio às lutadoras e aos lutadores para que, mais uma vez, se somem à sua resistência. Cabe a nós, comunistas, exercermos nosso papel de tribunos do povo, denunciarmos a violência das expropriações do capitalismo, que se utiliza da crise para nos arrancar a terra, o pão e a paz.
DEMARCAÇÃO JÁ!
SOBERANIA AOS POVOS ORIGINÁRIOS!
PELO PODER POPULAR! RUMO AO SOCIALISMO!
* Estudante do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Univ. Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. Integrante do Instituto Caio Prado Jr. – ICP
SANTANA, Iara Vanessa Fraga de. NETO, Pedro Vicente de Assis. AGUIAR, Rafaela Silveira de. SOUSA Valdênia Lourenço de. A Luta Anacé frente aos “imPACtos” industriais. In: Anais da I Conferência Nacional de Políticas Públicas contra a Pobreza e a Desigualdade. Natal: CCHLA/UFRN, 2010. Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/cnpp/pgs/anais/Artigos%20REVISADOS/A%20Luta%20Anac%C3%A9%20frente%20aos%20%E2%80%9CimPACtos%E2%80%9D%20industriais.pdf Acesso em 02 de maio de 2020.